445-CORNIMBOQUES BRANCOS- Crime e vingança

— Tem preço não. Nem quando ele não puder mais trabalhar ou montar as vacas. —Rude no trato mas sincero nas suas afeições, o temível coronel Capistrano cortava qualquer conversa de provável comprador do famoso boi Corno Branco.

— E tem mais: vai comigo pra onde eu for, depois de morrer. Pro céu, inferno ou purgatório.

Corno Branco envelheceu na fazenda Cabrobró e ficou no pasto. No curral encontrava sempre ração preparada com cuidado pelo Belarmino, que já sentira no peito a força e a maldade do boi: uma cicatriz que ia da boca do estômago até o ombro direito era a lembrança de um ataque traiçoeiro de Corno Branco sobre o ex-escravo. Jamais se esqueceria do chifre branco coberto pelo sangue da ferida no peito.

O animal não era famoso apenas pela força e pela capacidade de emprenhar as vacas. Seus chifres faziam parte da lenda: um par de guampas brancas, tão brancas como osso depois de descarnado pelos urubus e seco ao sol.

— Isso de boi com chifre branco é coisa do tinhoso. — Nhá Veva, que vivia numa grota do Cabrobró, entendida em ervas, quebrantos e feitiços, era quem dizia. Mas o coronel não lhe dava atenção.

— A véia tá caducando. Se ela começar com coisas, mando ela direto pro inferno, que é onde já devia estar há muito tempo. — Não era uma ameaça mas também não era um elogio.

Uma tarde, Corno Branco morreu. Picado de jararaca, não deu tempo para ser socorrido. O coronel sentiu a perda como se fosse membro da família. Talvez mais do que se fosse a morte de um filho (tinha três) ou da mulher, dona Quirina.

— Manda tirar o couro e os chifres. — determinou ao velho Belarmino. — O couro curtido fica na minha sala, quero ver todos os dias essa pele malhada. E dos chifres o Juca Aleijadinho vai me fazer dois cornimboques.

O aleijão de Juca não o impedira de ser hábil artesão. Com formões, goivas e mais uma dezena de ferramentas afiadíssimas, era um escultor de mão cheia. Não podia caminhar, mas voava na imaginação e fazia peças de madeiras, de chifres, de ossos, de pedra ou qualquer material que pudesse ser cortado, escavado e entalhado.

— Tem um tempão que não faço cornimboque. Ninguém mais usa. — Avisou, ante o pedido do coronel. — Vai demorar. Tenho antes de fazer um Santo Antônio pro altar da igreja matriz.

— Demore o tempo que for. Quero dois caprichados. Com tampa e ponta de prata. Ah! mande incrustar estas duas turmalinas.

O dois chifres foram entregues já secos, alvos como as asas das guiratinguas, as garças que construíam seus ninhos na enorme ingazeira na beira do rio.

O cornimboque era uma peça em desuso na época da morte de Corno Branco. Utensílio que fora muito usado no interior, principalmente no norte de Minas, consistia na ponta de chifre de boi, limpo por dentro e por fora, guarnecido de uma tampa metálica e pinos nos quais se amarrava uma tira de couro, um cordão ou correntinha metálica. Usado como tabaqueira, era um objeto de luxo, muitas vezes com enfeites de prata e incrustações de pedras preciosas.

Os cornimboques eram usados, também, entre garimpeiros, para esconder pedras preciosas em trânsito. Corria até uma história segundo a qual Tonho Malengo, capataz de garimpo, foi salvo milagrosamente quando, numa discussão de jogo, a bala que lhe atingira o peito, foi desviada por um cornimboque cheio de pedras preciosas. O estojo foi estilhaçado, as pedras se arrebentaram, mas Tonho Malengo escapara vivo.

Os dois cornimboques brancos ficaram prontos sem muita tardança. O coronel ficou satisfeito com o trabalho de Juca Aleijadinho. Eram enormes, pois as guampas de Corno Branco, em consonância com o tamanho do boi, além de grossas, eram compridas e terminavam em finas pontas. As tampas de prata, e as pedras incrustadas elevavam os simples depósitos de fumo ou rapé à classe de objetos de rara beleza e alto valor.

O coronel passou a usar os dois ao mesmo tempo, dependurados no pescoço e cada qual enfiado na cintura, as tiras de couro cruzando sobre o peito.

— Me sinto protegido com estes dois cornimboques. — Gabava-se entre os amigos e parceiros do carteado. — É como se o Corno Branco estivesse ao meu lado.— Ele tinha certeza de que força do animal permaneceriam nos cornimboques

Pois não foi que, em certa mesa de jogo, uma discussão se tornou acalorada a ponto de os parceiros se transformarem em inimigos e partirem para a luta? Por sorte, ninguém portava arma de fogo ou mesmo punhal. Mas na refrega da luta, entre socos e pontapés, o coronel saca de um cornimboque e o atira na direção de Lucas Setepaus. O objeto atinge o jogador no peito, a ponta afiadíssima entrando por entre as costelas e atingindo mortalmente o batoteiro. O homem sangrou até morrer, sem que ninguém tivesse coragem de retirar o cornimboque, transformado em arma mortal. .

— É um cornimboque do diabo! — Foi o comentário que correu pela cidade, acompanhando a notícia da briga e da morte.

O cornimboque, usado inadvertidamente como arma, desapareceu misteriosamente. Embora o coronel oferecesse uma recompensa pelo objeto de estimação, este nunca mais foi visto. Ou melhor, visto sim, e guardado com cuidado por delicadas mãos femininas que outrora tinham acariciado rosto, cabelos, barbas e corpo de Lucas Setepaus.

O outro cornimboque, que permaneceu com o coronel, foi abandonado. Niguém sabia, nem mesmo seu dono, onde fora colocado e jazia no esquecimento.

Abalado com o evento, o coronel, que não era dado a valentias ou à violência, deu em beber. Embriagava-se na fazenda, solitariamente. Bebia até não poder mais à mesa do jogo, que freqüentava todos sábados. Caía embebedado em sua casa na cidade, tropeçando nos degraus das escadas do palacete.

A administração da fazenda desandou. A mulher e os filhos não ajudavam em nada o coronel nem nas lides nem na administração da Cabrobró. Animais morriam ou desapareciam, safras estiolavam-se e os sinais de decadência eram visíveis por todos os cantos.

Isolada e distante, Por ali passava pouca gente. Por isso, ninguém se deu conta da passagem, pela estrada que cortava a fazenda, de uma caleça habilmente dirigida por esbelta mulher vestida de negro. O veículo, puxado por elegante cavalo baio, foi na direção da grota onde ainda permanecia Nhá Veva, imune aos efeitos do tempo. Não foi vista nem mesmo pelo Coronel Capistrano, que, àquela hora de mormaço, curtia sua carraspana, num estado de torpor permanente, derreado na rede do alpendre da casa-sede.

O que ocorreu na tapera habitada por Nhá Veva, os diálogos e o “serviço” jamais serão conhecidos. O resultado, sim, este foi bem sabido e divulgado.

Na manhã seguinte, na imensa sala da casa-sede da fazenda, o corpo do coronel permanecia estendido, de bruços, sobre o tapete que era o couro do boi Corno Branco. A cozinheira chama Adriano, o filho que pernoitara ali.

— Seu pai num quer levantar. Vê se acorda ele móde tomá café.

O rapaz se aproxima e nota a mancha vermelha sob o corpo. Agacha-se, toca o pai.

— Pai, acorda.

Nenhum sinal de vida. Adriano empurra o ombro do pai, virando o corpo. No peito estão cravados os dois cornimboques brancos.

Antonio Gobbo – Belo Horizonte, 25 de julho de 2007

Conto # 445 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/10/2014
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