O PROVEDOR DA SANTA CASA
 
As Santas Casas de Misericórdia são hospitais particulares que vivem de verbas públicas e da caridade social. As verbas que os governos federal, estadual e municipal destinam para esses hospitais não chegam a cobrir sessenta por cento dos custos que elas têm. O resto tem que ser levantado junto à sociedade. Por isso toda Santa Casa tem um voluntariado bastante ativo. Isso quer dizer que boa parte dos serviços prestados por uma Santa Casa são feitos por pessoas que trabalham de graça. A maioria das pessoas não sabe disso e acha que o governo está pagando tudo e são as pessoas que trabalham ali os culpados pelo mau serviço prestados pelo hospital.
Machadinho é o Provedor de uma Santa Casa. Para quem não sabe, o Provedor de uma Santa Casa, é uma pessoa da sociedade que é eleita para dirigir o hospital. Ele não é um médico, nem um administrador hospitalar, nem sequer um profissional da saúde. É um voluntário que assume o compromisso de administrar o hospital e geralmente não ganha um centavo por isso.
Machadinho é um desses senhores. Funcionário público aposentado, queria prestar serviço á comunidade. E como era uma pessoa muito respeitada na cidade onde ele vivia, foi eleito Provedor da Santa Casa. Logo de cara se viu com um baita problema. A Santa Casa que ele comanda tem apenas oito leitos e todos estão ocupados, menos um. Ele acaba de receber a informação de que três pacientes acabam de dar entrada no pronto socorro. Um é um senhorzinho de oitenta anos que está com um câncer terminal. Outro é uma gestante de alto risco que precisou ser operada de emergência e precisa de cuidados intensivos. Outro é um jovem de família abastada que tomou todas numa festa, bateu o seu carro esporte em uma árvore e se arrebentou todo. Foi operado de emergência e morrerá se não receber cuidados intensivos.
       Machadinho sabe que só pode atender um dos três. Não tem como improvisar leito na UTI. Isso é impossível em um hospital, embora muitas vezes alguns políticos pensem que é fácil e fiquem pressionando a direção para que atenda um dos seus eleitores. E quando isso não acontece eles viram inimigos do Provedor e fazem tudo para difamá-lo. Isso é o que acontece todo dia em todos os hospitais públicos, mas o povo não sabe disso e pensa que são os médicos, os enfermeiros e os diretores que são os culpados pelo descalabro que existe em nossos hospitais públicos.
       Machadinho terá que escolher. Ele sabe que os dois que forem preteridos certamente morrerão, pois eles terão que ser removidos para outros hospitais e vaga de UTI no sistema SUS é tão difícil de achar quanto um político que cumpra suas promessas depois de eleito. Provavelmente eles só sairão dali como fantasmas que ficarão vagando pelos corredores do hospital até que um anjo consiga convencê-los que eles estão mortos e já não mais pertencem a este mundo.
       A quem Machadinho contemplará? Quem ele escolherá para viver? Quem ele escolherá para morrer? Quem você escolheria?

      Ah! Se voce estivesse no lugar do Machadinho, tem uma coisa que precisa saber antes de escolher. Seja quem for que você escolha, as famílias dos dois que morrerão vão processá-lo por omissão de socorro. Você será acusado de assassino. Pelas famílias dos defuntos e pelo Ministério Público. O Machadinho nem se importa mais com isso. Ele já sabe que não será o primeiro nem o último processo que terá que responder por causa disso. Mas você, que talvez nunca tenha passado por isso, terá que conviver a vida inteira com essa mancha que sabão nenhum conseguirá lavar. As pessoas que acham que as histórias de terror são mera fantasia nunca trabalharam em um hospital público. Aliás, não há melhor lugar para vivê-las de verdade. Para quem não entendeu porque escrevi esse conto, informo que eu sou Provedor de uma Santa Casa de Misericórdia. Por isso sei do que estou falando. Enquanto escrevo este texto, sei que quando eu passar pelo corredor do hospital, esta noite, vou encontrar dois espíritos me esperando para perguntar porque eles foram os escolhidos para morrer. Espero poder convencê-los de que eu não fui o culpado pelo fato de eles terem morrido numa maca no corredor por que eu não tinha leitos na UTI para alojá-los.