357-TOQUE DE RECOLHER-Assassinato em favela carioca

O perureiro Altamiro Gouveia estava preocupado. O aluguel diário da Kombi por ele arrendada para fazer o serviço de transportes de passageiros estava atrasado. Tinha de se virar, pois, mesmo sendo um serviço considerado “ilegal”, seu compromisso com o dono do veículo era mais do que sagrado. Bastavam três dias de atraso no pagamento no aluguel, e ele perderia o direito de dirigir a perua. O gerente da garagem era implacável, não admitia desculpas nem protelações.

Por ser uma atividade marginal, isto é, ilegal, os riscos vinham de todos os lados. Cuidado máximo com os policiais, algum dinheiro trocado sempre à mão para soltar uma cerveja aqui, outra ali, molhando a mão dos fardados que por acaso encontrasse no percurso. O atraso nos pagamentos à “garagem” também era sério. Tá assim de negão querendo alugar uma perua, é só bobear e perco a “concessão”.

Eram vinte e uma horas de uma noite quase tão quente quanto havia sido o dia todo. O motorista estava na direção há mais de quinze horas, e não havia faturado o suficiente para cobrir o aluguel acumulado de dois dias. Tenho de aproveitar a noite, fazer ainda algumas corridas extras, fora do roteiro, senão, tou fudido.

Tendo saído da Praça 15, passou pela Candelária, onde viu um grupo de pessoas que lhe acenaram. — Opa, parece que vou cavar algum.

Encostou a perua e num rápido diálogo, ficou acertada a corrida. Eram quatro homens e três mulheres. Queriam ir para as bandas da Tijuca, ficando acertado que a corrida seria até à praça Saenz Peña.

—Vão se divertir...? — perguntou Altamiro.

—É, meu chapa, a gente vai se divertir, sim. — respondeu um deles, de cabeça raspada, orelhas de abano, dentes cavalares em gengivas rubras, quase cuspindo as palavras.

Altamiro notou que estavam um tanto ao quanto “alegres”, já teriam tomado algumas ou talvez até cheirado umas “carreirinhas”.

Guiou em silêncio por toda a Avenida Getúlio Vargas. Os passageiros brincavam entre si, beliscando-se, trocando carinhos, um casal lá atrás se beijava. Tudo muito normal entre pessoas que estão a fim de se distrair.

Ao chegarem à praça Saenz Peña, o chefe fala com Altamiro.

—Aí, meu, queremos entrar na favela. Vamos prum baile funk lá na pracinha.

—A gente havia combinado...— começou Altamiro.

—Num tem perigo, nóis somo conhecido da turma aí em cima. Somo fregueis, ninguém vai incomodar a gente.

Altamiro compreendeu o subentendido.

—Tá bom. Mas só até a pracinha. Depois, vou ter cuidado na volta, quando vocês não tiverem comigo, pra me garantir nada. E quero receber agora a corrida.

—Claro, meu. — O gigante ao seu lado enfia a mão no bolso, saca algumas notas de cinqüenta reais e põe no bolso de Altamiro. — Vai firme. Tá limpo, eu aviso os vigia pra te darem trânsito livre.

Começam a subir pela viela.

—Tá estranho. Num vejo ninguém. — Altamiro fala com o que parece ser o chefe da turma, sentado ao seu lado. Ao mesmo tempo em que observa o camarada ao seu lado levar a mão à cintura e sacar uma pistola.

—É claro. A favela tá com toque de recolher. Depois das dez, ninguém pode transitar por aí sem autorização.

—Melhor a gente voltar. — Altamiro percebe que caiu numa armadilha, agora está nas mãos de um grupo armado.

— Segue em frente. A gente é de paz. Eles sabe quem nóis somo. — Ordena o líder. Os outros homens também estão com revólveres nas mãos, e até uma das moças empunha uma pequena pistola.

Altamiro sabe que corre perigo. Infringir o “toque de recolher” é correr perigo de vida. Mas, se na frente tem perigo, ali ao seu lado está a ameaça maior: homens armados obrigando-o a entrar na favela.

A viela sobe o morro em curvas de uma enorme cobra negra. A pracinha aparece de repente. Altamiro ainda está fazendo a curva para adentrar no largo, quando sombras movimentam-se, saindo de vãos entre as casas. As sombras portam armas de cano longo – fuzis, metralhadoras – e estão encapuzadas.

—Pare ai! — Alguém grita, disparando a arma para o ar.

Altamiro freia bruscamente.

—Fica frio, meu. — Falando com Altamiro, o homem ao seu lado prepara-se para abrir a porta. Outro disparo é ouvido, a bala passa perto do veículo.

—Todo mundo quieto!

—Sou o Costaneira. — Grita o passageiro que queria abrir a porta. — Carlinhos está me esperando.

Costaneira...Carlinhos...Puta que pariu... Que fria que estou metido. — Altamiro, carioca vivido, sabe bem quem são as personalidades cujos nomes ouviu. Traficantes, assassinos, criminosos conhecidos da polícia, já condenados e foragidos de prisões.

—Abaixa aí e fica quieto. — Um encapuzado se aproxima, arma apontada para o interior da Kombi.

—Calma, cumpadre. Sou Castanheira e esses aqui são cumpadres também. Tudo gente fina. Respondo por eles. — O chefe da turma na Kombi parece tranqüilo, mas os outros estão no mínimo excitados.

A Kombi agora está cercada por uns dez ou doze encapuzados. O que está mais próximo usa um celular, fala rapidamente e ordena aos companheiros:

—Tá limpo. Deixa o Costaneira e seu pessoal descer. A Kombi fica aqui.

Altamiro treme. A qualquer momento, a situação pode escapar do controle. Levanta as mãos da direção e permanece sentado.

—Tá bom, Castanheira, avisa pros moço aí de fora que vou descer com a perua sem passageiro.

A turma de passageiros desce, enfiando as armas nas cinturas. A mulata que empunhava um pequeno revólver já o escamoteou por debaixo da saia.

Uma luz se acende no segundo andar de uma casa. É um farol, cujo facho corre por toda a praça deserta, e sobre os homens agrupados ao redor da Kombi. Por um instante, e depois se apaga.

—Ceis aí, corram naquela direção.

O bando corre para uma porta que se abre, um quadro de luz no negrume das paredes. Ao tropel se mistura o grito de uma mulher, de alhures, e uma rajada de metralhadora. O terror faz Altamiro tremer. Vem-lhe uma vontade de urinar, que não consegue conter. Sente o assento quente sob sua bunda.

Minha santa Eduige, me proteja....

Os passageiros somem quando o quadro de luz desaparece. O negrume volta à pracinha, na qual está a Kombi, ainda cercada pelos encapuzados.

—Cara, cê num sabe onde veio se metê. — A voz cava de um encapuzado soa tonitruante aos seus ouvidos. — Num sabia do toque de recolhê?

—O chefe aí me garantiu que tava tudo limpo.

—Desce daí, vamo!

Altamiro abre a porta e põe uma perna pra fora. O encapuzado puxa-o pelo braço, jogando-o ao chão. Um chute atinge o lado direito, no braço.

—Aiiiiii! Por favor, não tenho nada com....

—Cala a boca, branquelo. — Outro pontapé e uma coronhada na cabeça.

—Aaaaai! Ai, ai, ai. Pelo amor de Deus, num...

Outra sombra levanta o chofer com facilidade, encostando-o no veículo. Um tapa lhe estala na cara.

—Uiiiiii! –Meu Deus, que é...

Largado pelo homem que o esbofeteou, cai de borco no chão.

—Ceis dois aí — diz o chefe dos mascarados. — Taca fogo na perua.

Altamiro ainda deitado, entre gemidos, grita:

—Não, por favor, não... Me deixe ir embora....Juro que nunca mais venho por aqui.

Outro chute na perna interrompe seu brado. Sente as costelas quebradas entrando como facas peito adentro. Não tem forças para se levantar. Sente um cheiro forte de gasolina, a seguir, um clarão e o calor se aproximando. Arrasta-se alguns metros. O encapuzado ao seu lado o mantém sob a mira da metralhadora. Semi-inconsciente, olha na direção da Kombi, totalmente tomada pelo fogo. Tenta se levantar, e uma vez mais é impedido. Desta vez, estando já de quatro, sente o pontapé por trás, que o prostra novamente.

Na pracinha ouve-se o crepitar das chamas e o arfar dos mascarados, loucos na sua sanha de espancar o motorista. Todos se juntam na pancadaria. Outro encapuzado se aproxima, vira-o de costas e dá-lhe uma coronhada entre as virilhas, atingindo sua parte mais sensível. Ele desmaia de dor.

O corpo do homem branco tornou-se uma massa de carnes dilaceradas e sangues escorrendo por toda parte.

O veículo incendiado explode.

—Sujou! Vamembora!

A mobilização é instantânea, as sombras desaparecem num átimo, por entre as meias-águas e paredes baixas.

Ao amanhecer, o que restou da Kombi — negro esqueleto de metal quente — permanece na praça, como um monumento fúnebre. Ao seu lado, ainda com vida, está Altamiro.

Entre os moradores da praça e adjacências, ninguém sabe de nada, ninguém viu nada, ninguém ouviu nada. É a lei do silêncio e da intimidação. Chamar a polícia, nem pensar. Assim, ninguém fala em espancamento nem incêndio.

O motorista foi socorrido pelos moradores da vizinhança. Morreu antes de chegar ao pronto-socorro do Hospital Souza Aguiar.

Antonio Roque Gobbo –

BH, 21/agosto/2005

Conto 357 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/08/2014
Reeditado em 06/08/2014
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