O VAMPIRO
A rotina daquele pequeno vilarejo estava prestes a ser mudada nos próximos dias. A pequena comunidade, que contava com uma população de aproximadamente quinze mil habitantes, sempre fora tranquila e pacata. Quase nada acontecia por ali. Era o local sonhado e desejado por muitas pessoas que procuram um lugar sossegado para se viver.
Tudo começou com um telefonema de um morador que ligou para o Doutor Carmelo, delegado do local, avisando ter encontrado o corpo de uma pessoa próximo a sua propriedade. Era uma jovem de aproximadamente vinte anos, filha única de um humilde casal que se mudara para ali há pouco tempo. O corpo não apresentava sinal algum de violência, e apesar da total palidez da jovem, a impressão que se tinha é que ela apenas dormia. A partir dos exames de praxe, feito pelos médicos legistas, é que começou todo o mistério que envolveria as outras mortes que viriam logo a seguir. O corpo da jovem, que apesar de não apresentar nenhum tipo de violência, constatou-se posteriormente, após um exame mais minucioso, que alguém ou alguma coisa sugara-lhe todo o sangue. E o mais estranho de tudo é que apresentava duas marcas de perfurações na altura do pescoço.
Por mais que tentassem não conseguiam chegar à conclusão alguma. A princípio foi arquivado como caso insolúvel, porém nos meses que se seguiram novos casos apresentando as mesmas características voltaram a acontecer. Mais três corpos foram encontrados em lugares diferentes e todos com as mesmas referências analógicas.
Por mais que tentassem esconder os fatos, não teve jeito, a notícia vazou. De boca em boca corria o boato de que havia um vampiro matando pessoas ali no vilarejo. Aos poucos o pânico foi tomando conta dos moradores. Ninguém mais saia à noite e quando saiam era sempre em quatro ou mais pessoas.
A coisa complicou ainda mais quando acharam o filho do prefeito morto em seu próprio quarto. Jovem de aproximadamente vinte e cinco anos, porte atlético, cheio de saúde e, de repente, amanhece morto e sem uma gota de sangue no corpo.
Uma vizinha resolveu procurar o delegado, pois naquela madrugada ouvira um barulho estranho no meio da rua que a fez acordar, e pelo jeito os cachorros da vizinhança toda também, pois eles não paravam de latir um só segundo. E conforme afirmou em seu depoimento, ao levantar-se, olhou pelas frestas da veneziana e viu o Dominique, filho do farmacêutico, parado a poucos metros da casa do prefeito e do nada, quando ela desviou a sua atenção para uma outra casa em que alguém também ascendera a luz, Dominique havia desaparecido misteriosamente.
Chamaram o Dominique para esclarecer algumas dúvidas. E no fim ficou o dito pelo não dito, pois ele alegou ter um caso com uma dona ali das proximidades e que realmente, nas investigações que se seguiram, acabaram por confirmar o seu álibi.
Mesmo assim as pessoas passaram a evitá-lo. Apesar de ter sua versão confirmada pelo delegado os moradores do vilarejo ficaram meio ressabiados, pois todos ali eram suspeitos e o Dominique era o maior de todos. Diziam que ele tinha umas manias estranhas, e uma delas era vagar sozinho a noite feito um lobisomem, e por onde ele passava os cachorros se alvoroçavam feito doidos como se estivessem com medo de alguma coisa.
----Cuidado! Não quero que você ande mais com o Dominique! Alguma coisa aqui dentro de mim está me dizendo que é ele quem anda matando as pessoas. -Dizia a Dona Nízia para a sua filha Caroline, que era amiga de Dominique desde os tempos do primário.
Era comum formarem as rodinhas para prosearem e, como não podia deixar de ser, o assunto preferido era só um: o vampiro que andava aterrorizando as pessoas do vilarejo.
----Eu tenho certeza que é o Dominique! Eu sempre achei aquele cara muito estranho! Ele tem um olhar diabólico, que me causa calafrios! -Dizia o Seu Gustavo da quitanda.
O Seu Venerando ergueu a camisa e tirou uma estaca de madeira, que trazia preso ao cinto por dentro da calça.
----Eu agora, por onde ando, carrego esta estaca! Se o desgraçado cruzar comigo eu racho o coração dele no meio. - Dizia, mostrando a estaca para todo mundo, na intenção nítida que todos a vissem, e se caso o tal do vampiro fosse uma daquelas pessoas que estava por ali, que ficasse esperta, pois ele estava preparado.
Porém parece que não deu muito certo não. No domingo pela manhã, sua esposa achando estranho o silêncio que pairava no ar, resolveu ir até o fundo do quintal, onde há essa hora o Seu Venerando costumava limpar as gaiolas dos passarinhos. Nessa faina diária, que há anos habituara-se a fazer, ele promovia uma barulheira do diabo. Conversava com os bichinhos, assobiava e cantava enquanto fazia a limpeza. E aquele silêncio tenebroso pareceu dizer-lhe que alguma coisa estava errada. E realmente ela tinha razão, assim que chegou aos fundos da casa avistou o Seu Venerando caído próximo as gaiolas que estava limpando, completamente pálido e já sem vida.
Foi um reboliço danado. A gota d’água. Alguma coisa tinha que ser feito. Fizeram uma passeata em direção a delegacia e exigiram que as autoridades tomassem providências urgentes, pois aquilo não podia continuar acontecendo. Uns até mesmo se propuseram a ir até a casa do Dominique e por fogo nela com ele e família dentro.
O delegado conseguiu acalmar os ânimos e informou que a polícia cientifica da capital estava para chegar ali e, com certeza, tudo seria esclarecido. Não havia motivos para decisões precipitadas onde gente inocente poderia pagar pelo que não fez. Com muito custo conseguiu persuadir aquelas pessoas a voltarem para suas casas, e só por precaução mandou que dois policiais fizessem a segurança em frente à casa do Dominique.
O Padre Danilo, que chegara a pouco tempo na paróquia local, em substituição ao padre João que fora mandado para uma outra cidade, convocou os fiéis para uma missa, e logo em seguida a procissão para pedirem a Santa Filomena, padroeira protetora do vilarejo, que intercedesse junto a Jesus para que os livrassem daquela maldição que se abatera sobre todos. Pediu aos fiéis que trouxessem um frasco com água para que durante a missa ela fosse abençoada, e que a mesma serviria de proteção contra as investidas do suposto demônio.
Os dias se passaram e uma calma aparente parecia pairar sobre o vilarejo. Até que, em uma tarde de terça-feira, um rapaz que trabalhava em um galpão próximo a linha férrea chegou gritando dizendo ter sido atacado por alguma coisa e só não morreu porque jogou a água benta sobre o bicho que saiu de carreira pelo meio do mato.
----Você chegou a ver ele? -Perguntou alguém.
----Não! Eu só ouvi o grunhido atrás de uma moita, e quando eu joguei a água, ouvi um urro alucinante e ai o bicho desembestou pelo meio do mato.
Não demorou muito e a notícia se espalhou. Homens, mulheres e crianças se armaram de foices, pedaços de paus e tudo que tinham a mão e rumaram para o local onde o rapaz disse ter visto a tal coisa. O delegado reuniu os policiais e também seguiu para lá. Mais para evitar a morte de alguma pessoa inocente do que encontrar um vampiro. Pois na verdade não acreditava em nada daquilo.
Vasculharam tudo em volta de onde o rapaz disse ter visto o bicho, mas não encontraram nada. Já estavam para suspenderem as buscas quando ouviram alguém gritando.
---- Aqui! Aqui! Tem alguma coisa escondida atrás do espinheiro!
Todo mundo correu para lá, inclusive o delegado e os policiais.
----Tem um troço enfiado naquela moita! Ele estava parado ali na trilha e assim que me viu se enfiou ai nesse meio. -Gritou um rapaz com um facão nas mãos.
Um dos policiais sacou o revólver e apontou na direção em que o rapaz havia indicado. O Doutor Carmelo interveio.
----Baixa essa arma! Você está ficando louco! A gente nem sabe o que tem ali! -Advertiu o Doutor Carmelo.
O Padre Danilo que havia pegado carona com um dos policiais apoiou o Doutor Carmelo.
----O delegado tem razão gente! Nós não podemos sair atirando em tudo que se mexer a nossa frente! Eu acho melhor alguns de nós darmos a volta e cercar o bicho pelo outro lado!
E foi o que fizeram. Cercaram o suposto monstro e atearam fogo no mato na tentativa de enxotá-lo de onde havia se escondido. De repente aquela coisa pulou do meio do espinheiro e veio em direção a um grupo de pessoas que haviam se posicionado em um dos lados. Eles largaram tudo e saíram correndo. O bicho passou grunhindo feito um doido e parou mais a frente no meio da trilha.
----È um porco do mato! -Gritou alguém.
O pobre do animal, confundido com uma besta fera, na verdade encontrava-se mais assustado que aquelas pessoas que haviam corrido apavoradas pensando ser o diabo querendo pegá-las.
----Olha o vampiro ai! -Brincou um dos policiais.
Vendo que não iriam encontrar nada por ali, resolveram terminar a caçada e voltarem cada um para casa. O Padre Danilo dispensou a carona, pois estava bem próximo a um sítio de uma senhora que havia pedido para que ele passasse por lá para apanhar alguns livros que um sobrinho seu havia trazido da capital a seu pedido.
----Se o senhor quiser mando dois policiais acompanhá-lo até lá! -Propôs-lhe o delegado.
----Não se preocupa não Doutor Carmelo. Daqui até lá dá no máximo uns quinze minutos. Eu chego num piscar de olhos.
----O senhor tem certeza que não precisa de proteção? -Insistiu o delegado.
----È lógico que eu preciso de proteção, só que é da proteção divina! E pode ter certeza que o bondoso Deus estará me acompanhando, sempre, por todos os lugares que eu andar. Mas mesmo assim eu agradeço por se preocupar comigo. -Respondeu o Padre Danilo.
O Padre Danilo despediu-se de todos e seguiu em direção ao sítio onde iria buscar os seus livros enquanto o resto do pessoal retornava para o vilarejo. Já havia andado uns dez minutos quando teve a impressão de ter ouvido algo atrás de si. Voltou-se rapidamente, porém não conseguiu ver nada. Ficou parado ali por alguns segundos tentando ouvir alguma coisa, porém ouviu apenas o pio de um pássaro que havia pousado ali perto de onde estava parado. Continuou andando e de repente teve a impressão de estar ouvindo novamente passos atrás de si. Virou-se instintivamente e deu de cara com o Dominique. O Padre Danilo deu um pulo para trás e caiu sobre o mato.
----Você quer me matar do coração! -Gritou o Padre Danilo.
----Desculpe-me! Eu não queria assustá-lo! -
O Padre Danilo levantou-se rapidamente e ficou olhando para o Dominique sem dizer nada.
----O Senhor também está com medo de mim? -Perguntou Dominique.
----E porque razão eu deveria ter medo de você? Retrucou o Padre Danilo.
----Todos lá na cidade estão dizendo que eu sou o vampiro que anda matando todo mundo.
----Besteira! Isso é só crendice do povo! -Retrucou o Padre Danilo.
----Então o senhor acha que vampiros não existem?
----È claro que não! -Retrucou de imediato o Padre Danilo.
----E se de repente eu fosse um vampiro? Perguntou Dominique.
----Mas acontece que você não é! E disso eu tenho certeza! - Respondeu o Padre Danilo.
Dominique permaneceu em silêncio por alguns segundos, olhando fixamente para o crucifixo que o Padre Danilo trazia pendurado no pescoço.
----Algum problema Dominique? -Perguntou o Padre Danilo
----O crucifixo! Respondeu ele.
----Por acaso o crucifixo te incomoda? -Perguntou novamente o Padre Danilo.
Dominique não respondeu. Permaneceu calado olhando firme nos olhos do Padre Danilo. Era assim que costumava encarar as pessoas. Existia algo de diabólico na sua maneira de olhar, por isso muitos ali tinham medo dele. Depois de um prolongado silêncio perguntou:
----Se o senhor não acredita em vampiros por que o crucifixo?
----È apenas um símbolo da Santa Igreja Católica! -Respondeu o Padre Danilo.
----Se eu fosse um vampiro essa merda não me impediria de matá-lo!
----Onde você está querendo chegar? -Indagou o Padre Danilo.
----Estou vendo o medo estampado em seus olhos! -Zombou Dominique.
Dominique veio andando vagarosamente em direção ao Padre Danilo, que instintivamente deu um passo para trás.
-----Vou te contar um segredo Padre Danilo: eu sempre tive curiosidade em saber se o sangue de um padre é igual ao de uma pessoa comum.
O Padre Danilo continuou se afastando, tentando manter-se longe do Dominique, que continuava avançando em sua direção.
----Afasta-te de mim ou se arrependerás para o resto de sua vida! -Gritou o Padre Danilo segurando o crucifixo.
E ali sozinhos, sem ninguém como testemunha, ouviu-se um grito quase que abafado, e logo em seguida um corpo rolou pelo barranco. Um relâmpago cortou o céu, acompanhado de um vento forte de chuva que veio chegando aos poucos até tornar-se uma forte tempestade. O silêncio agora era quebrado pelo barulho da chuva que caia em forma de dilúvio, alagando superficialmente os pastos que rodeavam as montanhas em volta da cidade.
A manhã chegara calma ali no vilarejo. O sol brilhava límpido após a tempestade do dia anterior, prenunciando um momento de calmaria diante de todas aquelas atribulações que envolviam uma quantidade enorme de mistério e desconfiança em torno das mortes acontecidas nos últimos meses naquele local. Porém não demorou muito para que tudo aquilo fosse quebrado assim que um rapaz, montado em uma bicicleta, parou em frente à delegacia e entrou gritando:
----Tem um cara morto lá no meio do mato, perto de onde a gente estava ontem!
O Doutor Carmelo, que estava sentado em sua sala, veio correndo ver o que estava acontecendo, e deparou-se com um dos policiais tentando acalmar o rapaz.
----O que foi? - Perguntou.
----Esse rapaz está dizendo que tem um corpo caído em uma vala perto de onde estávamos fazendo as buscas ontem! -Respondeu o policial.
----E você reconheceu quem era? -Perguntou-lhe o Doutor Carmelo.
----Não deu para ver! Ele está caído dentro de uma vala e eu não tive coragem de descer até lá para ver quem era não! -Respondeu o rapaz.
O Doutor Carmelo reuniu os policiais e rumaram para lá. A certa altura do caminho tiveram que descer das viaturas, pois devido à chuva do dia anterior a trilha ficara intransitável. Seguiram a pé até o local e realmente constataram que havia alguém caído dentro de uma vala. Um dos policiais, com o auxílio de uma corda, desceu até o local e confirmou que realmente aquela pessoa estava morta. Posicionou-se de modo que pudesse ver as pessoas lá em cima e gritou:
----Vocês não vão acreditar!
----O que foi? -Perguntou o Doutor Carmelo.
----È o Dominique! - Respondeu.
O policial amarrou a corda em volta da cintura do rapaz e pediu para que o puxassem
----Igualzinho os outros! Completamente pálido e duas perfurações na altura do pescoço! Parece ser a marca registrada desse demônio! -Comentou o Delegado.
Logo em seguida chegou outro grupo de pessoas que ficaram sabendo que mais um morador havia sido assassinado e correram para lá. Entre eles estava o Padre Danilo, que assim que viu o corpo do Dominique estendido a beira do barrando, fez o sinal da cruz e rezou um pai nosso acompanhado por todos que ali estavam.
----Que Deus se penalize dessa alma inocente. Pois com certeza era uma ótima pessoa, e que infelizmente, de maneira covarde, foi acusado de coisas da qual não tinha culpa alguma e teve sua honra de bom cristão confundida com as mazelas praticada pelo satanás! Que Deus o tenha!
Terminada a oração, o Padre Danilo olhou para o rosto de todos que ali estavam presentes e percebeu a vergonha estampada no rosto de cada um deles. A maioria tinha a certeza absoluta de ser Dominique o responsável pelas mortes ocorridas nos últimos meses no vilarejo. Olhou mais uma vez para todos, um a um. Sabia que brevemente não os veria mais, pois logo pela manhã recebera um telefonema de seus superiores avisando que outro padre estava sendo mandado para aquela comunidade. Ele seria enviado para uma missão de suporte evangélico no Haiti.
Levaram o corpo para ser velado na igreja da cidade. Na outra semana, durante a celebração da missa dominical, o Padre Danilo despediu-se de todos. Na segunda feira a tarde partiu para o Haiti juntamente com alguns soldados do exército brasileiro, deixando para trás dúvidas e incertezas que perduram até os dias de hoje.