A Lenda do Homem que não enxergava a claridade

(Sebastião Tahan)
 
 
Por entre magia e ficção, ambas assomadas ao tempero inebriante do sobrenatural, nasce uma pavorosa lenda, a lenda de um caminhante cegado nas trevas de uma infindável noite, um homem condenado à irreversível eternidade das trevas.
— O cenário era tão simples, quanto o de uma leve andorinha bailando entre nuvens. A lua era acesa e cheia, tingida de marcas negras, quando avistadas ao longe. Um farrapo de nuvens diáfanas arrastava-se pelo céu a oeste, completando a única parte clareada que adornava o firmamento, pois nenhuma estrela reluzente se achava pronta a pontilhar o céu. Rasa vegetação, obscurecida pelo negrume, alinhava a sucessiva sequência de lombas de terra, até aos confins do além. A árvore defeituosa dobrava pela esquerda, impossibilitada a proliferar sombras amenas de meio-dia. Suas folhas recheadas rugiam ao vento, enquanto embatiam-se umas nas outras. Achava-se, o enigmático homem, assentado ao pé do arvoredo, no topo de uma colina minúscula, inerte no espaço deserto, contemplando as penosas marcas de um tempo envelhecido, a desesperança avivada pelas garras indomáveis de um passado cruel, nas longínquas terras de Bangão. — Narrava o Velho Quituxe, com o seu especial cachimbo preso aos lábios, cerrados em uma linha rígida, a obscura lenda para dez pequenotes ansiosíssimos, imóveis como uma escultura, os olhos aparentemente inapagáveis, tentando idealizar claramente o cenário em suas memórias inocentes, na calada de uma noite muito escura, de cacimbo, em Angola, onde nenhum rasgo da luz dos céus cintilava sobre a obscuridade tenebrosa, enquanto repousavam das fadigas de uma longa excursão, bem no centro da floresta de Mayombe, à volta de uma fogueira que queimava lenhas de embondeiro para que se mantivesse viva e, estalava pequenas gotas de fogo, que se apagavam ao vento forte, sobrecarregado de pesada frescura transparente, na região norte da província de Cabinda. O apavorante som do bosque alimentava a evidente sensação de desespero dos pequenotes. A aragem fria criava uma onda de arrepios momentâneos em suas peles macias. Mas, com certeza, a lenda era o principal centro de atenção naquele precioso e inigualável momento.
— Desvendava-se também — Continuou o velho da barba grisalha e, ele já era um pouco curvado. — Nas margens do Rio Dande, em Caxito, borbulhantes águas agitando em brasa as cortinas do silêncio. Mas, para o homem aqui em causa, todo o sonido passara a lhe ser familiar. Já não havia enigmático estrondo que o fizesse, repentinamente, despertar de seus devaneios; a não ser aos que auscultava durante o amortecer da lua, entre quatro paredes invisíveis, um bando da passarada exótica cantarolando cantigas de ninar e, vagando inútil, aos quatro ventos, pelo céu afora.
— Velho Quituxe. A lua amortecia? Como é possível, se a noite nunca terminara? — Indagou uma criança que se achava tremulando, a voz soou numa onda de puro terror.
— Sim filho, a lua amortecia. Tal como o sol decai no horizonte, durante a aparição dos crepúsculos vespertinos, também fazia a lua. Entretanto, quando ele chapinhava na lama, em cada dia de chuva fria e interminável, a luz celestial vazava por inteiro. Tombava uma escuridão deveras negra sobre aquele espaço vazio e, então, ele nomeava aquilo como a sua noite profunda e, se por acaso, a luz morta retomasse, ele consideraria como o alvorecer de mais um novo dia de solidão imparável. Mas ele nunca deixara de imaginar o dia em que estaria lá fora, fora da estranha dimensão paralela da viuvez, na claridade fraca e aprazível de um pôr-do-sol, que, igualmente desapareceria.
— Velho Quituxe. Como foi este homem lá parar? De onde precedeu ele? Como era seu rosto? Quais eram as origens que o brandiram? — O mesmo rapaz não conteve a curiosidade que lhe aguilhoava o espírito e, desatou-se, de um momento para o outro, em questionamentos apreensivos e ininterruptos.
O Velho, porém, tencionava prosseguir a narração, após se ter dado ao privilégio de quedar taciturno durante um bom tempo, erguendo a bengala surrada sustida pela mão direita e, fitando, sem ver, a amarelada fogueira que ardia. Parecia que ele tencionava escolher as palavras com meticuloso cuidado, para que não atemorizasse, ainda mais, os fedelhos que o circundavam.
— Ó despretensioso menino — Progrediu o Velho, pestanejando por detrás dos óculos de armação já agastada. — Para tal, peço que vós ouçais, em primeiro lugar, o conto dos três diamantes de sangue.
— Três diamantes de sangue? — Indagaram todos, assarapantados
— Sim, isso mesmo. — Condescendeu o Velho. — Bem. Nos anos de 1950, nas grutas do Muzenzo, na província do Uíge, afirmou um misterioso homem que, por lá, naquele interior ininteligível, repousavam três diamantes valiosos, três diamantes de sangue. Portanto, um pequeno rasgo de duas rochas impermeáveis permitia que as pessoas os vislumbrassem, com o reflexo do sol faiscando por entre eles. Mas era apenas uma morosa apreciação, sem que tivessem a intenção descabida de pesca-los, com um forçoso empurro de mãos. — Ah! — Suspirou, como se estivesse relembrando uma pesada tragédia.  
— Velho Quituxe. E aonde é que entra a história do homem que não via a luz? — Interpelou Kaputo, o menino desassossegado.
— O Soba Sabalo, dono da aldeia, sempre perambulou pelas ruas, noticiando aos habitantes daquela terra que ninguém jamais podia tomar as três preciosas pedras de assalto, pois, se assim fosse, quando as brutas rochas rompessem sua pele, o veneno mortal que as mesmas continham, originaria lancinante dor em brasa que, depois, subiria de seu punho até a dobra de seu cotovelo e, consequentemente, uma noite sem fim se fecharia sobre ele.
Todos engoliram em seco.
— Hammm, já entendi. O gajo pinou o mambo. Né kota? — O pequeno Kaputo enfatizou com sarcasmo. A malta expandiu-se em estrepitosas gargalhadas.
— Sim filho, sim. Estupendo! Vós tendes uma imaginação fértil e radiante. — Lisonjeou afável o Velho. Seu lábio se repuxara em um sorriso torto, rindo-se disfarçadamente da espontaneidade de expressão do rapaz e, escondera seus dentes que, longos anos volvidos, já se iam emigrando. — Ora bem. O enigmático homem, de rosto magro, crestado do sol intenso a que se expunha todos os dias e, avincado de rugas extemporâneas, ao tomar ciência daquele segredo imperscrutável, fora movido por uma ambição terrena, porque, ele queria tornar realidade os sonhos mais improváveis, tais como o de ser o soberano de uma pátria infrangível, esquecendo-se de que algo além da possibilidade de justificativa racional o aproximaria inexoravelmente do fim – do fim de tudo. Entrementes, estava ele de pé, em um raio brilhante de sol, vagueando a esmo, sem rumo certo, a procura do tesouro que, segundo ele, com aquela toda fartura, não mais atingiria a baixeza da penúria inconsolável a que se encontrara. Mas algo muito ruim aconteceu. Quando sua mão esquerda agarrou a ponta de um dos diamantes que tremeluzia aos raios do horizonte, um som apavorante, como o estrondo de pedregulhos em uma ladeira rochosa, arrebentou com os seus ouvidos. Seu coração afrouxou e, segundos mais tarde, descrevera o recomeço dos batimentos. Todavia, uma voz medonha perguntou-lhe de algum lugar ao longe, se aquilo que ele estava a fazer era certo. Não – ele replicou. E por desonra aos espíritos antigos que lá esvoaçavam e pernoitavam e, tal como advertiu o Soba Sabalo, a noite se fechou sobre ele.
— Velho Quituxe. Será que ele conseguiu escapar dessa?
— Não. Segundo reza a lenda, ele deve ter ficado por ali preso, aferrolhado na mesmice eterna da soledade, disparando indagações contra os meandros de seu subconsciente abatido, contemplando antigas memórias, as pesarosas marcas de um passado recente, que, ele nem sabia de onde elas provinham, até que, por fim, a morte o extinguisse. Sacudia ininterrompidamente a cabeça para que pudesse dispersar o rumo de seus pensamentos. Mas uma coisa tenho por certa, pois, embora ele estivesse sujeito à vontade de outrem, bem dizer! Dos espíritos, certo dia em que a esperança lhe havia reaparecido, lançara uma andorinha aos céus.
— Uma andorinha Velho Quituxe?
— Sim. E era levezinha, como um papel suave.
— E o que fez essa mesma andorinha?
— Disparou céu adentro, a procura de vestígios dos anjos de Deus que, de certa forma, ajudar-lhe-iam a desaferrolhar-se das marcas do sombrio contratempo a que se achara. Nesta breve lenda, meus caros, reside uma tamanha reflexão a ter em conta.
E aquelas palavras se dissiparam no ar, pairaram ali na brisa gelada. Os pequenotes deram por si já a ninar, esgotados da longa trilha a que tiveram de percorrer e, ofegantes para avistar, na manhã ensolarada do dia subsequente, o sol atravessando as Limbas da floresta, repletas de folhas dóceis e macias ao toque.
 
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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 08/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4914846
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