A Tempestade Vermelha - DTRL18
Jeff estava sentado de cócoras, com o fuzil M-16 sobre o ombro, silencioso como um índio. Ele observava a chuva caindo no lado de fora da cabana e não ouviu Denny se aproximar; não foi isso que o fez se virar quando o outro soldado, jovem como o próprio Jeff, chegou mais perto. Foi uma lufada do vento agitando as árvores que o despertou daquele estado de letargia.
— O turno dessa noite é meu, Jeff — disse o soldado, ajeitando o capacete de metal. — Vá descansar, amigão.
Jeff encolheu os ombros. Deitar- se não ajudaria em nada sua paz de espírito.
— Não vou conseguir dormir — disse — Eu cubro você, se quiser.
— E quem falou em dormir? — Danny estendeu a mão em um gesto para que Jeff entregasse a arma. — Eu disse: apenas descanse. Ninguém dorme no Vietnã.
Jeff meneou com a cabeça. Esboçou um sorriso que esmoreceu rapidamente, absorvido num estupor trêmulo. Tornou a encarar a pesada cortina de água que caia do céu.
— Sabe o que eu mais odeio nesse lugar? - perguntou. Havia alguma coisa em seus olhos; alguma coisa que Denny não sabia o que era. Raiva, ou uma profunda decepção, talvez. - A chuva. Sempre está chovendo. Todos os dias... o tempo todo.
— É... — Concordou o outro.
— Estava chovendo quando Phington pisou naquela mina; e estava chovendo quando aquele morteiro acertou Reed bem no meio dos olhos... — Jeff fez uma pausa. O aroma de terra molhada dançou sob suas narinas provocando comichões. — E estava chovendo quando pegamos aquela garota no Meekong...
A pouca cor no rosto de Denny esvaiu-se. Sua aura de tranquilidade fora instantaneamente dissolvida. Estava olhando para o companheiro, com o rosto cheio de perplexidade e terror. O braço erguido na atmosfera cinza recolheu-se para junto do corpo.
— Esquece isso... — disse, sua voz tremulando — Não foi nossa culpa.
— Não?
Os olhos de Jeff se fixaram nos de Denny. Não eram olhos acusadores, mas levemente curiosos. Quase infantis, de uma abstração delicada; como um homem se desligando — fio por fio — da realidade.
— Não — decretou — Não foi nossa culpa.
Jeff não respondeu. Havia trabalhado naquela frase "não foi nossa culpa" nas últimas doze horas sem contudo chegar a qualquer resultado. Era como um escritor perdido em um longo, longo romance. Quanto mais revisões fazia, mais parecia faltar alguma coisa. Se sentia como Atlas segurando o céu eternamente.
— Você realmente acredita nisso? — perguntou — Quero dizer, que não foi culpa nossa?
Denny pareceu vacilar. Tremeu duas vezes e seus olhos ficaram ligeiramente vermelhos. Alguma coisa começava a falhar em seu frágil sistema nervoso.
— Não foi nossa culpa.
"E daí, se seis americanos sequestraram, estupraram e mataram uma garota vietnamita? Eles não eram apenas comedores de arroz? Não era assim que o Comandante Chalmers os chamava? Merdinhas comedores de arroz? Comunistas fodidos... Comunistas fodidos que comem arroz?"
— Ela tinha onze anos, Denny. Doze, no máximo. — sussurrou Jeff. Seu pomo- de-adão se moveu para cima e para baixo. — Uma criança, Denny! Uma criança...
Sua voz foi ficando fraca e desapareceu completamente na última palavra. No Laos, chamavam crianças de "deke", o que na língua de Jeff tinha uma estranha e perturbadora semelhança com a pronúncia de "morte". A mão de Denny apertou os ombros do outro soldado. A chuva ficou mais forte, arrastando os dejetos da floresta: troncos de árvores e folhas na enxurrada de lama.
— Se alguém tem culpa... — Denny engoliu seco. — Esse alguém é Folley. A ideia foi dele, Jeff. Ele disse que deveríamos fazer. Ele é o Oficial.
— Denny...
— Estávamos apenas seguindo ordens. Só isso, ordens.
— Ordens... — repetiu — Seguindo ordens...
— Ordens, Jeff.
A chuva começara a diminuir. Jeff sorriu. "estavam seguindo ordens...", Denny dissera. Um redemoinho de calma aqueceu seu corpo. Mas a sensação de paz foi momentânea. Suposições negras escapavam da sua mente e uma inesperada onda de vertigem o deixou tonto.
"seguindo ordens..."
Não era isso que os nazistas alegavam quando questionados sobre seus atos sórdidos nos campos de concentração? Não era isso que diziam quando o mundo soubera a verdade sobre os chuveiros e as câmaras de gás e tortura? Eles também não seguiam ordens?
"Apenas seguindo ordens..."
As perguntas retóricas não paravam de surgir na sua cabeça. Tentou encontrar respostas para cada uma delas. Era como responder ao que viera antes de Deus, uma perturbação viscosa suficiente para pintar as paredes; como uma névoa corpulenta nos campos de manhã.
— Ela me pediu um cigarro. — disse finalmente — Se diz thuôc. Ela falava"tôc, tôc...", meio enrolado porque Neville havia quebrado o maxilar dela. — fez uma careta de nojo — O que aquilo queria dizer?. Só depois me lembrei que já tinha escutado essa maldita palavra antes. Prometeram cigarros para ela, Denny.
Ele apertou o M- 16 contra o peito. Havia certa doçura naquele gesto, um toque muito sutil de tristeza. As orelhas frias formigaram quando uma brisa úmida soprou nos seus ouvidos.
— Sabe porque as crianças dessa merda fumam tanto?
O soldado fez que não com a cabeça.
— O tabaco ajuda a enganar a fome. Doces também, mas o tabaco é melhor. E custam menos que comida; e são mais fáceis de achar; e os soldados trazem no bolso. — Jeff deu um sorriso amargo — Com um punhado de malboros o vietnã é seu, Denny. O vietnã é todo seu...
Houve um silêncio entre os dois. Por alguns segundos, só ouviram o barulho da chuva estalando sobre a palha da cabana no acampamento. A noite ainda demoraria a terminar e o próximo turno era de Denny, mas ele não sabia se queria ficar sozinho. Sentia-se como um cão sem banho e infestado de carrapatos.
— Eu fui o sexto cara. — disse Jeff finalmente. — A garota estava realmente machucada, coberta de sangue e merda. Eu fiquei com medo, Denny. Pela primeira vez desde que essa porra começou eu fiquei com medo de verdade... Não era um medo qualquer, mas um puta medo. Me falaram que o Vietnã tinha cheiro de morte, mas eu nunca havia sentido cheiro nenhum. Mas naquela cabana eu senti, Denny. Juro por Deus que senti.
Embora não percebesse, Jeff chorava. Denny fez menção de dizer algo, mas engoliu as palavras quase imediatamente. Não havia nada para se dizer no Vietnã. Aprendiam isso muito cedo, tão naturalmente quanto uma criança aprende a falar "papai" ou "mamãe". Sem palavras; sem palavras era melhor.
— O cheiro, ah, o maldito cheiro. Havia esperma por todos os lados. Vomitei tudo que tinha nas entranhas, e a garota não parava de gritar... Porque ela tinha de gritar tanto, porra? Eu era o sexto cara. O sexto! Eu tinha esperanças de que ela já estivesse morta quando fosse a minha vez...
Um relâmpago iluminou o dossel de nuvens negras que era o céu. O som do trovão rimbombando fez os pelos na nuca de Denny arrepiarem.
— Eu também não queria, Jeff. Acha que eu algum de nós se sentiu bem com aquilo? Acha que eu não vejo os olhos dela espreitando? Que também não tenho sonhos ruins? — quase gritava. — Vai por mim cara, esquece, ou tenta esquecer. Vai acabar ficando louco se continuar pensando nisso... Pense no céu de cobre da Georgia; nas garotas; nas nossas mães com o cheiro do bacon frito saindo pela porta da varanda...
— Não, amigão. Eu não vou pensar nessas coisas.
Jeff empunhou o M— 16, apontando-o para o outro soldado. Uma camada de inquietação cobriu o rosto de Denny como uma cortina. Parecia um comprador de apartamentos que acabara de descobrir uma cláusula inesperada no contrato. Um comprador surpreso que tremeu os lábios quando Jeff apertou o gatilho. A arma coiceou o ombro do atirador, quase deslocando-o. A cara de Denny explodiu.
O som da explosão reverberou pelo acampamento. Denny permaneceu de pé por alguns segundos, então finalmente caiu. Seu rosto era uma massa vermelha de carne crua, e os olhos saltaram para fora, pendurados por terminações nervosas como dois olhos falsos de palhaço e ainda fumegando por causa da pólvora queimada.
— Sabe o que meu pai dizia? — gritou para a coisa morta que um dia fora Denny. — Ele costumava dizer que um dia você bate, no outro você leva uma surra. Muito sábio, o meu pai...
— Vietcongs? Alerta, Vietcongs! Acordem seus imbecis...
Era Folley berrando. O soldado oficial interino saltara para fora de sua cabana como um louco, o próprio M-16 em punho e os olhos arregalados tentando ver alguma coisa na escuridão.
Jeff mirou. Seus olhos de tubarão estavam fixos no alvo. Ele atirou. Mais uma explosão. O tiro acertou em cheio no estômago de Folley que gritou num guincho agonizante. O intestino grosso saltou para fora como topeiras em túnel cheio de água vermelha.
— Deus nos faz crianças primeiro, seus idiotas. Deus nos faz crianças primeiro para que quando venha o sofrimento... — e atirou de novo — ...possamos nos lembrar que um dia a felicidade estava lá, bem nos nossos pés.
Havia gritos e pandemônio — o pelotão fugindo, botas sendo calçadas, armas engatilhadas, cordas de roupa caindo — , as barracas estremecendo com os violentos sobressaltos de soldados meio adormecidos.
BANG.
O M-16 disparou mais uma vez. A bala atravessou as pernas de um soldado jovem — cujo nome era Neville — num carnaval de sangue e fragmentos de osso. O soldado tentou se levantar, moribundo e agonizando; tateando o membro com os dedos sujos manchados de escarlate. Jeff atirou — desta vez na cabeça — e o garoto adormeceu para sempre.
Nas sombras, enquanto os ecos abafados dos soldados redemoinhavam no vento, Jeff continuou atirando, um por um: Gabe, Vannilo, Henry, Edd, todos eles... colorindo a correnteza da chuva com tons pitorescos de vermelho. Ele não conseguia pensar, não conseguia parar de chorar: catarro pendurado no nariz, lágrimas saltando dos olhos e rindo como um maníaco. Parecia estar flutuando, afundado em um torpor semi— inconsciente. Aprisionado num deleite embriagado...
O fel negro, o gosto amargo de cobre, subiu á garganta de Jeff escapando em um gemido de desprezo pelos dentes cerrados.
Pensou que tivesse ouvido a voz da garota do Meekong. Pensou ter escutado seus gritos desesperados; visto seu sangue escorrendo através das partes íntimas; seus gemidos que misturavam uma tristeza quase inocente com ódio mortal.
Era apenas o barulho retumbante da tempestade. Deus do céu, estava sempre chovendo no Vietnã.
TEMA: GUERRA
NOTA:
Confesso que quando vi que um dos temas do DTRL seria Guerra, torci o nariz ( talvez não tanto quanto para o tema profecia :P ). Quase de imediato o descartei, mas então mudei de ideia. Que tal escrever sobre algo que eu acho que não consigo? Bom, tentei encarar esse desafio, e espero que tenha conseguido... Que tal você me dizer?
Não esqueça de deixar seu comentário!