Quando foi que matar virou opção? DTRL17


 
Ei? Quem tá aí? Quem tá aí cuncê, Carái? Quem? Quem? Quem, porra?!

Eu sei que cê pode pensá que o que cê ta fazeno tá certo, mas num tá, tá me ouvinu? Sai daí cara. Tá iscuro demais, muito iscuro mermu. Tu já pensô na merda que tá fazenu? Isso é treta demais mano.

Iscuta cara. Eu já passei por isso que cê tá passanu. É. A vida é um saco! A gente pensa que tem amigus, mas na verdade são todos idiotas, e na hora que tamu na pió os cara bandona a gente. Tu lembra da vez que sô pai me pegô de bobera nadano quele dia? Lembra? Ninguém me avisô do sô pai, cara!

Isfria a cabeça. Relaxa que vô fica contigo, ok? Porra véi, cê parece maluco, num fala nada, fica só aí, tremeno o tempo todo. Responde!

Tá tudo bem, eu vô continua qui. Fuma sa porra desse cigarro, enxuga sas lagrima e vamu bora. Eu cunheço um luga manero, chei de gente fina, mulhé bacaninha, umas poposuda, aí a gente vai lá da uma trepada nelas e tudo se resorve. Tá me entendenu? A vida num caba qui não, brô.

Eu sei. Sei o que cê tá sentinu, mermão. Ah. Eu tamém ficu assim as veis. É difícil a gente da a vorta pur cima, mais pensa bem numa coisa, se tu acha que feiz arguma coisa errada, inda dá tempo de cuncertá. Levanta sa cabeça, porra. Levanta sa cabeça e me iscuta, me iscuta qui, cara!

Eu vô ti tira dessa, tá me entendenu? Nóis vai sair dessa junto!

 

Quinze anos antes...

O segurei forte, olhei bem nos olhos dele, vivo, muito bem vivo. Respirando, ainda que o ar ali apenas o prejudicasse. Olhei a minha volta, não havia nada que pudesse me fazer parar. Queria vê-lo sangrar. A vida é assim. Isso pode acontecer com qualquer um, e bem, isso aconteceu comigo.

Ele estava sofrendo há horas. Pedia água. Ahh... Mas queria matá-lo. Segurei a faca em uma das mãos, enquanto que a outra usei para segurá-lo com força. Ele se debateu, e então senti aquele poder. Humm... Esse poder geralmente nos entontece. Ás vezes um homem se acha o dono do mundo, e foi justamente assim que me senti ao golpeá-lo pela primeira vez. Uma pancada certa na cabeça. Com o golpe ele borrifou uma saraivada de sangue. Ploft... Achei aquilo engraçado.

Meu pai sempre me ensinou como eu deveria fazer. “Mate! Ele dizia. Mate ele assim!” Frio, e tão doce ao mesmo tempo. Isso sempre me levou a pensar em como uma pessoa pode achar que isso é tão normal? Milhões são mortos. A vida é uma droga, uma verdadeira merda. Eu não matei muitos, não, mas matei vários. Sim. Apenas o suficiente.

O pior é que ele não morreu, não facilmente. Após tudo aquilo ainda movia a boca como se quisesse falar comigo. Os olhos grandes saltavam das órbitas, e ele provavelmente não sabia o que eu ainda iria fazer. Olhei para o lado, claro que não tinha mais ninguém ali, mas poxa... Precisava conferir, afinal, não queria que ninguém me visse chorando ao fazer aquilo, não mesmo.

Há atitudes na vida da gente que nos mudam, para melhor, para pior, quem sabe? O que sei é que o olhei e sorri. Sorri sim, pois logo iria descobrir o que aconteceria depois que enfiasse a faca na barriga dele. Sempre quis entender aquela dor, e como dizem por aí... “A primeira vez a gente nunca esquece”.

Meus dedos abraçaram o cabo da faca, meu punho estava firme e a obstinação era presente ali. Suei. Sim, eu suei, entretanto nada podia me impedir de fazer aquilo. Enfiei a faca na barriga dele, e a boca se abriu... Um espasmo, dois, três... E o maldito não morria de jeito nenhum. Era um filho da mãe muito teimoso.

A pele era dura, mas a lâmina subiu cortando em direção a cabeça, enquanto o sangue descia pelo mesmo aço afiado, e mergulhava em meus dedos, escorrendo depois para meu pulso e em certa altura convertendo-se em gotas suicidas que saltavam em direção ao chão. Não era muito sangue, mas ele tinha o bastante para sujar aquele piso grosso e mal acabado. Isso me fez pensar no quanto eu iria sofrer para limpar aquela bagunça.

Enquanto teimosamente se debatia, me encarando sem entender o porquê de eu estar tirando sua vida, meus dedos e mãos acariciavam dispostamente suas tripas, vasculhando-as clandestinamente. Era uma sensação estranha, mas eu gostei daquilo, e mesmo que fedesse um pouco, tirei órgão por órgão, segurei-os na mão e analisei bem. Sempre fui curioso quanto a isso. Como podiam ser tão frágeis e tão funcionais? Deus tem lá seus méritos, não que eu pense que sejam muitos, pois a meu ver só por eu e tantos por aí terem essa coragem, ele certamente criou mais demônios que anjos, e isso mostra que até mesmo este tem seus defeitos, e é o maior responsável por tudo isso, já que tinha criado um mundo perfeito e na hora “H” fudeu com tudo ao inventar a porcaria do ser humano.

Bom, foi uma pena, mas ele pareceu não resistir após eu retirar todo seu interior. Vi até a última refeição dele. Era pegajosa, bizarra mesmo. Depois que isso acabou, sentei sobre a mureta e deixei-o ali, e a faca próxima a ele. O sangue ainda estava em minhas mãos, o cheiro não era bom, nunca é. E eu ainda não havia feito o principal, eu precisava comê-lo. Meu pai sempre me ensinou... “Mate e coma!”

Merda! Que droga! Eu não consegui. Eu nunca mais consegui. Fiquei olhando ele por horas, até que o coloquei num saco, carreguei-o até a margem e o joguei no rio próximo a nossa antiga casa. Lembro-me que já fedia bastante. Ele afundou, e de repente flutuou. Não adiantava mais, ele estava morto. E eu?

Eu gostei de matá-lo. Mas não comi! Eu não iria me tornar aquilo!

 

Hoje estou aqui, são duas da manhã e está escuro. Tremo de frio. Ainda escuto o som da respiração silenciosa dele. É como um assobio soprando ao meu ouvido.

Gosto de pensar que ele poderia estar vivo. Seria uma amizade incomum, sei disso. O pior é que acredito que ele fala comigo, e também me escuta. Sim, é estúpido, é insano, mas ele está vivo. Ele é mesmo um filho da mãe teimoso.

Tenho medo às vezes, sabe, mas agora mesmo estou o ouvindo. Só não quero ouvir mais. Eu só não quero falar mais com ele. E o mais bizarro é que a voz dele não me é estranha, acho que ela parece com a de alguém... Não sei quem... Mas eu a conheço!

 

Ei Pexe? Quem tá aí? Com quem cê tá falanu, Pexe? Fala mermão?

Cê precisa de ajuda. Mais eu vô ti tirá dessa, tá me entendenu? Nóis vai sair dessa junto! Sorta sa faca... Sorta sa porra sa faca!
Ei? Quem tá aí? Quem tá aí cuncê, Carái? Quem? Quem? Quem, porra?!

Eu sei que cê pode pensa que o que cê tá fazenu tá certo, mas num tá... Tá me ouvindo? Sai daí cara. Tá iscuro demais, muito iscuro mermo. Tu já pensô na merda que tá fazenu? Isso é treta demais mano.

Eu já passei por isso que cê tá passanu. É. A vida é um saco, a gente pensa que tem amigus, mais na verdade são todos idiotas, e na hora que tamu na pior, os cara bandona a gente. Tu lembra da vez que sô pai me pegô de bobera nadanu quele dia? Lembra? Ninguém me avisô do sô pai. Ninguém, mais cê me sarvô. Cê não dexô es me cumê. Agora, tira sa faca daí...

Eu tô vivo! Eu tô aqui!

 

A verdade é que eu preciso saber. Eu sei, eu sei, mas se você ainda está vivo, então eu quero descobrir, eu quero descobrir...

Eu não consigo comê-lo. Não. Eu não sou mau. Apenas gosto dos espasmos. É como dar uma boa trepada numa prostituta, e dizer... “Geme, urra, grita vadia!” É estar no comando. Mas eu não posso comê-los. Não posso. Por isso estou aqui, preciso matar mais, preciso.

Meu pai disse que irá fazer algo novo. Teremos Tilápia ao Molho Especial de Azeite Temperado, no almoço. Eu sinto muito, mas alguém tem que fazer isso, e sempre sobra para mim.

Essa cozinha está muito suja, muito mesmo, e tem muitos deles por aqui. Estão no nosso aquário especial, estão nadando, e eu vou precisar pegá-los. Já matei muitos, vários, mas ainda não o suficiente para um bom molho. E os fregueses gostam, dizem que o gosto é bom.

Mas que diabos! Por que eu estou falando com você? Você vai contar para meu pai? Não conte, ouviu. Saia daqui! Saia logo! Eu não vou falar mais nada para você!

Ei Peixe, você ainda está aí? Você está me ouvindo? Você está me ouvindo??

Alguém está me ouvindo??

Fim.

 

Temas:

("Paranoia - Amigo Imaginário - Aconteceu Comigo")

Bom, quanto ao tema "Aconteceu Comigo"...

Bem, sempre odiei tirar uma vida. Seja de uma galinha (quando minha vó cortava o pescoço dela e a pobrezinha saia pulando com o pescoço dependurado, e o sangue ia escorrendo pelas penas e se misturando a poeira, e ela dizia: "Se tiver dó ela não morre! Sai daí minino!" Seja de um porco com uma marretada na cabeça (é, acredite, era assim que era feito antigamente, e em alguns lugares ainda fazem assim. E quando tive que matar meu primeiro peixe (e até hoje me sinto mal quando faço isso).

Mas enfim, quem disse que matar é uma opção, matar é uma necessidade.

Já vi mortes demais, não de pessoas, algumas pessoas merecem morrer... Às vezes...

Isso dói, isso tudo me faz chorar.

Obrigado a todos que passarem por aqui. Deixem suas criticas, seus elogios, mas sobretudo, sejam sinceros.

Para saber mais sobre o DTRL acesse a página do autor Eduardo Monteiro e clique sobre o post "Chamada DTRL17", ou entre em contato pelo e-mail contatodtrl@yahoo.com.br.
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 02/08/2014
Reeditado em 08/08/2014
Código do texto: T4906734
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