Natureza Humana - DTRL 17

A noite de lua cheia era sempre um presságio ruim no vilarejo, portas eram fechadas mais cedo e janelas ungida com bênçãos. Balas de prata na espingarda e olhos atentos, arregalados, espreitando nas gretas das janelas. O coração disparava e o corpo gelava com os uivos ressonantes das feras, sob a luz pálida refletida na face da lua. Mas eram apenas histórias, causos de um passado distante que já assustavam poucos sobreviventes da modernidade. Até aquela noite, assim disseram...

“No silêncio, subíamos a estrada de terra, há muito tempo não caminhávamos tão tarde da noite, parecia que o tempo havia retrocedido algumas décadas e o frio do medo irracional subia por nossos corpos. Se entreolhamos, um cheiro forte e indecifrável dominou o ambiente, as folhas chacoalhavam... e a matilha surgiu no horizonte. Cães de todos os tamanhos, grunhindo, latindo e uivando seguiam em direção nossa direção. Entre os animais, um se destacava, era grande, tinha as costas curvadas pouco pelo no corpo e muito na cabeça, roncava, tinha os dentes pontiagudos e seus olhos eram duas esferas amarelas como ouro.”

Em alguns dias a notícia da volta dos lobisomens se espalhara como uma praga na cidade.

...

A chuva de granizo batia violentamente no para-brisa do carro, as pequenas pedras de gelo estalavam no vidro e as gotas desenhavam caminhos molhados na superfície cristalina, relâmpagos iluminavam a estrada escura, a terra barrosa fazia o automóvel derrapar. A menina de cabelos emaranhados no rosto arregalava os olhos de espanto.

Depois de dias sem dormir tentando encontrar uma resposta para o que me incomodava, finalmente descobri. Sobre a mesa, a montanhas de livros, que buscavam solucionar patologias da mente, não podiam explicar porque as histórias de crianças criadas por animais sempre acabam em tragédia... A verdade, é que não tinha como mudar o que ela era... E com certeza... Era um cachorro, por isso adoecia.

O carro seguia dançando na estrada estreita cercada por mata fechada. Pelo retrovisor, ela olhava a criança encolhida, suando apesar de tremer de frio.

Quase a perdemos, o povo estava enlouquecido pela ideia dos lobisomens estarem retornado, queriam de toda forma o extermínio desse animal do inferno. Quando a encontramos ela era um serzinho indefeso, estava encolhida embaixo de uma lona tremendo de medo, o corpo coberto por uma crosta marrom de terra e pelos dos companheiros, os pequenos olhos castanhos brilhando nas sombras.

Depois que as luzes da cidade se foram, tudo que restou foi uma escuridão infinita, os limpadores de para-brisa bailavam num ritmo acelerado, os faróis eram apenas dois feixes de luz fraca, quase inútil enquanto os relâmpagos que antecediam os estrondosos trovões pareciam explosões atômicas.

Foi difícil arrancá-la de lá, ela era selvagem. Tivemos que sacrificar dois cães que atacaram a equipe médica assim que puseram as mãos na menina. Ela rosnava e mostrava os dentes, imitando os animais.

A cada curva sentia a ansiedade da menina aumentar, batia os dentes e chorava feito um cachorro, às vezes olhava para a motorista e parecia agradecer.

Quando levamos a pequena para um abrigo todos queriam estudá-la, se estapeavam por um pedaço de sua inocência. Vivera três anos com os cães na fazenda onde morava com sua mãe alcoólatra, e apesar de ter próximo dos cinco anos, era pequena e magra, também não falava e não andava sobre as pernas, caminhava desajeitadamente com os pés e as mãos no chão, como um cachorro, também comia e bebia como um animal, mas estava longe de parecer com a figura que descreviam como lobisomem... A mente humana é cruel quando se vê ameaçada.

Apenas alguns quilos de pele e osso a menina gania no banco de trás e a mulher continha o desespero diante do inesperado.

Na instituição tentávamos, em vão, torná-la sociável. Falhamos ao tentar ensiná-la a conviver com outras crianças, ela mordia. Falhamos ao tentar ensiná-la a falar, nunca pronunciou uma palavra e falhamos ao tentar ensiná-la a comer e beber como uma pessoa, ficou dias sem se alimentar. Uivava a noite toda, se recusava a deitar na cama e ninguém conseguia vestir-lhe roupas.

Parados diante da caminhonete uma matilha de cães selvagens de olhares fixos e monstruosos cortando a chuva incessante. Segundos que mudaram o desfecho dessa história.

Lembro quando a mãe saiu da cadeia para visitá-la, ela pareceu não notar a diferença da mulher e qualquer outra pessoa, mas quando viu um cachorro... Enlouqueceu. Latia, girava pulava e até sorriu, um dos únicos sinais humano. Foi só uma vez.

A mulher tentou parar o veículo, mas seu esforço foi inútil. Despencou morro abaixo levando consigo tudo que encontrava pelo caminho, girando dentro da estrutura metálica como se fosse um brinquedo jogado ao vento.

Decidimos que era melhor para ela não ter contato com animais. Justo os animais, que quando os pais a abandonaram, os cães a acolheram sem preconceito e a mantiveram viva por três anos. Nunca estive tão errada.

Presa ao cinto, de cabeça para baixo sentia o sangue escorrer nariz adentro... Seu mundo invertido via lama, água e ferro retorcido. À medida que sua consciência voltava pode ver o que a luz fraca dos faróis lhe permitia... O corpo frágil e debilitado da criança-cão estilhaçou como um frágil cristal, a pequena sem proteção atravessou o vidro dianteiro e encontrou-se com um largo tronco de paineira.

Ela definhava. Sofria a falta de sua verdadeira família, morria por sentimentos desconhecidos pela razão humana. Foi para o bem dela que decidi que era minha obrigação devolve-la ao seu lar.

A mulher chorou. Desfez-se em lágrimas como nunca em sua existência. Mas suas lágrimas amargas escorriam pelas têmporas encharcando o couro cabeludo, e quanto mais sofria maior era sua dor física. E os segundos que se passavam, eram horas, dias, anos... Da dor, do escuro, do frio, da solidão silenciosa eles vieram. A matilha toda. Pelos curtos, longos, raças indefinidas, mas todos com o mesmo propósito. Olhos fixos no cadáver infantil.

Nunca percebi que o sangue era tão liso e pegajoso. E apesar da dor que invadia meus sentidos, jamais vi algo tão bonito quanto o pequeno corpo coberto pelas gotículas que pareciam diamantes à luz do automóvel.

O silêncio era tão cortante quanto vidro, os animais reuniram-se envolta da pequena e nitidamente sofriam pela perda. Algo nos olhos estava diferente. Um dos cães deitou sobre a criança e o coral de uivos teve início.

Profundos, lamentosos, agonizantes se sobressaíram ao som da chuva sobre as folhas, entrava nos ouvidos da mulher em forma de mais dor... Ela não soube dizer quanto tempo durou, mas foi ao inferno e voltou ao menos sete vezes naquele momento. E estava longe de ser seu purgatório.

Após a lamentosa vigília, os cães se voltaram, quase que ao mesmo tempo, para a mulher presa ao carro, em seus olhos ela via o brilho da vingança.

Então pude entender... Não foram só os cães que mudaram o que a garota era, ela também havia transformado os animais... Dado a eles uma gota da amarga natureza humana.

E assim, um a um, se aproximaram da mulher indefesa e como um beijo da morte, arrancaram um naco de sua carne tenra, começando por seu rosto... Ela não podia gritar, sua garganta foi a segunda atacada, sentia que seu sangue escorria em bicas e formava uma poça sob suas mãos.

Naquela noite chuvosa, a vida não passou diante dos meus olhos.

Cada um dos cães obteve seu tributo, e a mulher pagou o preço de ser humana.

Tema: Licantropia (Clínica)

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 30/07/2014
Reeditado em 05/08/2014
Código do texto: T4903193
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