O LEVIATÃ - DTRL 17

Como não ficaste louco? Como aguentaste essa insanidade, esse desespero, essa agonia? És tão forte e simples para conseguir guardar toda essa dor, esse rancor, essa cólera que permeia nosso sangue tingido, que corre freneticamente em busca de algo tão vago e longínquo quanto o silêncio, a paz, o fim de nossos sentidos. A trégua que prediz a partida da tempestade inerente neste ínfimo oceano cor de vinho. Sim! Os raios, os trovões, os gritos, as fúrias dos Deuses, a divindade do grandioso Leviatã que percorre em intermináveis ciclos esse arruinado mundo, os ventos inabaláveis, as desenfreadas ondas, tão gigantescas quanto as montanhas. Sim! Um oceano abaixo e dentro de nós!

Mas não! Não és egoísta a este ponto. Olho em teus olhos e não há quem consiga guardar dentro de si, enclausurado nesta frágil e fina pele, esse desejo, esse desejo de vingança sem ao menos demonstrá-lo uma única vez em sua hora mais lúgrube, mais funesta. Não se engane, seus olhos ardem nessas chamas amaldiçoadas que traçam seu próprio destino a um mergulho sem volta neste mar sanguinário. Erga seus cansados e doentios olhos e encare o próprio Sol em seu mais alto ponto, transponha seus vívidos e mortais raios e o olhe face a face, não desvie sua visão mas tema, tema pelo que irá ver pois ao encará-lo nada além de seu próprio reflexo irá reluzir naquele magistral e incandescente astro de fogo. O desespero e a perdição pura!

Eis a vida! Embarquemos nesse nobre navio, que zarpa sem rumo nem volta aos mais distantes confins desse vasto e alucinante oceano que tenta em vão esconder as mais belas e imaculadas criaturas em suas escuras e inexploradas águas. Sejamos àquele que em sua sã demência tem como único, temido e preciso fim a fúnebre perseguição contra o branco fantasma tão magnífico que mesmo em seu ultimo e árduo suspiro não emite sequer uma nota de sofrimento. Eis o Leviatã!, que mesmo ao longe se escuta o imortal tinir daqueles mesmos arpões que outrora serviram como as últimas palavras dos mais bravos homens.

Bem, chegou a hora. Trégua rompida e na pálida e borbulhenta poeira avança o destemido Titã que carrega em sua enorme cauda a mais atormentada das tempestades. Sem volta nem arrependimento. Que se inicie a Marcha Fúnebre! Os botes desvencilham-se de seu protetor e pela última vez seus remos ricocheteiam no reflexo azulado do Sol, onde formam bolhas tão brancas quanto suas próprias assombrações. Os oficiais gritam até seus pulmões sangrarem, mas não há quem os perceba. A tripulação vive apenas as silenciosas notas desta sinfonia. Suas almas queimam como labaredas, sangue e chamas se misturam e se alastram pelas pálidas águas douradas, o Sol nunca esteve tão intenso fundindo ao fervilhante sangue vinho. E nos brindemos dessa loucura, juntos com os retinintes arpões, pois desta paisagem abstrata e vivaz só restarão cinzas tão brancas quanto o mar!

Exclamo, suplico aos céus meu último pedido: que tu, ó vigoroso vento, que carregues aos sete cantos deste perdido mundo nossas sonhadoras e puras cinzas, pois delas serão compostas históricas e memoráveis notas musicais. Onde quer que seja, nossas almas irão se misturar às vozes de todos os homens que brindam alegres seus reluzentes cálices cheios deste amargo e precioso líquido que nos devora e nos consome do ponto mais obscuro e sombrio de nosso corpo até nossos olhos, reflexos destes fogos que queimam, queimam, queimam aos céus e nele explodem e forjam e moldam tornados tão fortes que são capazes de erguer até o mais profundo e denso mar que há, para novamente nossas cinzas retornarem ao seu lugar de origem para nunca mais voltar!

E que venha o perpétuo e infindável sono! Minhas pálpebras pesam, mas não há quem as sustentem; cerram-se meus olhos a essa derradeira vista, o único réu neste onipresente tribunal. Mas não, rogo-te que não, tudo menos a terra, a firme e imóvel terra. Eis uma vida perdida, sem propósito nem razão, a plena isenção do Destino. Esta profunda e paranóica análise de meu ser, toda essa resignação, esse sofrimento para isso. Encontrar-me em meu mais inacessível íntimo a olhar-me e encarar-me como uma pobre criança nesse vazio reflexo que se projeta à minha frente, numa calma e lúcida poça de água.

Tema: [Paranóia]

B Duarte
Enviado por B Duarte em 24/07/2014
Reeditado em 29/07/2014
Código do texto: T4894589
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