AÍ ESTÁ, MORREU; E EU NÃO - DTRL 18

"Aí está, morreu; e eu não."

Como aguentar este amargo gosto que todos nós hemos de sentir, sempre e sempre dissimulado nessas decentes e agradáveis máscaras que devemos suportar sobre esse velho tabuleiro impregnado de dores e mentiras vazias? Se alastra em nossas belas e charmosas palavras, cria e molda no fundo dessa mesma velha hipocrisia nossos velhos refinados hábitos, se exala como um tóxico odor oriundo de nossas rebuscadas peles e em nosso organismo adentra-se como um câncer onde permanece até nossa lastimada morte. Nossos olhares que dantes cintilavam nos cálidos raios solareres são corrompidos e enegrecidos por estas funestas e infaustas memórias.

Em vão, como um derrotado, esforço-me para revirar meus lúcidos olhos e encarar suas faces, os olhos cheios de vida como se fossem cegos iludidos perante a própria morte, as mentiras, em seu momento mais lúgrube. Suas vozes ressoam por essa sala desenhada e afogada em desilusões e espelhos de forma tão efêmera e desprezível que se perdem nessa apurada fragrância de decência e fingimento e mergulham nesse esquecimento onde nos aprisiona exteriormente e nos consome por dentro, até não sermos lembrados por nada além de nossos gritos. Nada restará no final!

Que sentimento miserável e deplorável é esse que me deteriora em meu mais profundo pensamento ao encarar seus solenes rostos? Enxergo todo meu passado, meus temores, meus sonhos, meus prazeres, meus infortúnios, minhas mentiras... Toda minha vida acima e diante de mim como um completo desconhecido. E sei que vocês não querem ter o menor vislumbre de mim (não preciso de mais mentiras, não agora), pois eu, e somente eu em minhas mais incômodas agonias e dores, consegue expor de forma tão natural isso que vocês irão se tornar e sentir nesse futuro iminente. Eu posso ir primeiro, mas no fundo, nos abismos mais profundos e remotos de suas almas, vocês sabem que todos escolhemos compartilhar desse mesmo caminho.

Terminem logo com isso. Parem de hesitar. Olhem para mim seus covardes! Não resta-me mais tempo, e disso vocês já bem sabem, contam os minutos, os segundos, esperando o momento no qual não haverá mais um doente culpado para importuná-los e lembrá-los dessa vida, que é só uma questão de tempo. Tudo está perdido, não me resta nada. Pararam os relógios. Apenas o silêncio sobrevive nessas trevas que me cercam e cegam: seus olhos me encaram. Como é congelante essa ausência. Me vencilho nesse labirinto de pesadelos e remorsos e suas risadas ecoam pelas ocas paredes para nada se ouvir, nada além de sua leve e breve respiração que me hipnotizam e ensurdecem mais e mais a cada passo. Não há como fugir, seus olhos me perseguem. Refúgio-me em minhas mais memórias mais remotas e genuínas mas seus íntimos olhos sempre me encontram, não importa aonde.

Aquela vida...

Recordo-me como se fosse numa outra vida. Não passava de uma simples dor na época, de aparência tão passageira e descartável quanto uma simples mentira, nada mais. Mas não tardou para ela crescer, amadurecer, aparecer; unia-se àquelas mesmas outras dores de similar insignificância que buscamos esconder e fazer desaparecer nesse ambiente tão pobre e infértil onde regamos e cultivamos nossas frívolas relações e prazeres, e lá fortalecia-se em toda essa imundice que guardamos em nosso ignóbil interior. Tornou-se impossível de continuar essa vida, eu estava começando a virar um empecilho aos outros, foi necessário marcar uma consulta com um daqueles famosos médicos que sentem um enorme prazer só por ouvir a própria voz. Eles são os piores, os médicos, se escondem e isolam-se por trás daqueles trajes brancos, tão puros e delirantes, que já não conseguem mais aceitar essa realidade fétida e pútrida onde vivemos, não, eles são melhores que nós, criam toda uma utopia por meio de ilusórias palavras nesses ilusórios consultórios, e nesse turbilhão de mentiras eles se afogam apenas para enganarem a si mesmos.

Não importava. Os médicos, os diagnósticos contraditórios, os supérfluos tratamentos tão prescindíveis quanto os próprios médicos. Mas a culpa não era deles, se eu estava doente o culpado era eu, somente eu, um doente culpado. Era impossível, impensável, a morte. O fim que todos nós compartilhamos, não importando quem quer que sejamos nós sabemos que um dia hemos de encontrá-lo. Tão presente e natural que é um insano absurdo não aceita-lá, um dever para com os outros, não importando o quão próximo e indispensável seja de você o falecido temos essa dívida, absorvemos esse sofrido remorso em nosso inabalável sangue sem deixar de pensar "Aí está, morreu; e eu não". Nos é incompreensivelmente inconcebível que morreremos, somos únicos, não há ninguém igual, como se é possível que se perca para toda a eternidade aqueles sentimentos que apenas atormentaram e amarguraram a mim, ninguém mais, ou então minhas cândidas recordações de quando eu era uma singela criança, não há quem as preserve senão eu, somente eu.

Um morto doente, todos sabiam, menos eu. Quanto tempo perdido para eu entender que eram apenas aparências agradáveis e decentes, mas nada de real, nada de valor. Me lançava sem volta naquele mundo sem significado de mentiras e hipocrisias. Passei a temer os espelhos, não tinha coragem de enxergar meu estado físico em particular, rejeitava minha fraqueza, minha mortalidade. Não queria nem me tocar, experimentar aquela textura morta, cadavérica, em minhas mãos, era como apalpar a morte.

Já chega disso, estou esgotado de cansaço por falar e relembrar disso, me carreguem e me tranquem num quarto escuro para que eu não veja mais nada, onde não haja paredes que me prendam nessa mesma prisão com vocês, nem exista um piso para que ninguém reclame mais de seus infortúnios se eu o sujá-lo com minha dor e imundice, sem teto para que ninguém fique acima de mim e tenha de suportar os meus gritos que dirijo a esse céu tingido de sangue. Me levem embora! É de mais pedir um segundo de paz, um momento que eu não lembre de meu passado, um breve suspiro indolor de conforto e autenticidade, ou apenas uma chance de poder mudar tudo isso: É de mais? Ficar aqui, incrustado, olhando e desejando essa jovialidade, essa vitalidade que me envolve e asfixia, enquanto estou aqui me corrompendo a espera da iminente morte que só se atrasa por mim, por minha culpa, quer me ver sofrer, gritar, enlouquecer, implorar por seu perdão. Tortura-me só por diversão, pelo seu bel prazer, não somos diferentes, nós dois, somos egoístas odiados por todos os outros que só querem nos ver longe, o mais distante possível; somos o escárnio da miséria; hediondos que estragam e envenenam tudo ao redor; importunados que obrigam vocês a fingirem mais, moldarem e pintarem suas faces como velhas e desgastadas argilas que aparentam ter pena de nós, que decente. Mas esquecem e continuam olhando em seus luxuosos relógios sustentados por esses pulsos firmes e fortes, tão invejáveis. Somos um só, a morte e eu.

E como se livrar do peso, das sombras que alimentam-se em seus olhos, daquele árduo prazo tão desumano que tive de aguentar na beirada sangrenta desse abismo de tormentos, onde ela repousa tranquila e agradavelmente em seu sono mais profundo? A cabeceira da morte. Maneja e brinca mortalmente com o tempo de todos nós, os dias se perdem, enegrecem até tornarem-se as mais caídas e caladas das noites onde correm frenética e livremente os nossos pesadelos de suplícios de perdões e arrependimentos.

As visitas de vocês terminaram. Aposto que foi devida àquela fadiga que todos degustamos em nossos músculos faciais por estes terem permanecidos imóveis, sem vida, em todo esse tempo que transcorreu. Eis o que suporto comigo, que além de meus maçantes gritos é minha única marca e contribuição nesse mundo: essa tortura a qual vocês passaram, a qual eu sou o responsável, que acendeu o mais singular e real sentimento que há anos vocês não reconhecem, consequências dessas elegantes máscaras que tentam distorcer nossa efêmera realidade mas acaba apenas deturpando suas inertes faces. Irônico.

Doem-se meus frágeis e trêmulos ossos, de minhas escurecidas mãos. Não há tinta que consiga desenhar e descrever o que esteja se passando no interior de nossas veias que pulsam inconsequente e humanamente nessas próprias mãos que servem de cegos guias a essa úmida ponta escurecida de lágrimas que cortam e escorrem em nossos rostos como navalhas forjadas por nós mesmos nessa mortal e efêmera folha de papel que se rasga e se imunda inundada em meio a essa sociedade até que seus gritos escritos e gravados em sua própria pele se apaguem e desapareçam sem nada deixar para trás além de cinzas que se perdem em um eterno e ininterrupto suspiro.

Temas: [Desejos/Guerra]

B Duarte
Enviado por B Duarte em 25/09/2014
Reeditado em 27/09/2014
Código do texto: T4976009
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