411-O FANTASMA DO JARDIM NOVO

O parto foi sem problemas. Dona Carmem estava imensa, com uma barriga enorme. Sinhá Cândida, velha parteira com prática de centenas de parições assistidas vaticinou:

— Aí tem mais de uma criança. — Pelas apalpações e aplicando o ouvido direto sobre a barriga, sabia com certeza do que estava falando.

A surpresa foi, quando já nascidas duas crianças, seguiu-se a terceira.

— São três! E todas meninas! — Antes mesmo de cortar o último cordão umbilical, dava a notícia à mãe e a sua irmã, que ajudava no parto feito em casa.

O pai, sisudo espanhol, pedreiro de profissão que se alçara à condição do melhor construtor de São Roque da Serra, não deu muito importância ao fato.

— Por Santiago! Três bocas a mais, de uma só vez. Podia ser apenas um. E se fosse menino, melhor.

Maria Cigana, bruxa ou vidente que tinha explicação para qualquer coisa extraordinária que acontecia na cidade, fez um prognóstico ao qual poucas pessoas deram atenção ou entenderam.

— A primeira é de Deus, a segunda é da família e a terceira é do amor.

Dona Carmem deu à luz às trigêmeas em casa. Morava no elegante sobrado construído pelo marido. Aos três pavimentos o construtor acrescentara uma torre ao estilo mourisco, que terminava em minarete estilizado. A construção era conhecida como Castelinho e disso Dom Ramon muito se orgulhava. Ficava numa esquina e confrontava-se com a entrada do cemitério. A visão do minarete era abrangente: em primeiro plano, o grande quadrado do cemitério, com tumbas e campas de mármores brilhando ao sol. A seguir, estendendo-se por todos os lados, o casario distribuído em ruas simétricas. E não muito além, os campos cultivados, os pastos e a mataria que ainda circundava a cidade em boa parte, na direção do norte.

Foram batizadas Ana Maria, Eva Maria e Iza Maria. Cresceram em graça e em dons e se tornaram lindas moças, exemplares vistosos de beleza rara de Castela e Granada, de onde vieram o pai e a mãe. A boniteza das jovens não serviu de passaporte seguro para bons casamentos, objetivo de toda moça “de família” naqueles tempos.

— Elas são orgulhosas demais. Procuram príncipes encantados. Se não mudarem, vão acabar solteironas. — O pai, em sua sabedoria elementar, previa as dificuldades de casar as filhas.

Por isso, lhes proporcionou estudos em boas escolas na capital. Mas as moças não cuidaram de se formar. Ana gostava de música e aprendeu a tocar piano, porém não se aprimorou. De volta à casa dos pais, passava os dias em preguiçosa ociosidade, dedilhando no teclado as valsas que estavam em moda do final do século.

Eva se afeiçoou à Irmã Anastácia, professora de religião, e quis entrar para um convento. .

— Por mim, está bem. Assim, vamos ter uma da família fazendo orações e garantindo nosso cantinho no céu. — A mãe conformava-se. Enquanto o pai via o aspecto prático:

— Pelo menos, não vai mais dar trabalho em casa. Vai viver em convento, é boa coisa.

Iza era diferente das irmãs. Inquieta, gostava de sair de casa, tinha muitas amigas, freqüentava saraus e participava de piqueniques.

— Essa vai dar trabalho. — De poucas palavras, o marido dizia à esposa o que imaginava.

— Deixa, Ramon, ela tem juízo. — Carmem procurava apaziguar a mente do marido.

Por volta do início do século XIX, as trigêmeas estavam com vinte e cinco anos. Foi então que arribou à pacata e ainda pequena cidade o Gran Circo Irmãos Cagliostro. Foi o evento máximo, que chegava justamente no início do ano que iniciava o novo século.

Durante quinze dias a cidade fervilhou. Os espetáculos atraiam todos os moradores da cidade e os habitantes da região. Até das cidades vizinhas chegava gente, muita gente, para assistir aos espetáculos do “circo de cavalinhos”.

Iza Maria não perdia um só espetáculo. E, entre todas as apresentações, maravilhava-se com as mágicas de El Alakabin, o Mágico das Arábias. O competente mágico irradiava uma simpatia que derretia os corações. Seu sorriso e seus olhares eram disputados por todas as moças (e até por recatadas senhoras da sociedade). E Iza fazia-se destacar entre as amigas de seu grupo, de tal forma que o mágico a notou — e a presenteou com sorrisos e olhares especiais.

Dos olhares e sorrisos aos encontros fortuitos e a um namoro escondido, foi coisa de dias. O diz-que-diz logo levou aos ouvidos dos pais a atitude da filha.

— Isto é uma pouca vergonha. — Dom Ramon esbravejou. — É isso que dá a gente não segurar esta menina dentro de casa.

— Calma, Ramon. Não é nada de grave. — A mãe procurava acalmar o marido. — Vou conversar com Iza.

— Vamos ter de tomar as providências. Imagine só. Logo o mágico do circo! Pior, só se fosse com o palhaço!. — Os gritos do homem eram ouvidos além das paredes do castelinho, reverberando por sobre as tumbas do cemitério.

Iza era indomável. Para mostrar a todos que o namoro era sério, levou o mágico a pedir sua mão em casamento. Ante a segurança, as palavras melífluas e convincentes para o pai, e os sorrisos afáveis para a mãe, convenceu a todos de suas boas intenções.

— Por amor a Iza, vou deixar o circo e me estabelecer.

— Além de mágicas, o que o senhor sabe fazer?

— Sou o fotógrafo oficial da companhia. Posso ganhar a vida fazendo fotografias.

— Retratos, o senhor quer dizer?

— Sim: retratos de pessoas. Está muito em moda.

A lábia do mágico era grande. O amor de Iza, maior. E o noivado foi consentido. A data do casamento foi marcada: seis meses a partir do dia do noivado. .

— Vai que esse borra-botas desiste da idéia. — Dom Ramon não estava muito seguro do romance entre a filha e o artista de circo.

O mágico seguiu com o circo, com desculpa plausível:

— Tenho de treinar meu ajudante, para que ele tome meu lugar. Mas voltarei a lhe visitar assim que puder.

De fato, nos meses subseqüentes, El Alakabin, aliás, Libório da Silva, visitou Iza e seus pais religiosamente, uma vez a cada trinta dias. Enquanto isso, Iza preparava o enxoval, tarefa que lhe ocupava todos os momentos do dia.

No último mês, a noiva mandou fazer o vestido de casamento. Para escolher, levou mais de uma semana. E só ficou pronto às vésperas da data marcada. Tudo combinado, os convites foram feitos, os proclamas proclamados, a notícia espalhada.

O grande dia chegou para Iza com a claridade radiosa das manhãs de maio. O dia inteiro foi uma lufa-lufa na casa da noiva. A igreja foi enfeitada como nunca tinha sido até então. O noivo deveria chegar à tarde. De tal forma que, até pelas três horas, a pressa e as verificações dos detalhes não deixaram lugar para nada. Foi só por perto das quatro que Iza perguntou à irmã:

— Você sabe se ele chegou?

— Mandei um garoto no hotel pra saber.

Não, o noivo não tinha chegado. E já eram cinco horas, para a cerimônia que se realizaria às seis. Então, Iza, as irmãs (Eva, a freira conseguira alguns dias de licença para assistir o casamento), os pais e até a criadagem, começaram a se preocupar.

Vestida de noiva, Iza desceu até à grande sala de visitas, onde ficou à espera da chegada do noivo, que iria do hotel para a igreja, pois “dava azar o noivo ver a noiva antes da cerimônia”.

E na sala do Castelinho ficou Iza à espera do noivo que não chegou. E que jamais deu notícias.

O golpe foi grande para a moça e para toda a família. Em vão Dom Ramon mandou emissários para onde deveria estar o mágico. O circo estava estacionado no sul do país. O enviado voltou, quinze dias depois, com notícias desalentadoras.

— O circo está em Santa Catarina. Mas o mágico não está mais trabalhando nele. Deixou em São Paulo e ninguém sabe onde anda.

Iza sentiu o coração esfrangalhar-se. Dali para diante, não saiu mais de casa, ficou ensimesmada, deixou de alimentar-se, enfraqueceu e em poucos meses não era nem a sombra do que fora. Morreu antes de decorrido um ano de sua grande decepção amorosa.

Do alto do minarete, Dom Ramon e Dona Carmem olhavam diariamente o túmulo da filha, enterrada no cemitério defronte ao Castelinho. Até o dia em que, decorridos quase cinco anos da perda da filha, aconteceu a mudança do cemitério.

— Isto não é coisa de cristão! — Dom Ramon esbravejava contra a decisão do presidente da municipalidade. — Jamais se viu, em lugar nenhum do mundo, uma mudança de cemitério.

— O cemitério está no centro da cidade. Vamos construir no seu lugar uma linda praça com jardins. — Prometia o chefe do município.

Por mais estranho que possa parecer, aconteceu sim. Um novo cemitério foi inaugurado, situado pelas bandas da Mata do Espraiado, distante mais de um quilômetro da cidade. Todos os túmulos, campas e tumbas foram abertos, a exumação dos restos mortais realizada sem muito cuidado e levados para o novo Cemitério Municipal.

O quarteirão do antigo cemitério foi totalmente transformado. Foram plantadas mais de cinqüenta palmeiras imperiais nos canteiros construídos ao longo das amplas passarelas para pedestres. Ao redor, um passeio largo de mosaicos coloridos. Só permaneceu intocada uma velha figueira, já centenária na ocasião da mudança.

— Essa figueira foi a primeira árvore plantada na cidade. A muda veio da Índia. Se tocarem nela, a cidade vira pó. — Mizael, o mais idoso habitante da cidade, negro de carapinha branca, dava notícias da origem da árvore, e ao mesmo tempo ameaçava quem se atrevesse a cortá-la.

Não, não foi só a figueira centenária que ficou incorporada ao Jardim Novo. Iza Maria, a noiva enganada, a que morreu por amor, e que em vida vivera no Castelinho, também permanece ali no jardim, defronte à residência da família. Todas as sextas-feiras, por volta da meia-noite, quem for corajoso o bastante, pode se deparar com uma aparição fantasmagórica: uma jovem toda vestida de branco, cabelos compridos, véu e grinalda, uma eterna noiva à espera de seu amado.

É a aparição de Iza, vista por muitos habitantes, conhecida por Fantasma de Maria Branca.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 18 de novembro de 2006

Conto # 411 da Série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/09/2014
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