351-ZÉ CAOLHO E A MULA SEM CABEÇA

Zé Caolho não era cego de nascença. O apelido foi-lhe atribuído nos tempos de escola, quando a doença dos olhos ainda era incipiente e atingira o olho direito. A progressão do tracoma levou-o à cegueira total quando terminou o tiro-de-guerra. Talvez tenha contribuído também para precipitar a marcha da doença a grande desilusão que tivera com a noiva, Ritinha da dona Dita, que o abandonara às vésperas do casamento, em favor de um amante, um romance misterioso e secreto com pessoa muito importante em cidade vizinha.

Por isso, continuou fazendo parte da companheirada de adolescência e juventude, uma turma que vivia aprontando brincadeiras e confusões na pequena cidade de São Roque. Sendo os mais destacados e inventores de desatinos o Romeuzinho, filho do Capitão Azevedo; o Piabinha, pescador inveterado e mentiroso como convém a qualquer pescador; o Tércio Guimba, que vivia filando pontas de cigarros dos companheiros. Zé Caolho, por ter ficado cego aos poucos, não tinha dificuldade alguma em se locomover e acompanhar os amigos em suas tresloucadas aventuras. E era o que tinha as idéias mais mirabolantes.

Naquela noite de Domingo de Ramos, enquanto “assistia” a uma partida de sinuca entre Piabinha e Tércio, propôs:

— Vamos ver quem tem coragem de ficar no Jardim Novo na Sexta-Feira da Paixão? — desafiou os amigos no começo da Semana Santa. — Vai ser noite de lua cheia.

— Besteira. A gente sabe que num tem nada lá, é só invenção das pessoas. — Respondeu Tércio, que era um pouco desligado da realidade.

— Aí é que cê se engana. Aquele jardim já foi cemitério, e toda sexta feira tem Maria Engomada, espíritos desencarnados, fantasmas e até a Mula-Sem-Cabeça costuma aparecer.

— Então, gente, vamos ver quem é o mais corajoso.

— Eu topo. E digo mais: vou pôr cabresto na Mula-Sem-Cabeça. — falou Zé Caolho.

— Ocê pode, porque é cego, não vê a bichona. Mas duvido que tenha coragem...

— Vamos apostar?

A história da mula-sem-cabeça é conhecida pelo interior. Trata-se de uma maldição que recai sobre uma mulher, quando vai viver com um padre. É a “mulher do padre”, como dizem. A maldição faz com que a mulher se transforme, todas as sextas-feiras, em uma enorme mula “sem cabeça”, que percorre as vilas, vilarejos e até as pequenas cidades do interior, botando fogo pelas ventas, no dizer popular. Na realidade, sua cabeça é invisível, e, sempre segundo a lenda, o encanto será desfeito quando alguém consegue colocar um cabresto em sua cabeça. O problema é que, além da cabeça ser invisível, a visão do terrível monstro é causa de infortúnio para quem a vê diretamente: morre na hora ou fica desgraçado para o resto da vida. Daí que se torna impossível a um crente sadio, com plena visão, colocar o cabresto na mula, pois para tanto terá de olhar direto na besta-fera, apalpá-la e, num gesto preciso, pôr o cabresto. Isso, sem falar que a bicha salta pinotes, zurra horrivelmente e lança chamas na direção de quem se aproxima.

— Só mesmo um cego pra pensar numa coisa assim. — Comentou Romeuzinho.

— Pois aposto que faço. E vou recuperar minha visão. — Falou Zé Caolho.

Tinha razão o cego. Constava da lenda que da mesma forma que a maldita desgraçava quem a olhasse de frente, havia a recíproca: para quem desfizesse a maldição, era assegurada a realização de seu desejo mais ansiado, além de que a mulher, livre da terrível condenação, tornava-se “escrava” do seu libertador.

Fecharam as apostas. O problema era assistir à cena, pois a qualquer momento a mula poderia virar-se para os assistentes e desgraçá-los no ato.

— Vamos usar um espelho. Colocamos o espelho no coreto e a gente assiste a tudo com as costas viradas pra maldita. — A proposta era do Tércio Guimba — Assim, não seremos atingidos pela maldição.

Se assim pensaram, melhor o fizeram. Na Sexta-Feira Santa, depois das dez da noite, as ruas estavam desertas: os moradores recolhidos nas suas casas ou rezando na Igreja Matriz. Foi então que os corajosos e desavisados rapazes se movimentaram. Do enorme guarda-roupas de Romeuzinho tiraram a porta espelhada,que levaram ao coreto, coberta com um pano escuro.Zé Caolho já tinha conseguido, por empréstimo e sub-repticiamente, um cabresto no tamanho que julgava apropriado para prender a fera. Trouxe inclusive um balde com água.

— Pra que isso, Zé?

— Primeiro, antes de atacar a mula, molho minha cabeça e as roupas, pra evitar que ela me queime. E quando chegar perto dela, atiro-lhe na cara o balde com água, que é para apagar seu fogo.

— É, só ocê mesmo pra bolar isso.

— Mas não se esqueça: tem de domar a mula ali no pé da figueira, de onde a mula será refletida pelo espelho e a gente possa ver.

A coisa foi muito bem preparada. De tal forma que, pouco antes da meia-noite, hora aprazada para o aparecimento de todos os entes sobrenaturais que povoavam o Jardim Novo, os moços tiraram o pano preto do espelho e se encapuzaram, defendendo-se de possíveis olhares da mula-sem-cabeça. Zé Caolho colocou-se no local indicado, ao pé da figueira, por onde, constava, a mula costumava passar em suas malditas andanças.

Nem bem o relógio da Igreja Matriz terminou a última badalada da meia-noite, começou-se a ouvir o tloc-tloc metálico — o barulho dos cascos ferrados da mula, tirando faíscas no calçamento da rua. Os moços concentraram os olhares no espelho. Zé Caolho ficou impávido, orientando-se pelo barulho das ferraduras. Quando a mula estava se aproximando, molhou as mãos, aspergiu água pela cabeça, rosto, braços e camisa. Ao sentir o calor, jogou o resto da água na direção de onde pensava estar a cabeça da mula.

De nada adiantou, pois o calor se aproximava mais e mais, ficando quase insuportável. O fedor do bafo da hedionda criatura era horrível. Ao levantar o braço com o cabresto, Zé sentiu que roçara o pêlo molhado e percebeu a orelha da mula, que agarrou com presteza. O calor era infernal, pois o fantasma dirigia as ventas diretamente ao Caolho, o qual, num átimo, encabrestou a mula.

Ouviu-se naquele momento um estrondo dos infernos. Um clarão iluminou a praça com a luz de um intenso sol da meia-noite. A fumaça fedorenta que exalou do local onde Zé Caolho mantinha presa a mula se espalhou por todo o Jardim Novo. Os rapazes, atingidos pelo estrondo, clarão e fumaça, tudo a um só tempo, tombaram, desmaiados. O espelho espatifou-se em mil estilhaços.

Tudo parecia acontecer em uma dimensão diferente. Longos momentos se passaram. Os moradores das casas ao redor da imensa praça foram, pouco a pouco, abrindo as janelas, curiosos mais do que receosos, em saber o que havia ocorrido na praça. Ante o silêncio sepulcral que se seguiu ao estrondo, os mais afoitos saíram de casa, a ver o que acontecera. Luiz Padeiro e Joaquim da Loja Elétrica empunhavam espingardas de caça. Foram chegando, chegando, pisando de leve, e se depararam com uma cena dantesca.

No coreto, o quadro do espelho, vazio, o pano preto dilacerado, os rapazes arremessados ao chão, em posições escabrosos, pareciam mortos. Mas notaram leves movimentos de um ou de outro, tentando se levantar.

Ao pé da figueira, outra cena não menos impressionante, e verdadeiramente surpreendente: Zé Caolho, de joelhos, um cabresto na mão, os olhos arregalados, olhando para os mais próximos, gritava:

— Estou vendo! Estou vendo!

E olhando para o corpo de mulher ao seu lado, belíssima morena nua e ainda desmaiada, gritou ainda mais alto:

— Ritinha, meu amor! Você voltou!

ANTÔNIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 29=JULHO=2005

Conto # 351 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/08/2014
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