Dom

Desde criança, Myke Havrah previu o futuro. A forma de suas previsões era sempre através de um flash. Sua família, religiosa, acreditava a princípio que o garoto possuía demônios em seu corpo. Todavia, quando salvou seus avós de um acidente certo, usando da clarividência, não restou mais dúvidas aos Havrah: Myke possuía um dom, dado pelos céus. A princípio, Myke chamava sua previsão de futuro de dom, até que se tornou um inferno na sua vida, atrapalhando-a significativamente – inclusive o fazendo ter vivência de dias sem efetivamente vivenciá-las, no momento, e até mesmo após. E, por mais que Myke praticamente vivesse tudo anteriormente aos fatos, por causa de seu dom, jamais previu os fatos daquele dia.

Era uma ensolarada tarde de novembro, por volta das três horas, quando a turma do 4º Período de Direito da Universal Faculdade de Direito de Aleckry (UFDA) adentrou no interior do Hospital Psiquiátrico Albuquerque Aguiar, localizado no bairro Alavahja, centro-sul da cidade de Aleckry. Construído em 1874 como hospital de tratamento para os tísicos, em 1902 foi transformado em hospital psiquiátrico para tratar os deficientes mentais – e aí adentravam não apenas os deficientes mentais per si, mas também aqueles que a sociedade ou os poderosos diziam ser deficientes mentais. Atualmente o Albuquerque Aguiar comporta apenas os inimputáveis – os deficientes mentais que cometeram crimes sem ter discernimento da ilicitude do ato.

Os alunos do 4º período de Direito da UFDA adentrava no enorme hall de entrada do Albuquerque Aguiar, juntos da Dra. Higunai Shikuza, PhD em Psiquiatria Forense pela UFDA e “um exemplo a ser seguido”. Segundo as lendas, Dra. Shikuza era bisneta da Dra. Agakai Hyukaga (1876-1954), uma das fundadoras do Albuquerque Aguiar e uma das melhores e mais famosas psiquiatras do hospital.

Dentre os alunos que tiravam fotos do belíssimo hall de entrada do hospital, sob a voz da Dra. Shikuza, que explicava a história do local, estava Myke. O rapaz, assim como os demais, fitava o hall. Sentia um dejà vu ao fitar tudo aquilo, pois era idêntico ao estranho sonho que teve na noite passada – não seria estranho se fosse apenas um sonho de previsão do futuro, mas era estranho porque simplesmente findava no meio, ficando tudo negro enquanto uma voz feminina dizia constantemente, enquanto lhe sacolejava: “Myke! Myke!”

Caminhando junto dos companheiros de labuta, eis que, repentinamente, enquanto todos adentravam no interior de um dos dois compridos corredores que desaguavam no local, algo chama a atenção de Myke. Era um quadro de avisos. Havia vários, sendo que a maioria deles era avisos internos. Um deles, todavia, chamou a atenção do rapaz. Era uma folha de ofício, amarelada – aparentemente corroída pelo tempo -, com uma foto – parcialmente apagada – logo abaixo de um enorme “ATENÇÃO!”, e acima de um escrito. A foto mostrava – aparentemente, por causa da corrosão parcial – uma garota, de aparentes oito anos de idade, com cabelos enegrecidos, tampando-lhe o rosto. Abaixo da foto, o escrito:

“Desapareceu hoje da cela 13 a internada Anne McCarthy, 8 anos. Seu quadro de saúde é grave. Padece de esquizofrenia. Todo cuidado com ela é pouco.

[...] – parte totalmente ilegível.

Aleckry, 13 de junho de [novamente ilegível] 10”.

- É hoje?! – se perguntou Myke, em pensamentos. – Mas o papel está tão amarelado.

Um flash aparece bem em frente aos olhos de Myke. Este assusta. Viu uma garota, idêntica à da foto, sentada em uma maca, atrás de uma grade, fitando o rapaz.

- O que foi isso? Outra premonição? – se perguntou, em pensamentos

“Myke. Vamos.”, disse a Dra. Shikuza, logo atrás dele. O rapaz virou-se de costas. Não havia ninguém. Percebeu que a voz veio do corredor às suas costas. Caminhou em sua direção, sem perceber ter adentrado no corredor errado.

Myke andava por um tenebroso corredor no interior do Albuquerque Aguiar. Não havia a entrada de luzes externas ou de ar puro – não havia sequer janelas. As paredes eram grades – onde ficavam as celas dos deficientes mentais. Eram celas – pareciam celas de presídio – diminutas, de 1,5m de largura por 2m de comprimento e 3m de altura. Cada uma das celas era ocupada por um internado apenas.

Todos os deficientes mentais o fitavam. Alguns subiam na grade e gritavam para ele, alvoroçados. Outros tentavam agarrá-lo. Myke apenas desvencilhava deles. Outros, mais quietos, apenas o fitavam, em total silêncio. Seus olhos pareciam devorá-los. Pareciam querê-lo. O incômodo era em demasiado.

- Onde está a minha turma? Será que me distanciei tanto assim? – se perguntou o rapaz, em pensamento

Continuou a caminhar pelo corredor, que, ao seu final, apresentou uma bifurcação, que apresentou outra bifurcação no seu final, e assim por diante. Myke acabou por virar à esquerda, depois à direita, esquerda e direita. Tinha, no peito, uma leve sensação de saber andar pelo local.

Ao virar em um dos corredores, teve um flash. Fitou o corredor, com paredes carcomidas, escuro – não havia luz por ausência de janelas – e com grades de madeira. Havia diversos internados, assim como os corredores anteriores. Entretanto, neste todos estavam quietos, fitando o rapaz à espreita, escondidos.

Caminhou pelo corredor, fitando todos os pontos possíveis. O que a priori parecia ser apenas um flash, depois revelou ser o próprio local.

- Que estranho esse local. – comentou consigo mesmo, em pensamento – Parece que esse local foi retirado de alguma foto do passado.

- E de fato foi. – disse alguém, às suas costas. O susto foi tamanho por parte de Myke que este deu um pulo, literalmente.

O rapaz virou-se, de inopino. Fitou o restante do corredor vazio.

- Mas... – pensou, assustado – Não há ninguém.

- Estou aqui. – disse a pessoa. A voz era oriunda do interior de uma cela logo à sua frente. Myke percebeu que a voz era de uma menina, uma criança, embora a mesma tivesse uma determinação de adulto.

O rapaz caminhou até ficar frontalmente à cela. Fitou uma garota, de pouca idade, sentada sobre a cama com as pernas e braços dobrados e os cabelos enegrecidos jogados para trás. Possuía traços finos e delicados no rosto jovial, embora o seu olhar determinado causava-lhe medo.

“A menina do aviso”, pensou Myke, surpreso, referindo-se à garota que se encontrava desaparecida.

- Exato! – disse a garota.

- Quem é você? – perguntou; embora, em mente, já soubesse a resposta. – E como sabe o que penso? – essa, para ele, era a pergunta mais importante.

- Sou Anne McCarthy, e sou internada deste hospital.

- Aqui não é lugar para crianças. Aqui é para criminosos. – Myke lembrou-se da aula da Professora Ava, a “Professora-Mala”, que lecionava sobre Direito Penal. Ela lhes explicou que os hospitais psiquiátricos são destinos aos inimputáveis, ou seja, aqueles que, devido à doença mental, não tinham capacidade de entender sobre a ilicitude do ato que cometeu. Lembrou-se ainda que apenas os maiores de idade possam ser responsabilizados por seus atos.

- Hu! – Anne soltou um riso de deboche. – Enfim, estou presa aqui por ter a mesma “deficiência” – Myke percebeu a vontade da garota em relativizar o significado da palavra deficiência – que você.

- Do que está falando?

- Do dom da premonição.

Tamanha a surpresa que Myke ergue as sobrancelhas. Repentinamente, eis que o rapaz percebe o interior da cela de Anne, com suas paredes todas escritas a giz.

- Você também enxerga o futuro?

- Sim. Da mesma forma que você.

- E você escreve na parede o que você enxerga?

Anne ficou em silêncio. Myke repetiu o seu ato. Depois, percebeu algo, que julgava necessário perguntar:

- Você não tinha fugido? Tem um anúncio na entrada dizendo sobre sua fuga, mas vejo você presa. – Myke ergueu o olhar por um momento. Tentou enxergar o número que se encontrava logo acima da cela de Anne. – E na cela 13, a sua cela.

- Quem está fugindo é você! – Myke sobressaltou-se. Naquele momento, Myke teve outro flash. Fitava-o no interior de uma cela, encarcerado.

- Como assim, eu? – o rapaz adentrou em um súbito desespero.

- O hospital lhe quer. – disse, apenas. Myke assustou-se.

Anne projetou-se a parte de cima do seu corpo para frente, utilizando-se dos braços na beirada da cama para se segurar.

- Não adianta tentar fugir, Myke. – a garota começou a descer da cama lentamente, descendo pela beirada, com estranhos trejeitos, semelhantes a de uma aranha

Myke distanciou-se da grade. Anne chegou ao chão e levantou-se. Os cabelos, que caíram sobre sua face, ao se levantar, bagunçaram-se, tampando parcialmente o seu rosto.

Caminhou com os pés descalços sobre o chão sujo do local, em direção à grade. Como havia outra cela às suas costas, Myke caminhou apenas até a metade do corredor.

- Não adianta tentar fugir, Myke. O hospital lhe quer. Eternamente lhe quererá.

Um flash rapidamente aparece à frente do rapaz. Este se enxergou no interior de uma cela, preso, trancafiado atrás de uma grade.

- Por que ele me quer? – perguntou Myke, amedrontado

- Porque você é dele. – respondeu a garota. Continuou, em seguida – E, enquanto você continuar sua fuga, os fantasmas do Albuquerque Aguiar jamais descansarão.

Anne encostou-se à grade que a segurava. Transpô-la, com a mão direita. Myke sobressaltou-se.

- Por que a surpresa? Eu sou apenas... – perguntou Anne. Myke não titubeou, correu, antes de terminar de escutar a fala da garota.

- Não adianta correr, Myke. Este é o seu mundo. – disse a garota, enquanto Myke se distanciava dela com todas as forças.

- Isso é apenas um pesadelo. Isso é apenas um pesadelo. – dizia, enquanto corria em direção ao hall de entrada do hospital

Postou-se a atravessar os corredores do Albuquerque Aguiar a passos largos. Correu com todas suas forças. Sua mente estava confusa. Perguntava-se constantemente “Por que o hospital me quer? Por que sou dele?”.

Chegou à metade do primeiro corredor, onde um segundo desembocava. Sabia que foi por ali que viera. Postou-se a virar à esquerda no segundo corredor, entretanto, naquele momento, veio à sua mente, um flash. Estava andando por um corredor de paredes de concreto – ao invés de grades, como as paredes do corredor que andara - e chegava a um local tomado por sangue e cadáveres humanos – todos cortados brutalmente, com vísceras expostas. Ao fitar o rosto dos outrora humanos, Myke percebe serem seus colegas de turma.

- Como assim? – se perguntou, em pensamento. Para sua surpresa, eis que começa a sentir o local rodando, com veemência. A princípio, imaginar ser o local; posteriormente, percebeu ser sua mente. Tenta permanecer de pé mesmo com estando zonzo por causa do rodopiar de sua mente – ao tentar fazer isso, percebe no teto o escrito “MORTE DE TODOS” a sangue. Sobressalta-se.

- Como assim? – se perguntou. Postou-se a correr pelo local com todas as forças, em direção ao hall de entrada. – Por que todos morreriam? – se perguntou

Continuou a correr pelo segundo corredor, a toda velocidade. Passou pelas celas dos internados como se vazias estivessem. Chegou ao meio do corredor, onde desembocava um terceiro, que igualmente utilizou-se para chegar até Anne. Sentiu um flash à sua frente, mas não parou. Adentrou no terceiro corredor. Sobressaltou-se.

O corredor estava lotado de internados. Alguns estavam sentados ao chão, enquanto outros caminhavam, aparentemente sem rumo. Seu peito foi tomado por uma sensação estranha. “O que era tudo aquilo?”

“Enquanto você continuar sua fuga, os fantasmas do Albuquerque Aguiar jamais descansarão.”, a frase de Anne veio à sua mente. “Será estes, fantasmas?”, se perguntou.

Começou a caminhar pelo corredor calmamente, fitando apreensivo os internados, que respondiam o seu fitar com um gélido e aterrorizador olhar. Sentia a espinha gelar constantemente, enquanto o coração não parava um segundo sequer no peito.

Passava facilmente pelos internados, apesar do local apertado estar com vários deles. Não se deu conta do fato. Caminhava tão apreensivo que detalhes sutis passavam despercebidos.

Quando se encontrava no meio do caminho, eis que Myke começa a escutar um pequeno ruído – parecia um sussurro. A cada passo dado, o tal ruído se tornava mais e mais audível. Eram os internados. Diziam: “Liberte-me!”, constantemente. Quando era um pequeno sussurro, a apreensão de Myke aumentou constantemente. Quando começou a perceber que era uma fala, vinda dos internados, o medo invadiu o corpo do rapaz. No momento em que alguns dos internados que se encontravam ao seu lado esquerdo naquele instante começou a se levantarem, Myke não teve mais dúvida: precisava evadir do local o quanto antes. Postou-se a atravessar o restante daquele corredor da mesma forma como atravessou os anteriores: correndo.

Atrás deles, os internados gritavam as palavras que outrora sussurravam. O rapaz não parou de correr para olhar suas costas. Tinha a certeza de que eles se encontravam em seu encalço, até o momento em que ouviu barulhos de briga logo atrás dele. Uma gritaria e uma selvageria tomaram conta do local. Myke não queria estar ali, então acelerou ainda mais os passos para estar o quanto antes fora dali.

Ao fitar a entrada do quarto corredor que utilizara para chegar até Anne, eis que verifica, adentrando no corredor pelo supracitado, dois homens robustos, vestidos de roupa branca e jaleco, correndo a toda velocidade em sua direção. Este fecha os olhos e para. Os dois homens o ultrapassam como se sequer existissem. Virou-se de costas. Percebeu os supracitados contendo a briga entre os internados. Virou-se de costas, adentrou no quarto corredor e o ultrapassou junto do quinto sem maiores complicações.

Chegou finalmente ao hall de entrada. Sobressaltou-se, tão logo o fitou. Estava com o mesmo modelo antigo do corredor onde se encontrava Anne. À sua mente, conseguiu resgatar detalhes dos demais corredores que utilizou para chegar ao hall e percebeu que todos se encontravam nas mesmas condições.

“Isso não importa agora.”, pensou consigo mesmo. Sabia que era hora de partir.

Correu em direção à porta de saída do hospital psiquiátrico. Chegou até ela e tentou lhe abrir – pois, naquele momento, não estava escancaradamente aberta como quando entrou no prédio -, mas não conseguiu.

- Estou trancado. – pensou, consigo mesmo. Desapontado – e exausto -, colocou as costas na porta. Veio um flash e, junto dela, uma estranha visão – ele na mesma situação que se encontrava naquele momento.

- O que foi isso? – se perguntou, em pensamentos. Dali, fitou o outro corredor, que adentrava no interior do hospital. Desvencilhou-se da porta e partiu em sua direção. Entretanto, no meio do caminho, eis que percebe vários papéis sobre um balcão à sua esquerda. Continuaria sua caminhada se um deles não lhe chamasse a atenção por seu conteúdo.

Assim estava escrito:

“Anne McCarthy.”

Parou. Virou-se a ponto de ficar frontalmente ao pedaço de papel amarelado jogado sobre o hall.

“Anne McCarthy

* 16-03-1901

+ 04-08-1909 [...]”

- Oi? – se perguntou um incrédulo Myke. - Como assim, 1909 como data de sua morte? – entretanto, como sabia ser necessário terminar a leitura para elucidar suas indagações, assim o fez.

“[...] Nascida em Aleckry, Anne é a caçula de uma família de dezesseis filhos. Seus pais são Phrancisce McCarthy (1879) e Amily McCarthy (1881) [nesse ponto, Myke teve a sensação de já ter ouvido falar nesses nomes.]. Faleceu aos oito anos vítima do incêndio na escola de Santa Glória causado por um de seus irmãos mais velho Myke Havrah [...]”, naquele momento Myke sobressalta-se. “Como assim, Myke Havrah?”. Começou a procurar outros papéis para encontrar algo que citava o seu nome.

Olhou papel por papel. Procurava por algo que chamasse sua atenção, durante suas leituras rápidas. Nada encontrou. Por ocasião da procura, acabou por desencadear no balcão uma gigantesca bagunça. Não seria problema algum, se Myke não estivesse procurando o papel que lera anteriormente.

Escutou um barulho oriundo do corredor que saíra. Achou melhor procurar outra saída – e, posteriormente, sua resposta. Adentrou no outro corredor, embora sua mente ainda estivesse presa ao hall.

O local estava totalmente coberto por uma tenebrosa escuridão. Mesmo nos pontos onde poderia haver luz solar, ou outra fonte de luz externa, nada adentrava no local. Foi necessária a utilização do feixe de luz da lanterna de Myke para que o mesmo conseguisse enxergar algo.

O rapaz andou cautelosamente pelo local. Adentrava corredor por corredor sempre fazendo a combinação “esquerda-direita-esquerda-direita” para ajudá-lo a voltar futuramente, como aconteceu anteriormente.

Nada escutava, nada enxergava. Ao contrário dos corredores de outrora, as paredes não eram grades, e sim concretos. Os corredores onde haviam as celas eram trancafiados com uma grade geral.

Caminhou por alguns corredores até adentrar em um corredor (aparentemente) qualquer. Aparentemente porque, tão logo adentrou nele, ficou temeroso. O local estava tomado por internados; todos jogados no chão, encostados na parede, Eram vários deles – da mesma forma que o outro corredor.

Caminhou temerosamente pelos internados. Estavam maltrapilhos, fétidos, cercados por moscas; babavam. Ao perceber que não levantariam como os anteriores, Myke acelerou o passo. Às suas costas, percebeu algum (s) do (s) internado (s) tossir (em) veementemente, antes de vomitar (em). Não conseguia perceber quantos, mas pouco se importou. Continuou sua caminhada.

As paredes, ora de concreto, se transformaram em de vidro. Tentou fitar o outro lado, entretanto, só conseguiu enxergar um extenso – e aparentemente infinito – matagal.

Virou no final do corredor. Surpreendeu-se. O corredor desembocava em um saguão, naquele momento tomado por internados, caminhando sem rumo de um lado para o outro. Ao fitá-los, escondeu-se atrás de uma coluna.

Ficou ali a fitá-los. Estranhou os seus comportamentos, pois andavam sem rumo pelo local, incessantemente, sem parar um segundo sequer. Percebeu-os estarem estranhos – ao contrário dos demais internados, não pareciam padecer de algo físico. Estranhou. Pareciam mais vigorosos, fortes, dispostos. “O que será?”

Repentinamente, para sua surpresa, eis que um dos internados vira o foco do olhar para Myke. Este, de sobressalto, distanciou-se da coluna, dando um passo para trás. Com o virar do olhar de um dos internados, todos os demais viraram. A frieza de seus olhares amedrontou o rapaz, fazendo sua espinha arrepiar.

Ao fitá-lo, os internados pararam – todos, sem exceção. Myke recuou, mais um passo.

- Liberte-me! – disseram. Ouvir aquele som fez a espinha de Myke gelar – Liberte-me! – Myke deu um passo para trás. – Liberte-me! – gritaram, em uníssono; um estridente e agudo grito, que fez o rapaz levar a mão momentaneamente às têmporas.

Os rostos dos internados se transformaram em figuras demoníacas – suas bocas alargaram, como se tivessem as aberto ao máximo, desaparecendo os lábios e tudo se transformando, em conjunto aos olhos, em um grande buraco negro.

Myke saiu correndo na direção contrária a toda velocidade. Não olhou para trás. Precisava chegar ao hall o quanto antes. Estava à procura de seus colegas, entretanto, o mais importante àquele momento era sua integridade, sua vida.

“Não adianta fugir, Myke. Aceite o seu destino.”, gritou alguém, às suas costas. A voz parecia oriunda de todos os lugares ao mesmo tempo e ecoou pelo corredor, preenchendo-o por inteiro. Myke conhecia a voz. Era Anne.

- Por que esse hospital me quer tanto? – se perguntou Myke, em pensamentos. Imaginou, a princípio, que Anne leria seus pensamentos e, assim, ter sua resposta, entretanto, não foi o que aconteceu.

Corria a mil, dando os passos mais largos que suas pernas conseguissem. Naquele momento, sobressaltou-se quando os vidros que formavam a parede naquele pedaço do corredor começou a estourar, vindo os cacos em sua direção. Tentou desviar no que pôde e acelerou os passos. Atravessou o restante do corredor. Acreditou que iria encontrar com os internados que outrora ocupavam aquele pedaço do corredor – e ficou temeroso quanto a isso -, entretanto, aliviou-se ao perceber que o corredor se encontrava vazio.

Virou-se no corredor que outrora se utilizou para chegar ao saguão. Percebeu algo acertando a parede, na quina, logo ao seu lado. Uma nesga do concreto voou em sua direção; Myke desviou com um salto.

Continuou sua corrida em direção ao hall de entrada utilizando-se como vias de volta as mesmas que utilizou para chegar ao saguão. As paredes à sua volta quebravam constantemente, voando pedaços de concreto em sua direção. O rapaz desviava, principalmente dos pedaços maiores ou os que poderiam vir a acertar tórax, abdômen e cabeça.

Ao chegar à entrada de outro corredor, adentrou-o nele, utilizando-se da regra de usar para voltar os corredores que utilizou para chegar ao saguão. Entretanto, sobressaltou-se quando percebeu o mesmo estar com grades trancando-lhe.

- Que merda! – pensou, irritado. Além de irritar-se, estranhou, pois não poderia estar o corredor fechado.

O rapaz, todavia, não poderia continuar ali parado, lamuriando o fechar do corredor. Precisaria continuar – para tanto, continuou o restante do corredor, na mesma velocidade de antes.

Naquele novo corredor, o aparente poltergeist havia cessado. Igualmente havia cessado os barulhos da presença dos internados, que permeavam todo o corredor. O silêncio reinava no local. Com o silêncio, Myke sentiu desnecessário continuar a corrida, parando-a. Começou a caminhar pelo corredor.

Andou durante dois minutos projetando o foco da luz do celular à sua frente – e, por desencargo de consciência, para todos os lugares. Chegou ao final do corredor, que continuava apenas à esquerda. À sua frente, uma porta fechada. Ao seu lado, parte da parede era composta por vidro.

Myke virou-se à esquerda. Continuou sua caminhada com foco principal ao corredor, porém não poderia negar a existência de uma sala – ou cela – à sua direita, o que poderia lhe trazer mais problemas como anteriormente. Com cautela – e distante do vidro -, fitou o interior, jogando um pequeno feixe de luz no local. Percebeu ser o local uma espécie de sala de aula de jardim de infância, com giz, quadro, canetinha, cadeiras e mesas alinhadas em forma de círculo. No centro delas, sentadas no chão, havia diversas crianças, vestidas com a túnica branca característica dos internados do Albuquerque Aguiar, brincando no chão, algumas desenhando no papel com giz de cera, outras escrevendo, outras utilizando da canetinha.

O rapaz percebeu que a parte baixa das paredes estava toda rabiscada, com letras infantis, escrita a giz. Veio à mente de Myke um flash, lembrando-se da cela onde Anne estava presa. Lembrou-se dos escritos presentes na referida cela. Sentiu a espinha gelar.

Ficou à espreita no vidro, tentando ler o que estava escrito. Conseguiu. O primeiro deles estava escrito:

“Myke deve voltar.”

Myke sobressaltou-se. “Voltar? Para onde?”, se perguntou, em pensamento. Apareceu um flash à sua frente. Enxergou-o caminhando pelo hospital, zonzo, perdido, sem rumo. Sua mente começou a rodopiar, com vários flash. Era tamanho o número que Myke não conseguiu enxergar com clareza nenhum deles.

Levou a mão à cabeça e tentou ficar de pé. Acabou por, vez ou outra, acertar com o ombro esquerdo no vidro, chamando a atenção dos garotos para si. Após alguns segundos, sua mente melhorou, parando de rodopiar.

- O que foi isso? – se perguntou, em pensamentos. Sentiu um líquido escorrer de seu nariz. Limpou com o dedo. Surpreendeu-se ao perceber o tom avermelhado do líquido – era sangue.

Percebeu um barulho oriundo do interior da sala. Fitou. Sobressaltou-se. Todas as crianças estavam lhe fitando, com olhar firme. Pior. As crianças que estavam de costas continuavam nas suas posições originárias – apenas os seus respectivos pescoços e cabeças que viraram para trás.

- Você voltou! – disse alguém, no interior da sala. Myke não conseguiu descobrir qual delas disse, pois pareciam terem sido todas ao mesmo tempo. A voz de longe não parecia ser de uma criança.

Ao ouvir aquela voz, Myke ficou tão amedrontado que sentiu sua espinha gelar. No ímpeto, deu um passo para trás.

- Liberte-nos! – gritou alguém, no interior da sala, da mesma que a fala anterior. Seus rostos transformaram-se; dos olhos e das bocas das crianças começaram a esvair sangue com pus. – Liberte-nos! – gritou novamente; dessa vez, mais extenso que o anterior. Com o grito, a mesa maior – provavelmente a do professor – levantou-se até o teto e voou em direção à janela, despedaçando-a. Myke abaixou-se. A mesa caiu no chão, ao seu lado. Levantou-se e correu, na direção oposta à que veio.

Continuou pelo escuro caminho a toda velocidade, deixando rapidamente para trás as crianças internadas. Ao final do corredor, virou-se à direita, sem saber nem para onde estava indo. Correu um pouco e depois se surpreendeu e parou. Não sabia se continuaria. As paredes daquele corredor não eram de concretos – eram de grades.

“É só não olhar para os lados e correr para frente. É só não olhar para os lados e correr para frente.”, repetiu consigo mesmo na mente. Após, obedeceu à própria ordem.

Ao ultrapassar as celas dos internados, percebeu pelo canto dos olhos que os internados se encontravam sentados no chão, cansados, ofegantes – fracos, ao que tudo parece. Não pareciam que iriam lhe incomodar – mas não queria tirar a prova dos nove. Correu. A toda velocidade. Os pés já estavam lassos de tanto impacto junto ao chão. As pernas já se encontravam lassas de tanto suportar o peso do corpo em alta velocidade. Os pulmões já estavam exaustos de tanto engolir e assoprar ar em velocidade tremenda. O coração se encontrava na mesma situação que os pulmões. Myke sentia o corpo ceder, mas não podia parar. Correr era tudo que ele podia fazer.

Ultrapassou o corredor com a cela dos internados e já se encontrava adentrando em outro. Sentiu um flash à sua frente. Fitou o corredor com vários corpos jogados ao chão, todos atravessados com tiros certeiros no peito. Caminhou pelo local, sob os corpos. Estavam todos nus. Eram todos homens, sem higiene corporal alguma, pelos enroscados à sujeira e à poeira por todo o corpo, pele com crostas em todo o lugar. Estavam magros – a tal ponto que dava para ver as protuberâncias dos ossos nas costelas, clavícula e cotovelo, com veemência. Os rostos eram cadavéricos. Estavam com olhar vítreo, congelado – era amedrontador, não como os olhos dos internados possuídos, mas eram amedrontadores.

- Por que só prevejo o passado aqui dentro? – se indagou, estranhando tal fato

O rapaz caminhou pelo corredor calmamente – aproveitou a deixa para descansar os pulmões e o coração – fitando cadáver por cadáver. Eram adultos, jovens, idosos e até crianças – todos homens. Eram vidas que se esvaíram. “Liberte-me”, veio à mente de Myke. “Será que foi por minha causa?”, se perguntou, em pensamento.

Para sua surpresa, eis que, à sua frente, havia um internado de pé. Parecia que morrera e continuara de pé, pois estava encostado à parede e não mexia. Myke afastou-se, foi até o outro lado da parede e ultrapassou-o. A curiosidade era tamanha – e o medo também – que o rapaz não conseguiu ultrapassá-lo sem fitar o seu rosto. Surpreendeu-se, novamente, ao perceber que o rosto daquele internado – um senhor, de barba e cabelo grisalhos – mexia – pequenos movimentos, como em um último raio de esperança, pois o senhor, assim como os demais, possuía um tiro certeiro atravessando o peito – a região da boca – englobando as bochechas - e os olhos.

Com um movimento difícil – os músculos pareciam extremamente rijos -, o senhor virou a cabeça para Myke. Este assustou.

- Li-ber-te-me! – balbuciou, lentamente, devido à dificuldade de mexer os músculos, quaisquer deles. Myke deu um passo para trás.

Eis que, no instante seguinte, o senhor vira-se de inopino para o rapaz, por completo, batendo as costas na parede com força. Em seguida, começou a gritar e a se debater, como se estivesse sentindo dor. Ao contrário de outrora, não parecia ter dificuldades em mexer os músculos.

Por ocasião do susto, Myke distanciou-se do senhor, batendo com as costas na parede inversa. O senhor começou a ser erguido, com as costas na parede, até perto do teto. Junto do erguer, o homem gritou: “Liberte-me! Liberte-me!”

Myke não titubeou, apressou-se a correr. Naquele instante, eis que surge outro flash à sua mente. O corredor esvaziou-se dos internados mortos. O silêncio voltou a reinar no local.

No chão, estavam corpos, mergulhados em sangue próprio, com os rostos desfigurados e mutilados brutalmente, com as vísceras expostas. Myke estava no centro deles.

- O que foi isso? – se perguntou, com a mão na cabeça, enquanto tentava se recuperar do acontecido.

O rapaz, enfim, tão logo melhorou, acabou por perceber a presença dos cadáveres. Entristeceu-se. Baixou a cabeça e levou a mão aos olhos. Começou a chorar.

Ao seu lado, eis que surge Anne.

- Você poderia ter evitado essas mortes. Bastava ter aceitado o seu destino.

- Cala a boca. – disse um irritado Myke

- Por que você não aceita de uma vez, Myke? – Anne tentou encostar-se a Myke, mas este se afastou

- Sai daqui. Some, guria. – gritou o rapaz. Distanciou-se da garota.

Anne solta um pequeno sorriso.

- Tudo bem. Você sempre foi assim. – Myke estranhou. “Como assim?” – Venha. – disse a garota, esticando a mão em direção ao rapaz. Encostou-se a sua mão. Este a encolheu. – Vamos. – disse.

- Saia daqui, guria dos Infernos. – gritou Myke.

- Para com isso, Myke. – gritou Anne. Esticou a mão. – Vamos.

- NÃO!

- Vamos.

- NÃO!

A mente de Myke começa a rodopiar – e, à medida que o diálogo se desenvolvia, sua mente rodava com mais vigor. Sentia que Anne queria adentrar pouco a pouco em sua mente.

- NÃO! – gritou Myke, pondo fim a um imenso diálogo repetitivo. Postou-se a correr novamente, em direção oposta à que veio.

Atravessou a passos largos o corredor que se encontrava, dando costas à Anne e sem parar para fitar a mesma. Chegou ao final do corredor. Era uma bifurcação. Virou-se por ímpeto à esquerda. Esbarrou em algo. Parou.

Percebeu naquele instante ter esbarrado em alguém humano – embora a definição de humano naquele momento poderia ter vários significados. Alguém tentou lhe segurar – talvez lhe desencostar – e Myke começou a debater-se.

- Myke! Myke! – gritou a pessoa, tentando segurar seus movimentos e acabando por sacolejá-lo. O rapaz assustou-se. “Essa voz”. Fitou o rosto da pessoa. Era a Dra. Shikuza.

- Doutora. – disse o rapaz, feliz. Sentia que lágrimas iriam escorrer de seu rosto. – Que bom te ver. – abraçou-a com força. Estava feliz por ver alguém conhecido.

- O que está fazendo, Myke? – perguntou a Dra. Shikuza, desvencilhando-se do rapaz. Este foi afastado da Doutora pela própria. Estranhou a diferença de voz. Fitou o seu rosto. Assustou-se. Não era a Dra. Shikuza, embora fosse parecida com a mesma. Era japonesa, e jovem. Entretanto, havia um olhar sério, rude, além de uma cicatriz no canto esquerdo do rosto, ao lado do olho.

Myke olhou, do local onde se encontrava, o crachá da médica que se encontrava à sua frente. Estava escrito: “Dra. Agakai Hyukaga”. Assustou-se. “Ela não está morta?”, se perguntou.

- O que está fazendo aqui, Myke? – perguntou a mulher, com sua característica voz rude. Myke estranhou. “Ela me conhece.” – Fugiu de novo? “Como assim, fugiu de novo?”. A mente do rapaz fervilhava. – Enfermeiros, levem-no! – Myke estranhou. Entretanto, não teve tempo de reação. Tão logo o grito da doutora ecoou pelo corredor, dois homens, vestidos de jaleco branco, seguraram os braços do rapaz pelas costas. Este se debateu, enquanto gritava para lhe soltarem, mas não logrou êxito.

Atravessou parte do hospital carregado pelos médicos. Não percebeu, mas agora os corredores do Albuquerque Aguiar possuíam claridade, pessoas vivas – a luz do solar adentrava pelo teto. Havia luz do Sol, diga-se de passagem. Todavia, as estruturas antigas ali continuavam.

Myke foi levado para o interior de uma cela solitária em um corredor qualquer do Albuquerque Aguiar. Em seguida, foi encarcerado, logo antes dos homens trancarem-no ali e irem embora.

- Soltem-me. Soltem-me. Eu não sou um internado. – gritava o rapaz. – Sou um estudante. - gritava

Com lágrimas a escorrer dos olhos, desencostou-se das grades da cela e começou a andar impaciente pelo local. Percebeu algo nas paredes – estava logo escrita.

- A cela da Anne. – pensou consigo mesmo. – Estou preso na cela da Anne.

De repente, uma surpresa. Percebeu seu nome gravado em um dos escritos de Anne a giz na parede. E em outro, ao lado do primeiro. Fitou toda a parede. Sobressaltou-se. Em todos os escritos – sem exceção alguma – da parede de Anne, estava o nome de Myke. E pior: todos começavam da mesma forma: “Myke previu...”, “Myke previu...”. Eram relatos de acontecimentos no Albuquerque Aguiar, ou de Aleckry e região.

“Myke previu que em 1934 haverá uma grande chuva que devastará a cidade”.

“Myke previu que em 1916 acontecerá um grande envenenamento dos internados do Albuquerque Aguiar.”

“Myke previu que amanhã acontecerá uma grande briga entre os internos do corredor 16”

“Myke previu que em 1914 haverá fome na cidade.”

E assim por diante. Ao ler os escritos na parede, veio à sua mente os acontecimentos que ele sofreu enquanto caminhava pelo hospital – a briga, o envenenamento, as crianças, todos estavam narrados na parede.

- Meu Deus. – disse o rapaz, estarrecido

- Entendeu agora? – perguntou Anne, aparecendo de inopino ao seu lado. – Não sou eu quem escreveu o que previa no futuro nas paredes, foi você. – Myke não conseguia ainda acreditar – E enquanto andava pelo hospital você não via o passado, via o futuro. Parecia passado porque você, desde que fugiu do hospital, acreditava estar em 2010, quando na realidade ainda está em 1910. Na realidade, você nunca conheceu aquelas pessoas. Aquelas pessoas nasceram anos depois de sua morte, Myke. Você nunca visitou o hospital. Você é um internado dele. Foi por isso que sentiu uma sensação de dejà vu ao adentrar no hospital. – Anne distanciou-se de Myke - Seja bem-vindo de volta ao Albuquerque Aguiar, meu irmão!