387-FUGINDO DA MORTE

Tempos difíceis os da faculdade. Principalmente para Maurício, obrigado a se manter com pequena mesada dada pelo pai, rigorosamente a cada dia primeiro do mês. Não havia como economizar quando estava entre os colegas e, principalmente, nas saídas com as colegas, pois não queria fazer feio com as moças. Nos fins-de-semana era um arraso. O dinheiro esvaía-se por entre os dedos como se besuntados de óleo.

Gostava de tomar umas cervejinhas, apenas para ficar alegre e descontraído. Mas naquele sábado, com a mesada praticamente no fim, não tinha dinheiro para gastar com as latinhas douradas.

— Cara, se é pra ficar alegre, toma uma cachaça. É mais barato e funciona muito mais depressa.

— Que é isso, Marcelão? Cachaça, eu? É muito forte e deixa um cheiro desgraçado.

A princípio, recusou. Mas depois aceitou o conselho do amigo, tomou uma, tomou duas e uma terceira.

Sentiu o mundo girar. Segurou firme na beirada da mesa.

— Marcelão, tou tonto.

— Vamos, cara. As minas estão esperando a gente.

— Cara... num agüento... Nem vou conseguir dirigir de volta pra casa. — Ainda no início da embriaguês, preocupava-se com o retorno a casa, dirigindo o carro emprestado pelo pai.

— Não se preocupe, eu dirijo. — Prometeu Marcelo.

Lá pelas tantas, duas ou três da madrugada, Mauricio estava em estado lastimável.

— Vam’imbora. — Teve dificuldade em abrir a porta do carro.

— Deixa que eu dirijo. Cê num tá agüentando nada.

— Tá bom. — Entregou as chaves para Marcelo e sentou-se no banco ao lado.

Nem bem Marcelo colocou o carro na avenida, Maurício sentiu o estômago enjoar e no primeiro sinal vermelho, abriu a porta e deu uma vomitada.

— Tá mal, hein?

A coisa foi se repetindo a cada semáforo, de forma que, no meio do caminho, não tinha mais nada no estômago e suava frio a cada ânsia.

— Chíííí, você não vai poder chegar em casa nessa situação.

O amigo, trespassado, responde com mais um engulho.

— Vou te levar pro pronto-socorro do Felício Rocho.

Para entrar no pronto-socorro foi preciso ser amparado, tamanha era a fraqueza. O procedimento foi rápido e em minutos deitaram Maurício na cama, num cubículo onde, na cama ao lado, estava outro paciente. Ouvia os sons da movimentação do pessoal como se estivesse num outro mundo.

— Enfermeira, aplique glicose neste moço.

A enfermeira saiu do cubículo. Sentindo-se melhor, deitado, quieto, abriu os olhos. A vista acostumou-se com a iluminação asséptica. Olha para cima, tudo muito claro. Da cama ao lado chega um gemido. Olha para o lado.

O acidentado estava em estado lastimável. Tinha chegado ao pronto-socorro há alguns minutos e a enfermeira saíra em busca de algodão, gaze, essas coisas. Os cabelos empastados de sangue colavam-se à testa. Os lábios, cortados, deixavam entrever os dentes, num ricto sinistro. Sangue por toda parte, na cabeça, face, garganta, ombros. Os olhos fundos em duas covas negras estavam mortiços e sem vida. Um braço pendia para fora da cama, também todo escalavrado e mostrando músculos e ossos.

Ao notar a presença ao seu lado, o acidentado tenta levantar o braço e faz um esgar, emitindo um gemido.

Foi o que Maurício viu e ouviu, o bastante para lançá-lo, apavorado, para fora da cama e do cubículo. Sai correndo pelo corredor, esbarrando em uma enfermeira, quase a derrubando.

— Hei, moço! Pára aí! Vou lhe aplicar....

O terror estava estampado nos olhos e o corpo movimentava-se sem coordenação, numa corrida como se fugindo do diabo. Passa pelo amigo, sem o ver, saindo a galope pela porta do hospital.

— Maurício! Mas que é isso? — Marcelo grita e sai ao encalço do fugitivo.

Finalmente o alcança, exausto, do outro lado da rua, encostado numa árvore.

— Mas o que foi? Que é que te deu, cara?

— Eu vi...! Lá no quarto... Na cama ao meu lado...— Tremia e suava.

— Viu o quê?

— A morte! E ela queria me pegar!

ANTÔNIO GOBBO –

Belo Horizonte, 14 de fevereiro de 2006

Conto # 387, da série

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/08/2014
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