OXYDRAGA - texto completo

OXYDRAGA

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1ª PARTE

ALUCINAÇÃO

Naquela noite Edmundo correu para salvar o bem mais precioso que possuía. Com as folhas manuscritas debaixo do braço, cambaleou até o portão. Seus olhos buscavam alguém nas sombras.

Edmundo sabia que não tinha ido longe de sua casa e tentava mais uma vez. A cidade era apenas um quarteirão. Na esquina percebia que tinha dado a volta e estava no mesmo lugar. A chuva mansa encharcou seus sapatos, agora seus passos estão pesados. Mais uma vez, mais uma volta. Edmundo decidiu entrar e guardar os papéis.

No portão, enfiou as mãos no bolso e baixou a cabeça. Seus olhos ardiam, as chaves deveriam estar no bolso dianteiro da calça. Apanhou o molho de chaves, mas deixou que caísse na calçada. Com a chave do portão na mão, atrapalhado, ergueu-se satisfeito.

Quando enfiou o metal na fechadura sentiu um toque gelado. Descarnada, eram ossos translúcidos que agarravam sua mão. Apavorado deixou cair os originais. Os papeis escorreram na enxurrada, inevitavelmente para o esgoto. Edmundo desmaiou.

O livro que escrevia se perdeu, reescreve-lo tornou-se sua obsessão...

1º FRAGMENTO DA FÁBULA

No ventre da mais casta virgem, o repulsivo espectro, repelido pela força da luz no ato mesmo da criação dos mundos, fez sua casa. Demarcou território onde teceria com fios negros a mais ardilosa trama. O espectro tem negros pelos como seus olhos, e dentes. E isso se deu quando ainda estava no ventre de sua mãe, mulher que nunca amara. No parto, a recém nascida revelou-se assassina e sua primeira vítima fora a mãe. Foi adotada por uma instituição, depois por uma família do interior. Pré-adolescente fez de seu pai adotivo um brinquedo. Embriagou e seduziu o homem que, desprezado por todos, matou-se na cadeia. Ainda naquela noite subiu chorando até o quarto para dormir com sua mãe. Obedeceu quando ela pediu que trouxesse água, mas ofereceu suco de laranja com uma dose de veneno. De volta ao orfanato, permaneceu uma semana, simulou a própria morte e ninguém mais teve notícias suas.

DE BAR EM BAR

Edmundo pede mais uma dose antes de regressar para casa, para o trabalho. Adia o retorno porque não fará outra coisa se não retomar a escrita do romance, escreve ininterruptamente.

Quando caminha escreve, quando entra no bar escreve. Escreve quando pede uma dose. Seus passos, ao atravessar a rua na direção do bar, são do tamanho do seu pensamento. Ondas de pensamento curto. Orações de períodos compostos de elementos trágicos. Edmundo sabe que reescrevendo a história perdida não terá escrito mais que uma farsa. Isso o consome.

A editora insinuou quebrar o contrato, assinado ano passado quando “Oxydraga” fora lançado, mas aguarda insistente. Edmundo tem espalhado pelo escritório, que é seu quarto, um amontoado de rascunhos. Papeis desordenados e, neles, personagens que exigem sua presença, pedem constância do ato de escrever para que possam respirar outra vez.

Edmundo sabe que a história que vai contar tem vida própria. Sabe também que as palavras são traiçoeiras. Portanto Edmundo tem medo. Edmundo tem medo de não traduzir corretamente o que se passa do outro lado, do lado em que não é necessário oxigênio para sobreviver. Quando escritas e alinhadas as palavras revelam quantas partes do corpo foram mutiladas e transferidas para o texto. Essa imagem, como de resto toda representação visual da realidade imposta aos sentidos, demanda sobreposição imediata. Nunca daremos conta do que se perdeu no caminho de Edmundo até aqui.

- Uma dose.

Edmundo pede sem ter que explicar quantas vai beber. A rua ainda está molhada. E das árvores, na calçada, outra chuva amarra seus passos. Não demora e começa a correr. Um quarteirão, dois, três e decide não fumar mais. Podemos vê-lo agora parado na frente do portão de sua casa porque chegamos aqui antes dele. Fizemos como o Lobo que engabelou Chapeuzinho quando disse “tome aquele caminho” sabendo que esse era mais curto. Vem decidido, ansioso. Se não der voz aos personagens que criara, chegará à loucura de falar por eles.

- Uma dose, uma palavra.

Seguimo-lo do portão à porta, da porta ao quarto. No quarto a cômoda se abre em duas gavetas. O ângulo reto, desenhado pela porta em relação às linhas do guarda roupas, está distorcido. O ponto de fuga se perde levemente embriagado.

- Que merda é essa?

Edmundo decide dormir, não escreve nada. Antes de ser tragado pelo sono, vislumbra nos papéis espalhados, olhos famintos que miram, perguntam e imploram com ares de vingança: “escreva-nos”. É hálito esferográfico, entorpecente. O peso que a consciência incide aumenta e Edmundo cai bêbado na cama desalinhada.

“ESCREVA, EDMUNDO, A ELEGIA DOS DISSABORES

E TERÁ O ROMANCE QUE PRETENDE JUSTIFICAR O TEMPO PERDIDO”.

É uma anotação dele pendurada no espelho. A voz do narrador, como a do barqueiro, conduz Edmundo para Oxidraga.

2º FRAGMENTO DA FÁBULA

Numa noite tranquila, de sono inquieto e nuvens sombrias espalhadas sobre as casas, acontece de uma criança caminhar entre os jardins que se tornam cada vez mais distantes. A criança caminha em direção a uma caverna incrustada na pedreira, é um fosso o seu interior. Dizem que não tem fim o abismo. É um menino, segue uma voz misteriosa que o chama. Oxydraga espreita na entrada da gruta. Sem que déssemos pela falta, o espectro fez casa do nosso quintal. Um grito abafado não pode ser ouvido, e segue a manhã. Mais uma vítima. Não há motivos para duvidar da inocência de uma criança que disse ter visto a cena:

- Oxidraga é uma aranha.

A MELHOR AMIGA DE QUEM?

O que deixa Edmundo desejando a morte a escrever está posto no que escrevera antes. Perguntas sem respostas. Como a melhor amiga de Maria Inês, sua mulher, se infiltrou na história do casal? Como aproveitou sua ausência, quando trabalhava fora da cidade, para declarar como se soubesse de uma verdade oculta, que tudo entre os dois já havia acabado? Com um rasgo no rosto, que nem era riso avisara à Edmundo que desfecho é nome daquilo que teve fim. Como se fosse pouco insinuou que Edmundo se envolvera com ela.

Dupla traição: da amizade e do que do amor. Maria Inês e Edmundo se conheceram numa noite mágica, à beira mar. E se Edmundo não conta essa história que o motiva é porque busca verossimilhança para a narrativa, que leitor algum distorça a verdade como fizera a outra. Então, Edmundo cria mitos próprios que guarda em relicário, engana os sentidos. O tempo da exaustão se pronuncia esgotado. Enfim Edmundo nos revela o impasse, não terá mais alternativa que escrever.

A melhor amiga de Maria Inês mentiu, a mulher de Edmundo acreditou em cada mentira. Certamente por simpatizar-se com elas. Talvez, pela conveniência das circunstâncias e pela distância que a separava do companheiro naquela época.

Já a amizade delas começara antes. Bem antes de Edmundo vir a esse mundo de máscaras.

O que faz Edmundo peregrino sonâmbulo todas as noites é a certeza de que ambas tinham um pacto. Que guardavam segredos íntimos uma da outra, segredos de alcova. Se deles nos dispuséssemos detalhar, teríamos outro novelo, desta vez réplica ardilosa de Sade.

Vamos ao novelo, vamos à replica.

O FILHO DA PUTA

A melhor amiga de Maria Inês é mãe de rebento único, casara para dar nome ao filho que veio ao mundo numa gravidez indesejada. Teve certeza que a desgraça de ser mãe mudaria sua rotina perversa de infiltrar-se na vida dos homens que desejava. Ser mãe não foi uma escolha, mas maldição. Na cabeça dela a culpa era dos modos rústicos do roceiro com quem transou sem preservativo.

Maria Inês tornou-se amparo nesse momento de angústia. Comovida pela criança que já estava plantada no terreno mais árido que se pode ter notícia, tranquilizou a situação.

Nasceu quem não fora abortado.

As duas dividiram inúmeras situações no tempo em que crescia o menino. Guardaram segredo do vivido.

A PRIMA ODETE

A melhor amiga de Maria Inês coleciona segredos da mesma natureza de sua prima Odete. Odete por sua vez, usufruindo de privilégios no Fórum onde trabalha, obteve informações sigilosas e suficientes para se aproximar do juiz, seduzi-lo e com ele manter um caso. O juiz é bem casado, pai de família e vizinho de Maria Inês. Cidade pequena, nada fica encoberto.

Um barril de pólvora vai explodir na marquise desse castelo assim desenhado, prestes a ruir. O que apodrecia no reino da Dinamarca agora fede nesta rua. Porque Maria Inês se prestaria a guardar tantos segredos se não fosse útil? O silêncio agrega valor à informação, inocência é um estado de percepção que também as crianças desconhecem. Como saber do deleite delas barganhando aventuras extraconjugais?

ESTÁ ESCRITO

Diante das possibilidades o escritor que não escreve mais. Edmundo traz suas personagens amordaçadas, espalhadas em quaisquer pedaços de papel que encontre. É preciso ajuda de terceiros nesses casos de impasse. Por isso decide buscar a sabedoria do tarô na quinta feira. Se a cigana confirmar a suspeita de que, a cada confidência da melhor amiga, Maria Inês segredava uma traição sua, Edmundo perderá o juízo de vez. E não sabemos o que pode acontecer.

Edmundo decide enviar, por e-mail, o que tem escrito para a editora. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Adiantemos à narrativa ou retomemos à fábula, pois até quinta faltam três dias. Edmundo se meteu no banheiro, está de joelhos com a cabeça dentro do vazo sanitário. Vomita urrando. Seu grito é Oxidraga que reverbera aqui.

3º FRAGMENTO DA FÁBULA

Os gregos inventaram Baco para os festins e as orgias. Os romanos reinventaram o costume e Dionísio atravessou a Ásia, a África e chegou à América. Nosso tempo é tempo de concorrência globalizada. Faz-se necessário, para os homens que detém o poder sobre os domínios, acirrar os métodos de conquista e a permanência nos territórios ocupados. E porque nunca tivemos a perfeita combinação da química com a filosofia em toda a história, em um pequeno laboratório inventou-se a droga que paralisaria qualquer consciência, em qualquer cultura, de qualquer parte do planeta. Depois de testada na América central, noticiada nos programas de auditório do Congo, desprezada no Kremlin e abominada em retórica eclesiástica no jornal do Vaticano, um químico de uma pequena cidade desconhecida aprimorou a fórmula e batizou a substância com o nome de uma entidade mesopotâmica - Oxydraga. A nova droga, o vinho antigo, misturada em tinta para tatuagem, seria distribuída em cilindros que imprimem uma gravura. Uma figura dessas para ser colecionada em álbuns. A imagem, em três dimensões e cores hipnóticas, contém óleos essenciais que, se aplicados na pele, serão absorvidos levando à sensação de prazer intenso. Condiciona, vicia. As pessoas são transformadas em zumbis consumidores. O álbum nunca se completa por faltar sempre uma representação de Oxidraga a ser buscada até à morte. O consumo eclodiu: Oxydraga é branca e magra, os desenhos de seu corpo em “s” lembrariam uma serpente, no entanto se trata de uma aranha. Bicho peçonhento e limpo. Nesse moinho assolado por ventos fortes, o mecanismo da derrota espera Quixote para o regozijo dos analfabetos em mais uma batalha inútil contra a moral e os bons costumes. Tempo sem direção. Batalha de triste figura.

AMPARO AOS DESGRAÇADOS

Estão acampados os ciganos na praça da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. É quinta feira, dezesseis horas, o sol inclina sobre os telhados sombra obliqua. Aquela cigana negara ler a mão do filho da melhor amiga de Maria Inês que, na ocasião, desdenhou dos seus poderes sobrenaturais.

Na ocasião, quando a cigana aproximou-se oferecendo seus serviços, ela recusou e deu a mão do filho, então com seis anos. O gesto ofendeu a moral da cigana que praguejou. O que disse entre os lábios apertados e os dentes de ouro rendeu uma semana de fuxico. A cigana resoluta não quis saber do dinheiro da mãe adúltera, amante de todos os pecadores. Selar o destino de quem ainda não desabrochara para a vida é crime contra a cultura desse povo. Todos souberam desse episódio tempos depois. Outra razão e outra moral foram atribuídas às escolhas feitas nesse dia. Circulou por força dos boatos que a cigana se recusara a ler a mão do menino porque teria percebido o interesse da puta no cigano companheiro seu.

Certeza e futuro. É quinta feira.

Edmundo contrata o serviço ali mesmo, na praça. O sol declina sobre os telhados sombra triste. Logo mais, à noite, Edmundo vai visitar Maria Inês. Agora ele pergunta:

- Diga-me, de onde vem a traição?

A cigana trazia um peixe embrulhado em jornais. Antes de demorar o olhar na mão de Edmundo desamassa o papel, refaz a página com gestos nobres. Dedos impressionantes desembrulham o peixe morto. Com voz de leitora atenta avisa para outra cigana que está mais afastada:

_ Recorta, guarda que é bonito.

RITUAL MACABRO

Edmundo caminha lentamente. Os dentes de ouro da cigana faíscam nos seus olhos. Édipo mudo segue para seu destino, a advertência do oráculo foi clara.

Edmundo se aproxima da casa da melhor amiga de Maria Inês. A chuva dos últimos dias não cessa, no horizonte uma nuvem carregada promete tempestade.

O crepúsculo é apenas um fio laranja distante quando, no portão, Edmundo resolve surpreender quem estiver dentro da casa.

Sem esforço escala o muro, joga a perna direita sobre as cerdas laminadas. Sem fazer barulho ele salta, mas esquece de afastar o braço. Do corte largo no antebraço o sangue logo se espalha, Edmundo pressente seu fim.

A única luz no caminho é a da varanda, nos fundos.

As folhagens se agitam com o vento, ninguém ouve seus passos. Edmundo ouve a voz de Maria Inês, está acompanhada de sua melhor amiga. O sangue chega aos olhos. O torpor desalinha seus passos. Edmundo quase cai tropeçando no arado de ferro esquecido no jardim.

Recorte e guarda, essa história não acaba bem. Edmundo parece ouvir a cigana, esfrega os olhos. Edmundo se apresenta na varanda, tem o semblante de um vampiro.

Maria Inês está de pé vestida da cintura para baixo, os peitos à mostra. A luz que ilumina a cena vem de duas velas, a melhor amiga de Maria Inês está nua, ergue uma taça, mas corta o riso. Em defesa uma da outra, e porque estão assustadas e expostas, uma delas recua até a mesa onde está a garrafa. A outra não tem tempo para dizer nada. Edmundo se agacha, apanha o arado de pontas alongadas e ameaça assustadoramente. A pancada na cabeça faz Maria Inês cair como manequim, ensanguentada. A outra atira a garrafa, mas acerta no pilar da varanda. Os cacos estão por toda parte. O whisky derramado escorre junto do sangue. Edmundo se ajoelha para tocar o corpo, Maria Inês está morta. Então, tomado por uma força que desconhecia, se levanta. Tropeça em alguma coisa que fora lançada na sua direção, e estrangula aquela que julgava ser a melhor amiga de sua mulher.

Sem força Edmundo cambaleia, na queda traz consigo uma das velas. O fogo não faria estrago maior se o whisky não tivesse encharcado o tecido que forra da mesa de madeira, uma das cortinas e o vestido de Maria Inês.

O fogo consume tudo que vai lambendo.

No portão a sombra de uma criança desaparece quando Edmundo suspira pela última vez.

A NOITE DE LUCAS BASHAR

Naquela noite o pequeno Lucas Bashar conheceu a dor, o medo e a coragem. O corpo de sua mãe ainda ardia nas chamas, e o espectro do mal iluminava o caminho para os passos do menino. Na chuva daquela madrugada Lucas Bashar seguiu sua intuição sem chorar, sem esperar que a polícia ou o conselho tutelar viessem atrás dele. As lentes dos óculos embaçadas eram telas de cristal líquido, ali Oxidraga projetou o filme que agora assistimos.

Odete assumiu a guarda de Lucas e a responsabilidade paciente de esperar que ele falasse alguma coisa. Que falasse qualquer coisa, uma palavra talvez. Os médicos disseram que o trauma lesionou uma parte do cérebro e que o menino não teria vida normal, inspirando ainda mais Odete aos cuidados. A dificuldade da relação, que assumia legalmente, faria dela uma heroína e as suspeitas que manchavam sua moral não incomodavam. Seu caso com o juiz bem casado, de carreira promissora, seria esquecido em breve. A vida tem que seguir um curso, Odete fez sua escolha: assumiu a guarda de Lucas Bashar, esse menino franzino que agora não diz uma palavra sequer, o que torna difícil dizer o que aconteceu naquela noite.

Na madrugada Lucas Bashar seguiu pontos de luz que o desviou da cidade. O tênis encharcado logo era barro. Os pés atolavam e, com dificuldade, chegou até o reflorestamento de eucaliptos. A carvoaria fica no meio da vegetação alinhada e produtiva. Todos pensam que está desativada, mas alguns homens trabalham na clandestinidade aqui. De tempos em tempos poderíamos surpreendê-los, mas não hoje. Lucas Bashar precisa de descanso, as paredes guardam calor suficiente, o menino dorme profundamente.

Alongue os braços, caro leitor, abra sua mente. Caso contrário, descrever o que se passou dentro do forno seria trabalho inútil. Lucas está sentado, abraça os joelhos dobrados. Está dormindo, mas de olhos abertos, vidrados na abertura por onde entramos. Do lado de fora ronda uma sombra na noite. Oxidraga vem recrutar mais um bastião exemplar para as trincheiras do mal. A sombra estende e penetra, enfia-se. Veste a alma do menino como se despisse pele antiga. Lucas Bashar foi encontrado três dias depois. Deram-lhe banho, roupas limpas e canja para fortalecer.

Quando saiu do hospital, mudo e mais frágil que uma libélula, Odete levou-o para sua casa determinada à redenção de seus pecados. E tudo se deu como aqui se conta.

TRANSTORNO OBSESSIVO

Nas duas primeiras semanas Odete tomou muito cuidado. Em casa ela mudou a disposição dos quartos. Isabela veio para o quarto da frente, ao lado do quarto do casal e Lucas foi instalado no quarto que recebeu cores novas, tons de azul. No cardápio foram acrescentadas as recomendações médicas, caldos, peixes e o medicamento prescrito. No fórum Odete diminuiu duas horas de trabalho por dia. Fora orientada, é direito seu. Assim estaria menos exposta e representaria o papel de mãe protetora. O marido, professor de química na universidade local, nunca fora tão bem tratado em sua casa. Estava feliz.

No entanto tudo estava fora de lugar. Lucas cada fez mais silencioso, o fórum cada vez mais barulhento. Odete nunca protocolou tantos papéis, nunca encaminhou tantos processos. Todos os dias chegavam histórias novas, antigas contendas que, nos parece agora ao narrar os fatos, as pessoas resolveram dar cabo.

Nos corredores a servente comenta a morte do Portuga, homem querido por todos na cidade. Cerrou as portas da pizzaria na noite de sexta avisando que os derradeiros clientes teriam que sair. Um último cliente que aguardava atendimento saca de um revolver e faz refém o Portuga. Um casal é trancado no banheiro. No cofre pouco dinheiro é a razão para o tiro na nuca. O Portuga é morto. Antes de fugir o bandido atira duas vezes na porta do banheiro, sarcástico desaparece montado numa Hornet vermelha.

- O que está acontecendo nessa cidade? – É o burburinho essa pergunta.

Odete percebe os comentários, mas está ocupada demais. Pratica o sorriso que ensaiara. O sorriso de mulher bem aventurada, mãe dedicada e esposa fiel. Quando chega à sua sala encontra na mesa um bilhete. Uma colega, sentada na terceira mesa de atendimento avisa, cabisbaixa, que deixara na mesa sexta feira, depois que Odete já tinha saído.

O BILHETE DA MORTE

Odete, vamos esperar vocês na pizzaria do portuga ás 20h.

Não se atrase. - Renata e Marcelo.

O bilhete era um convite.

Percebendo o que poderia ter acontecido, Odete, a face sem cor, se deixa cair na cadeira. Depois de recobrar algum sentido liga para casa e fica sabendo que está tudo bem: Lucas dorme dopado, Isabela não chegou da escola, o marido ligara pedindo esfirras para o jantar. Na verdade, Odete ligou para se certificar de que não morrera. Talvez tivesse saído com o marido na sexta, encontrado Marcelo e Renata na pizzaria, bebido o vinho de sempre. Talvez estivesse morta como o portuga, imaginando estar no trabalho agora. Odete riu de si, girou na cadeira, e seguiu adiante a rotina do fórum. Fez dois atendimentos, pequenas causas. Vizinhos em contenda reivindicando a metragem correta dos terrenos onde construíram suas casas. Lembrou-se, ao carimbar as últimas folhas do processo, de estampar o sorriso que praticava e, aliviada como se o mundo voltasse à sua órbita, decidiu tomar café.

A lanchonete que atende aos funcionários também recebe as pessoas que procuram assistência jurídica. As esquadrias de alumínio, em conjunto, formam imenso espelho para quem está na rua. Para Odete, e para nós que vemos o acidente acontecer diante dos nossos olhos, a grande vidraça é apenas continuidade da nossa retina.

Um carro é abastecido no posto em frente, do outro lado da rua. O frentista deixara a bomba de gasolina encaixada, abastecendo. Vai receber de outro motorista a conta. A bomba cai no chão e a gasolina se espalha debaixo do carro. Dentro dele Renata e Marcelo parecem discutir. Ouvimos o barulho. Um caminhão que faz entregas de eletrodomésticos, desgovernado, ultrapassa o sinal e vem nessa direção.

Odete, e todos que estamos na lanchonete, é espectadora do vai acontecer. Ao som estridente da buzina do caminhão, os gritos dirigidos para o casal dentro do carro. Marcelo parece enfurecido, mas o ar condicionado é um alívio momentâneo. Odete dá dois passos e toca no vidro, cola a boca na imagem de sua boca refletida ali. A explosão não atinge o motorista do caminhão, mas o carro está invisível no fogo. A onda de calor chega até o fórum. Por sorte a contenda dos vizinhos chegara a bom termo, eles já não estavam nas escadas da frente.

Nos próximos dias o sorriso de Odete seria menos humano. A cada ocorrência desconectada da sua realidade sentiria aquela sensação de estar envolvida. Se uma criança atravessasse a rua antes dela Odete temia que fosse atropelada. Operários numa escada poderiam cair depois que ela passasse pelos andaimes. O noticiário do horário nobre associava a atuação da máfia italiana à escolha da pasta de dente que usara de manhã. Lucas não disse uma só palavra até agora, por que diria então que Odete está paranoica?

FOTOGRAFIAS NA PAREDE

O cheiro da tinta fresca no quarto de Lucas, que aos poucos impregnara a casa, estava acrescido agora um odor suave de mofo. Fechada desde a garagem, a casa cheira mal. No entanto, apenas Isabela se incomoda. A menina tem oito anos, parece boneca entre bonecas e vestidinhos coloridos. Vez ou outra reclama:

- Esse peixe está com gosto ruim, não vou comer nada.

A representação de boa mãe e esposa fiel teve curta temporada. Odete não percebe a manipulação do espectro, Oxydraga é presença absoluta, o silêncio de Lucas pavimenta seu transtorno obsessivo. Todos definham nessa casa. Odete agora insiste com o marido “vamos organizar as fotos”. Ele preocupado com a defesa de seu doutorado “claro, querida!”.

Sete dias se passaram. Em cada um deles uma ocorrência bizarra envolveu Odete perplexa, o marido alheio, Isabela distante e Lucas emudecido. Nos cantos, e debaixo dos móveis pesados, aranhas sem pressa teceram suas teias. No oitavo dia Odete dispensou a empregada, desligou o telefone fixo e, sem que o marido soubesse, esvaziou o tanque de gasolina dos dois carros da família.

Foi na noite do oitavo dia, quando a casa descansava, que a sombra pesou sobre as fotografias. Oxydraga envelheceu, com seu ódio, as imagens registradas. Nenhum afeto resistiu. Na manhã seguinte o marido de Odete, químico doutorando na universidade local, notou diferença no próprio semblante, no espelho, quando saía do banheiro. Foi nos três quartos. Sua mulher respirava profundamente porque dormira um minuto, a filha parecia um anjo, os cabelos um tom mais escuro.

No quarto de Lucas, as fotografias dos álbuns estavam coladas nas paredes. Alinhadas, uma após outra, numa sequência de movimento notável. O marido de Odete gira nos calcanhares e repete duas, três, quatro, cinco vezes, o movimento completando as voltas. Na cama Lucas está, como se estivesse, ausente. A sequência fecha um ciclo de imagens, sugerindo que o início se encontra com o final. E, entre uma coisa e outra, fora deixado espaço onde cabe ainda uma foto.

Muitas perguntas ficaram sem respostas: como Lucas, o pequeno Bashar, franzino, de olhos arregalados, teria conseguido colar as fotos naquela altura da parede? O que é aquela gosma cinzenta que fixa as fotos? Porque ele teria selecionado apenas fotografias que, de uma forma ou de outra, remetiam ao Oriente? Um registro da ultima viagem para a Síria. Nos olhos uma saudade só sentida por quem vive longe da terra que amou um dia. Envolvido nesses pensamentos, o marido de Odete abandona-se num suspiro prolongado.

Decide, para o bem de todos na casa, que farão a viagem planejada o mais rápido possível.

À CAMINHO DE DAMASCO

O voo de São Paulo para Damasco não tem escala. É viagem de quatorze horas e trinta e nove minutos para cruzar dez mil, duzentos e sessenta quilômetros. Da janela para o corredor, intercalados adultos e crianças, estão Isabela, Odete, Lucas e Euclides Altagnã. Nesse momento o avião, estabilizado, alcança o Atlântico. O quase doutor Altagnhã não é homem de ressentimentos. Tem olhos para o futuro, mas a sequência das fotografias na parede do quarto de Lucas Bashar ainda projeta um filme na sua memória. Ele recupera, sem resistência e a contragosto, os acontecimentos dos últimos dias. O fim do caso amoroso entre a prima de Odete e Maria Inês terminando tragicamente pelas mãos do escritor Edmundo Boaventura. O incêndio que deixara órfão o menino. A tentativa de assassinato de seus amigos Marcelo e Renata. A morte insólita do casal no posto de gasolina, e os desvarios de Odete.

A única saída pareceu-lhe ser a fuga em busca das origens.

***

Nesse momento, Euclides sorri para a esposa. Odete, na poltrona de número vinte e dois, se entrega sob o efeito de tranquilizantes. As linhas de expressão do rosto de Euclides são hieróglifos antigos, aura densa. Um texto bonito.

Sua maior preocupação ainda é a dificuldade com a língua árabe. Os últimos parentes de Odete, na síria, nada falam de português. Sentem prazer com o desconcerto dos hóspedes.

Os anfitriões preferem vê-los gaguejar meia dúzia de palavras que colocar em suas bocas o som imundo de uma língua estrangeira. O que dizem nas aldeias é que os mais arredios moradores ainda falam eblaíto em rituais secretos.

Pela terceira vez chegarão em Tell Mardikh e, de lá, para as ruínas de Ebla. Ebla, Rocha Branca.

Euclides resolve ler o almanaque entregue pela aeromoça, sente um arrepio e pensa “estamos indo para o inferno”. Em outras palavras, o almanaque diz que a Síria é o mundo esquecido por Deus e as ruínas de Ebla é o cu desse mundo.

O silêncio dentro do avião é opressivo, se cairmos o Atlântico será nosso túmulo.

A voz do comissário de bordo anuncia o jantar em inglês e árabe. Uma pausa. Euclides, olhando para a imensidão negra azulada que a luz fria da lua revela, espera que a mensagem seja repetida em português. E mais uma vez ouvimos a voz do comissário.

- Senhoras e senhores, o jantar será servido em poucos minutos. Espero que o senhor esteja confortável com suas dúvidas, senhor Altagnã. É nosso dever prepará-lo para estadia breve.

Euclides, apavorado de ouvir seu nome, pensa que é um delírio. Recosta na poltrona.

O senhor não tem poder para interferir, senhor Altagnã. O deus que habita o fogo destruíra essa geração.

Euclides suspende a respiração, as refeições são entregues. Os passageiros do seu lado comem. Uma das aeromoças se aproxima empurrando o carrinho com as embalagens plastificadas do jantar. Pergunta:

- O senhor aceita um cálice?

- Não, obrigado. Euclides sorri disposto a não pensar. A aeromoça insiste ríspida:

- Coma e beba, faça sua parte.

Com semblante assustador a aeromoça desaparece no fim do corredor. Euclides treme de medo. A voz do comissário de bordo retorna mais grave, gutural. Moloque criou esse mundo. Na terra de Can os cultos são orgias, nos seus altares são inúmeras as gestações indesejáveis. O destino das crianças nascidas dessa circunstância é o sacrifício. A maior parte dessas crianças nasce com defeitos patológicos, é raro encontrar uma que seja pura de alma e corpo perfeito. Uma criança que purifique os infiéis.

Onde foi que Euclides leu? Moloque tem corpo humano e cabeça de boi. A voz do comissário na sua cabeça continua informando. A enorme estátua de bronze que o representa sentado, levemente inclinado para trás, projeta o dorso e salienta a cavidade no ventre. Dois homens colocam betume ali. As chamas aguardam o momento da purificação. O fogo deve consumir viva a criança escolhida.

_ Querido, querido! Não vai comer? - É Odete.

Euclides acorda em sobressalto do devaneio. Sem fome, esforça-se para dissimular o medo. Seca com a mão o suor da testa. A viagem está ainda começando.

ÚLTIMA FRONTEIRA

Euclides Altagnhã revê as fronteira da Síria: com o Líbano e o Mediterrâneo a oeste, com Israel a sudoeste, Jordânia ao sul, Iraque à leste e Turquia ao norte. “A terra do levante” – conclui para formular, logo em seguida, novas perguntas. Segue lendo o almanaque.

Damasco é a cidade mais antiga continuamente habitada do mundo. Os primeiros povos a sobreviver, sob o clima árido do mediterrâneo, nessa região, falavam acádio. Língua semita assírio-babilônio cuja expressão escrita, cuneiforme, deriva do antigo sumério. Tão isolada quanto a língua, fora a escrita desse povo e sua memória é quase uma lenda. Há pouco tempo uma descoberta fascinante colocou a Síria em evidência: colonos israelenses descobriram vinte mil tabuinhas de barro com representações gráficas da língua eblaíta em sumério antigo. No entanto, a guerra da ocupação se estende nos assentamentos de Golã. O povo que um dia fez uso dessa língua está desaparecendo. Neste momento Euclides percebe, ainda vagamente, uma conexão entre tudo o que está à beira da extinção. O gosto amargo da bílis vem à garganta. Com a morte de sua cunhada, os únicos sírios do clã Bashar, nascidos na província de Ebla - a terra do sol magnífico - estão sentados ao seu lado. Lucas e Odete Bashar guardam, na expressão cansada, o benefício do alívio no sono.

Euclides desiste do almanaque, precisa distrair. Ler um romance talvez.

O relógio marca 00:20. Euclides Pega o livro que está a ponto de cair do colo de sua esposa. E principia na leitura, a partir da nota do autor, da nova edição de OXIDRAGA.

2ª PARTE

OXIDRAGA

mãe adúltera, amante de todos os pecadores

*

CONTO

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terror

Edmundo Boavenura

nota do autor

“Os sentidos nasceram só agora. E já estão mortos.”

- do LIVRO DOS TORMENTOS

Essa nota deve acompanhar a publicação de OXIDRAGA. A verdade redescoberta é um mundo novo, os antigos sabiam disso. Eu temo ter descoberto tardiamente que o espírito tem a propriedade de transpor no tempo as limitações da matéria. O espírito do medo é uma sombra, nenhuma luz é capaz de iluminar meus pensamentos. Não devia ter insistido. Precisava escrever uma história, vender livros e tornar-me o grande escritor apavorado que agora treme as mãos suspensas sobre o teclado do computador. Meus leitores perdoarão o desfecho, a curiosidade levou minhas pesquisas ao abismo da insanidade. Resta a eternidade para o arrependimento. O consolo não vem, essa é uma guerra perdida. Aos editores agradeço a maldição e aos leitores advirto: sua alma corre perigo.

Quando o avião finalmente pousou, uma onda de pavor gelou meu corpo. Minha alma encolheu assustada. Cada um que desembarcava experimentou a sensação de ter sobrevivido e ainda correr perigo. A visão que tivemos do alto, sobrevoando em círculos até que o pouso fosse autorizado, era de que aterrissávamos no inferno. A cidade ardia em chamas. Bombas explodiam prédios inteiros. Ambulâncias, sirenes, caos. Soube ali que existe diferença entre o cheiro de carne queimada e cheiro de carne humana queimada. Odor asfixiante, doce demais. Soubemos que o aeroporto estava interditado, ninguém podia entrar ou sai de Damasco. Foi um milagre chegarmos até aqui.

Dois homens fardados, falando inglês, arrastaram-me pelo braço. Não permitiram que eu explicasse para onde ia com minha família. Levaram-me para uma sala pequena onde esperei por três horas. O celular não tinha sinal. Minha esposa delirava. Confiante nas instituições e na tradição daquele povo. Quando sai, esperava-me dentro de uma caminhonete minha esposa, minha filha e o meu sobrinho agregado, estranhamente mudo. Os dois homens entraram na condução, fui conduzido para o banco de trás.

Sem energia elétrica, tudo mergulhava no escuro.

As explosões permitiam o reconhecimento dos escombros. Mulheres desesperadas agitavam bandeiras em farrapos, ou seria vestido aquilo que as cobria? No canto de uma sinagoga, que resistia de pé, algumas crianças ajuntavam pedras. Em volta delas, homens armados protestavam. De suas barbas negras escorria saliva e ódio. Pedaços de imagens, corpos estilhaçados. Um braço sem vida e uma mão que o acariciava sem esperança. Fragmentos sem cor, rostos e gemidos. As bombas só não cobriam os gritos por toda parte.

A crueldade tem seus requintes, foi determinado o território e a etnia a serem banidos do mapa. No posto da primeira barreira soubemos que o ataque israelense tinha feito dois mil e quinhentos mortos em quatro dias.

Damasco encontra-se num oásis fértil. Entre o Hermon e o deserto sírio, ainda é uma importante rota de caravanas. Estávamos a salvo das bombas, agora. As ruinas para onde nos dirigíamos ficam a setenta quilômetros ao sul de Alepo.

Passada a fronteira demarcada para a destruição, ainda nos arredores da capital, podíamos ver a estrada que nos levaria para Tell Mardikh.

A antiga Ebla, às margens do Eufrates, seria nossa perdição.

***

Nenhuma surpresa no trajeto desde a saída de Damasco, aquela estrada antiga nos levaria até os parentes da minha esposa. Nossa esperança era encontrar respostas para o que estava acontecendo em nossa casa, no Brasil. Respostas que, certamente, seriam dadas pelos antigos. Cheguei a pensar que estava a salvo. A sensação de bem estar durou pouco. Durou o tempo que demorei em reorganizar a sequência das fotografias.

***

Aconteceu duas semanas depois que adotamos o menino, sobrinho órfão da minha esposa. No quarto dele, a parede estava coberta de fotografias. Não sei como ele as colou ali, naquela altura, mas estavam lá surpreendentes.

A primeira foto foi feita no dia em que descobri o caso da minha mulher com o juiz. Jantávamos na pizzaria do Portuga, fui ao banheiro e ouvi os comentários de dois rapazes que estagiam no fórum, onde ela trabalha. Experimentei a impotência, calado. Naquela mesma noite encontrei um velho conhecido que me abordou no posto de gasolina, estava eufórico e quando perguntei, por educação, como ia sua vida, ele me sorriu e mostrou, entre os dentes, alguma coisa embrulhada em plástico. Disse que tinha descoberto o amor da vida dele e me ofereceu a droga que usava. Em casa experimentei, o prazer chegava em boa hora. Nas duas semanas seguintes usei o laboratório da faculdade para refinar a substância. Mais pura, mais potente, cristalina. Percebi que tinha criado algo novo sobre a base daquela droga, logo devia dar-lhe nome novo. Não sabia de onde vinha a ideia, mas “oxidraga” parecia o nome perfeito. Deusa temida na antiguidade, venerada pelos exércitos inimigos por causa do medo que causava. Oxidraga.

Na segunda fotografia, colada na parede, meu semblante já era de um dependente daquela substância. Olhos arregalados, sorriso eufórico e face sem carne. Ser doutorando em química não garantiu que o baque fosse menos perceptível. O prazer intenso que experimentei dispensou a falta do sexo, não importava mais ser traído. Dediquei-me em transformar a pasta original da droga em um cristal sólido. Misturada ao tabaco virava fumaça, inalada tinha o poder de levar-me ao pico do Everest em segundos. A queda, na volta dessa viagem insólita, era prazer redobrado porque lentamente meu corpo se aproximava do chão. A fotografia não traduzia o prazer, mas fuga. Nos meus olhos era nítido o pavor e o medo.

A terceira imagem na parede era do velório. Os corpos do escritor e de sua mulher assassinada por ele. Também o corpo da irmã da minha mulher. Todos estavam dispostos na mesma sala. Ninguém na cidade entendeu aquela barbaridade. Tive pena do menino órfão, com o trauma ele ficara mudo, não dizia uma palavra. Não pensei em recebê-lo em casa, foi minha esposa quem teve a iniciativa. Sei que fez isso por que se sentia culpada. Ela terminara o caso com o Juiz, se dedicou a cuidar da casa e da família. Ela fingia que eu não sabia de nada. Nós fingimos.

Na quarta fotografia, minha filha brincava com o pequeno agregado. Tínhamos passado o domingo no sítio. Na foto estão de mãos dadas ao lado da cisterna aberta. Nos olhos do menino pude ver o horror que fora evitado!

Na quinta fotografia, nossos parentes reunidos nas ruínas de Abla. Posavam para o retrato, guardiões protetores da cultura antiga. Sinalizavam da Síria que a origem do mal estava ali, entre as rochas, na areia, no fundo do poço sobre o qual estavam sentados.

A sequência das fotos parecia uma indicação, origem e fim. Uma mensagem cifrada que fizera meu sobrinho calar de medo. Naquela noite decidi a viagem. Acho que foi a inocência no olhar da minha filha, estampado na fotografia para o estranho agregado, que pesou na minha decisão de tomar as rédeas da situação. Fazer alguma coisa.

Lembro perfeitamente a angústia que senti naquele momento. Depois de decidir que iríamos todos para Tell Mardikh pude descansar alguns minutos para, em seguida, preparar mais uma dose, uma dose. Preciso de uma dose... Foi um milagre chegarmos a Tell Mardikh.

***

Isso tudo aconteceu há poucos meses. Agora, no carro, a caminho de Ebla, tenho nos braços, protegida no colo, minha filha de oito anos.

Podia sentir o calor do seu corpo aquecendo todos no carro. E pensei mesmo que, por ela, daria minha vida. Impressionante são as voltas que o orgulho dá em nosso caráter. Erva daninha, não se mostra enquanto sugere, na aparência, a beleza da paternidade e outras frivolidades. Nada disso suporta a esmagadora força que tem o medo. O medo nos revela por inteiro, o medo despe a alma até o ponto em que nossas carnes fremem despregando dos ossos, o sangue apenas marca na terra a passagem dos fracos. Cristão de merda, o que sou eu afinal?

Os dois homens, que eu supunha serem soldados, estavam sem o uniforme que vestiam., Reconheci um deles sem espanto, era tio da minha esposa. Estávamos mergulhados no silêncio. Foi o menino que avistou a mulher. Ele, que não falava uma palavra há dois meses, disse com a voz mais doce que um anjo pode ter.

- Ela está bem ali.

Reparamos, então, na silhueta esguia da mulher branca mais atraente que vi. Mergulhada no breu, estava sentada numa pedra grande e lisa. Ergueu-se como guerreira, lentamente pronta. Nada em seu movimento pareceu-me estranho e, no entanto, era uma visão única. Seus cabelos lisos, ondulados na altura da cintura, cobriam um cinturão onde descansava a munição. Contrariando as leis do corão, as pernas compridas eram duas colunas fortemente protegidas dentro de uma calça de couro de cabra, calçava botas. Tudo por aqui é anterior ao advento do Cristo. A cada passo na nossa direção oferecia os quadris num balanço ofensivo e agradável. Tinha uma arma presa na cocha direita e segurava outra na mão esquerda. Minha esposa desceu da caminhonete. Fiquei atônito, paralisado.

Não houve tempo de maiores esclarecimentos ou apresentações formais. Minha esposa desceu do carro, hipnotizada caminhou rápido iluminada pelos faróis. Abraçadas, as duas demoraram um século para se afastarem uma da outra. Quando finalmente voltaram do abraço suas bocas colaram uma na outra num beijo que desfez qualquer esperança que eu pudesse guardar. Samira Qasim Quasin abraçou minha esposa mais uma vez enquanto retirava do cinturão um punhal. Assistíamos. Tapou a boca com uma das mãos e com a outra feriu profundo sua carne na altura dos rins. Enfiou mais profundo a lâmina. Não havia mais vida no corpo dela, então a beijou mais uma vez. O corpo foi deixado na estrada como algo que não servia mais.

A mulher que matou minha esposa era sua prima. Samira Qasim Quasin, habitante defensora das ruínas de Ebla. Limpou o sangue das mãos nas cochas e entrou na caminhonete.

***

Um diálogo cacófato entre a assassina e o meu sobrinho agregado soou como Stravinsky em meus ouvidos, surreal. O pequeno, que estivera mudo desde a morte da mãe naquele incidente horrível, tagarelava numa língua que ele não conhecia. Identifiquei algumas palavras em eblaíto. Ninguém mais fala essa língua, não apreendi o significado de quase nada. Ele estava curado ou enlouquecera de vez? As palavras tinha feita mudança na postura dele. Mais ereto na poltrona, tinha a elegância e a suavidade de um Sidarta.

As palavras que identifiquei coincidiam com o significado moderno que damos para “sacerdote”, “sacrifício”, “profeta”, “ofício”, “necessidade”. Bem ou mal compreendi tarde, meu sobrinho agregado é o elo que nos liga às mortes.

Ele encarna o espectro do mal que habita essas ruínas, o desejo de vingança que move esse povo e habita seu corpo.

Tudo parecia matéria de sonho, aparições solenes de espectros guerreiros. O que teria dito o fantasma do pai de Hamlet se tivesse boca ao invés de pensar que tinha? Apareceu, instigou a vingança e fez do filho seu instrumento para entronizar a ordem desfeita pela traição do irmão. É nas horas mortas que antecedem a aurora que o abismo se abre para as almas perdidas. O mesmo abismo é oferecido como oportunidade de ascensão para as almas que desejam ardentemente a perdição. Nesse entreato as escolhas são urdidas como feitiços. Como desfecho só podemos esperar a catástrofe, o sangue, o ódio e a desventura travestida de esperança. “Tudo em família”- teria dito o fantasma cínico, pai morto do príncipe da Dinamarca numa língua que só os demônios compreendem.

As colinas de Ebla, que estão a 70 km ao sul de Alepo, abriram-se para nossa passagem. Logo avistamos o vale. Nele, Ebla ainda mergulhada nas trevas da noite, recebeu-nos como prostituta barata, em festa comedida. O sol nascente deve revelar os mistérios desse lugar, pensei sem ânimo.

***

Na vila fomos separados. Minha filha e o maldito sobrinho estão numa das grudas que vimos do alto. Colocaram-me nessa sala, deram-me um laptop. Estou sentado à mesa e tenho nos tornozelos uma corrente pesada que me prende à parede que é parte da rocha, da montanha. Minhas mãos, desoladas, pousam tremulas sobre o teclado.

- É o que você deve fazer. – Vai dizendo Samira. -Foi trazido aqui para isso, para escrever.

Samira Qasim Quasin recostada remexe os cabelos e justifica.

- O tempo nunca é suficiente, sobreviver tem sido o desafio do meu povo. Você escreverá uma história sobre a capacidade de destruição que tem nosso inimigo, sobre atrocidade e o horror. Você tem esse dia para escrever, enquanto houver luz. É o tempo da preparação das crianças para o sacrifício. No sangue inocente da sua filha ou no ardil da sua narrativa, que espero convincente, depositamos nossa esperança. Deixo em suas mãos o desfecho dessa história.

Com essas palavras fui informado que minha filha seria sacrificada pelas mãos do meu sobrinho num ritual macabro de uma deusa mesopotâmica desconhecida do mundo moderno. Sobrinho que não é sobrinho... Sacerdote... Ele estava morando na minha casa quando batizei a droga com o mesmo nome da entidade. Fui manipulado pelo espectro. A traição da minha esposa me levou ao desgosto, a falta de sentido me levou ao uso do entorpecente. Isso acontece com tanta gente todos os dias, eu sei. Mas foram as minhas mãos que completaram a fórmula, a substância ficou pura depois que acrescentei moléculas impensadas. Experimentei o êxtase do prazer e a queda na dependência. A vida é paradoxal, o sentido está no detalhe. Deus e o Diabo também. Eles querem uma história onde possam figurar como os mocinhos inofensivos e, ao mesmo tempo, preparam para inundar o mundo com a droga. O sangue da minha filha é apenas tinta para assinar o contrato.

***

Quando chegamos, Ebla parecia ruína despovoada, agora sei que os demônios também repousam. Agora sei que o conflito no Oriente Médio não é apenas a disputa por território, mas a urgência de esmagar as almas que resistiram à conquista. “Uma palavra, preciso de uma palavra”. Uma imagem vem à minha cabeça, preciso escrever. As inscrições em eblaíto nas tábuas de argila, a descoberta das escavações israelenses a que deram o nome de “escritos do mar morto”. Porque ainda não divulgaram os textos? Porque o achado foi tratado como espólio de guerra e distribuído entre as grandes potências armadas de armas atômicas? Quanto do meu corpo, quanto do meu sangue estará perdido para essa narrativa? Escrevo para salvar, se não nossas vidas ao menos nossa alma.

***

Minha filha está deitada numa pedra fria, rasparam sua cabeça. O corpo dela se contorce em convulsões, vomita até as tripas. Quando suas vísceras estiverem limpas, banharão seu corpo com uma mistura de ervas. Secarão o ventre e o sexo virgem dela. Uma menina de oito anos, meu Deus, meu Deus... “Deus não existe. Preciso escrever isso”.

O crepúsculo arromba as portas do oriente, posso ouvir o ruído das sombras arrastando consigo a desgraça. Sobrevoam a vila aviões não tripulados, drones equipados de câmera e olhar infravermelho. Tuneis foram cavados debaixo dessas grutas, o inimigo surgirá como um ladrão. Esse será o meu túmulo. Não escrevo para distrair, eu mesmo realizo o sacrifício.

***

No lugar do menino maldito entro eu na caverna escura. Tochas sinalizam o caminho no labirinto. A cada cinco passos, uma sentinela usando máscara com chifres me espreita. Sigo firme no propósito. Nos fundos da câmara um altar de pedra, depois dele a grande estátua de Oxidraga domina o ambiente.

Coloco a menina na mesa do altar, nua. Sirvo-lhe o veneno que paralisa seu corpo sem que perca a consciência. Recebo das mãos do pequeno sacerdote a adaga sagrada, ergo lentamente e o brilho da lâmina rasga meus olhos. Átimo de tempo, revejo sua infância feliz. Não paro, não posso. Mais uma palavra. Mais uma.

Firme pressiono, o fio da adaga corta a pele dos dedos. Os ossos rangem. Separo os dedos da mão, depois o punho do braço. O antebraço vibra ensanguentado. Contorno a mesa, do outro lado esquartejo os dedos e o punho igualmente. Ergo mais uma vez a adaga suja de sangue, todos lamentam em coro de regozijo. Estanco a hemorragia usando ervas e bandagem, ela não pode morrer assim. Seus olhos não perdem os meus um instante, perguntando por que faço isso. Terno e sem medo, do azul profundo, seu olhar aceita o sacrifício.

Recebo das mãos do pequeno sacerdote, aquele menino que salvei da orfandade, uma lâmina maior. O peso dela separa do corpo as pernas na altura do joelho. Ergo mais uma vez, mutilo o corpo da minha filha para que o tronco caiba na posição correta no bojo da estátua. Mais ervas, mais bandagens. Mais uma palavra se arrasta do vazio, corto, escrevo.

Quatro mulheres erguem o corpo enquanto limpo a mesa do altar, minha filha está de bruços. Pálida, quase sem vida. O sol desistiu de iluminar essa parte do mundo, o Ocidente é o destino da noite.

Inesperadamente, depois que a menina é colocada no ventre da estátua, quatro homens avançam para o sacerdote menino. Amordaçam sua boca e o arrastam na direção da mesa do altar. Ele é amarrado, de bruços e currado sucessivamente por todos eles. A assistência vibra urrando palavras em eblaíto. Mulheres e homens praguejam e apontam ameaçadoramente enquanto atiram pedras na direção do altar. Urros abafados, imensa dor.

O frágil corpo recebe socos de um dos homens, chutes do outro que está de pé sobre a mesa sólida.

Um terceiro homem brande uma tocha que vai iluminando a cena, chamuscando o pequeno que completara doze anos ainda há pouco.

O quarto homem o penetra bestialmente. As posições se revezam numa quadrilha diabólica, a montanha vibra.

Esvaído, o menino desfalece ensanguentado. A assembleia, então, dança ao som ensurdecedor de tambores. Sinto um alívio indescritível, como se parte do mal tivesse sido banido da face da terra. Estou fazendo a coisa certa.

Milhares de crianças já foram assassinadas em nome da paz, os sonhos de muitas meninas foram interrompidos na tenra idade. A iniquidade assola a terra e nenhuma santidade é assegurada por nossa hipocrisia. Estou fazendo a coisa certa. Uma menina ocidental em holocausto, minha filha. A coisa certa, uma palavra.

As quatro mulheres voltam para limpar a mistura fétida de sangue, urina e fezes. O delírio comeu o silêncio, todos gemem aliviados.

As tochas, que até agora estavam ocultas atrás da enorme estátua, inclinadas ardem o bronze. Tudo reluz.

Caio de joelhos e colo meus lábios na rocha branca em que pisamos.

Não posso ver isso.

As bordas laterais do bojo, do ventre da estátua, derretem lentamente. Escorrem metálicas sobre o corpo da minha filha. O ar fica mais denso, o cheiro da carne humana queimada é doce. Incrivelmente doce.

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Fim

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Quando o avião finalmente pousou em Damasco, uma onda de pavor gelou o corpo de Euclides Altagnhã. E sua alma encolhe assustada.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 24/07/2014
Reeditado em 14/04/2018
Código do texto: T4894481
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