Lobos
Lituânia, 1943, durante a retirada das tropas alemãs.
O tenente Lars Spiegelman olha atentamente para o céu ao entardecer lembrando-se de sua cidade natal na Saxônia, enquanto fuma um cigarro turco, expelindo a fumaça aos poucos. Sem tirar o olhar das alturas, se dirige ao seu amigo, o sargento Bruckner sentado em frente sobre um monte de entulho com uma caneca de café. Um dos últimos luxos disponíveis aos alemães, quase sem mantimentos.
- Estamos perdendo esta guerra, Bruckner.
O sargento, olhando diretamente para o tenente solta um suspiro e toma o ultimo gole de café, concordando com seu superior de forma gutural.
O tenente faz uma mesura soltando a fumaça aos poucos e, ainda de olhar fixo no horizonte, dá sua ultima ordem.
- Reúna o pelotão ao redor do blindado. Vamos lutar enquanto nos mandarem segurar esta posição, para proteger a retirada das tropas.
Logo em seguida em uma moto com side-car chegam dois soldados que se reportam ao sargento.
- Encontramos resistência na cidade senhor – fala o jovem soldado ainda com sardas no rosto, descendo da moto. – Há um franco atirador no telhado de uma torre. O maldito já liquidou cinco soldados.
O sargento se reporta ao tenente.
- Senhor, não poderemos sair da cidade enquanto nos barrarem caminho, sugiro um bom tiro com o blindado.
- Bruckner... – e o tenente olha direto nos olhos do sargento com um sorriso nos lábios. – quer derrubar um pássaro com uma arma de caçar elefantes? Chame nossos melhores atiradores e atire sem parar até acertar o Ivan.
Com um aceno de cabeça, o sargento parte para onde seu pelotão está descansando e convoca três de seus melhores atiradores, mais cinco soldados, e se encaminham para as ruínas na praça da cidade.
Os três atiradores, devidamente protegidos e camuflados em meio ao entulho, miram e atiram sem cessar, não dando folga ao atirador de elite inimigo, enquanto a patrulha liderada pelo sargento avança por trás, se escondendo entre as ruínas de centenárias construções, e subindo a escadaria da torre aos poucos.
Intercalando seus movimentos sincronizados com os tiros, os soldados logo chegam ao topo da torre, e o sargento Bruckner consegue acertar um tiro no franco atirador, que cai pesadamente no parapeito. Os soldados se aproximam e atestam que o tiro não foi fatal, apenas ferindo-o no ombro e deixando-o desacordado.
De volta ao acampamento alemão, enquanto um enorme blindado cinza escuro passa ao lado, cheio de soldados sentados em cima de sua couraça metálica, a patrulha alemã liderada pelo sargento carrega o ferido, com as mãos amarradas. Os soldados jogam um balde de água fria em seu rosto para acordá-lo. No céu, um caça Messerschmitt voa dando um rasante, de maneira que os soldados do acampamento erguem os braços em cumprimento, com saudações efusivas.
O franco atirador acorda surpreso e amedrontado percebendo que o penduraram pelas mãos amarradas na viga do teto de uma casa velha e cheia de buracos. Logo dá de cara com o tenente que, soltando mais uma baforada de fumaça, coloca suas luvas e lhe desfere uma bofetada no rosto.
- Qual é seu nome? – pergunta o tenente, mas não obtém resposta nenhuma. O sargento verifica as roupas à procura dos documentos do homem de cabelos castanhos espessos.
- Um civil, deve ser um morador da cidade trabalhando para os Ivans (russos).
- Ótimo, podemos interrogá-lo para saber se os russos estão nos esperando mais a frente. – e voltando-se para o sargento e seus soldados – Segurem este porco.
Lentamente, enquanto canta um refrão de Parcifal de Wagner, o tenente Lars Spiegelman retira seu quepe e desfere mais uma bofetada no prisioneiro. Os soldados em volta ficam agitados e começam a sorrir na expectativa de uma seção de tortura.
- Fale agora, maldito Ivan. Onde estão localizadas as tropas russas?
O Prisioneiro permanece calado num mutismo irritante para o oficial da SS, apenas demonstra certo cansaço físico, enquanto começa a suar e olhar para fora através do que restou da janela, como que esperando ajuda na noite que se inicia.
O tenente, sem perder a calma, manda que tirem a camisa do prisioneiro, segura o toco de cigarro entre os dedos e, com um sorriso feroz, encosta a ponta no abdômen desnudo do homem preso. Este solta um gemido alto, mas ainda se recusa a falar o que quer que seja. Logo em seguida, após um aceno de cabeça do oficial alemão, três soldados começam a desferir socos no rosto do prisioneiro, que cuspindo sangue, e sem falar nada, apenas olha para fora.
- Está disposto a morrer seu porco? – Pergunta o tenente, e percebe que um sorriso agora se formou no rosto do homem amarrado, que fixa o olhar no tenente.
- E você está, chucrute? – murmura depois de cuspir um pouco de sangue.
As poucas palavras do prisioneiro desencadeiam a raiva do oficial alemão que começa a esbofeteá-lo, manchando de sangue suas luvas pretas.
O oficial se dá conta de que quase perdeu o controle e calmamente retira as luvas, limpando-as, enquanto o sargento aponta seu fuzil na cabeça do prisioneiro.
Lá fora, no breu da noite, finalmente a lua cheia aparece gigante, saindo de trás das nuvens escuras. O prisioneiro arregala os olhos e começa a gemer enquanto olha para fora da janela.
Espantados, os alemães começam a olhar uns para os outros, enfim acreditando que o homem amarrado está dando seus últimos suspiros. Mas o pavor toma conta de todos quando notam presas enormes crescerem na boca ensanguentada do homem, enquanto seu maxilar se projeta para a frente, suas poucas roupas se rasgam enquanto o corpo parece se expandir de dentro para fora, mostrando um corpo peludo.
O tenente, soltando uma exclamação de terror, ordena que atirem nele.
- Atirem neste maldito demônio!
Mas antes que os soldados consigam apertar os gatilhos de suas metralhadoras, o que antes era um homem, arrebenta as cordas que o prendiam como se fossem barbantes, e com uma mão com garras afiadas arranca o braço do primeiro soldado a sua frente pulando para o segundo e o terceiro rosnando, e arranca suas cabeças. Enquanto isso o tenente saca sua pistola Luger e atira nas costas da criatura, sem efeito nenhum.
O Lobisomem, pois este é o nome que vem à mente do tenente, depois de rasgar o abdômen do sargento com uma mordida, se vira para ele e encara-o ferozmente com seus olhos vermelhos e mostra seus dentes escorrendo saliva e sangue, antes de rasgar seu pescoço com uma mordida.
Os soldados do lado de fora ouvem o uivo de um animal feroz e correm até a velha construção, apenas para dar de cara com o que sobrou do tenente, do sargento e dos soldados, enquanto uma sombra lupina corre rapidamente atacando e dilacerando todos à sua frente no acampamento com dentes e garras enormes, além de uma força sobre-humana.
...
No relatório do coronel Nabokov do exército vermelho que subjugou e capturou o 102 de infantaria alemã em retirada, só constou que uma fera havia se esgueirado no acampamento, de maneira que os sobreviventes, famintos e amedrontados, se renderam prontamente aos soviéticos.
...
No alto do telhado do que sobrara da torre do sino da igreja da cidade devastada, uma fera meio homem e meio lobo uiva diante da lua cheia.
......Fim.....