O PORTAL
“Sem a instrução dos Mistérios, nossas vidas estariam limitadas ao horror do nascimento e o terror da morte.”
(Dion Fortune)
Catarina leva uma vida bem tranquila dentro do contexto que escolheu: casa, família, filha, marido. Ela relegou a profissão de advogada para o segundo plano, afinal teria ainda muito tempo pela frente para realizar- se profissionalmente. Pelo menos era o que achava antes do destino mostrar suas garras afiadas.
Casada há cinco anos, amava sem limites a filha Agnes que completara dois anos no início da primavera. O marido, Miguel, a quem também Catarina dedicava todo seu amor, gerenciava uma Transportadora. A empresa realizava entregas para várias regiões do país então ele viajava muito, porém Catarina pouco se afastava de seu quinhão natal.
O jovem casal residia em Mira Vento, provinciana cidade mineira, famosa pela água boa que fazia os visitantes retornarem tanto por ela quanto pela hospitalidade de seus habitantes.
Catarina, rigidamente criada no seio de uma família católica procurava seguir a tradição dos batizados, missa aos domingos e outros preceitos, tanto que a jovem dona de casa não imaginaria jamais que um dia algo a levaria trilhar outro credo.
O espiritualismo estava bem disseminado pelo bairro onde residiam, e a primeira coisa que Catarina percebeu foi o prédio onde grande número de adeptos se reunia. A edificação simples e sóbria estava situada no meio do quarteirão e o movimento era grande com bazares, distribuição de sopa aos carentes que felizes aguardavam na fila em frente ao portão de entrada. Na esquina do lado direito ficava o lar de Catarina. A casa de fachada verde e grades brancas chamava a atenção pela arquitetura, cujo telhado é coberto de telhas cerâmicas francesas e beiral duplo. O belo jardim florido se parecia com afresco de notável pintor, o que deixava a casa de Catarina e Miguel ainda mais acolhedora. O clima bucólico daquele lugarzinho transmitia paz. O contraste de dois bancos azuis de madeira com a grama verde, e os canteiros floridos em volta, era espetacular. Os bancos antigos permaneciam estáticos sob as árvores também antigas enfeitadas de flores brancas que exalavam aroma forte e agradável que impregnava toda a redondeza parecendo se oferecer a quem lhes botasse os olhos. O alpendre cuja cor contrasta com o restante da fachada é todo cercado por muretas baixas e sustentado por pilares de madeira arredondados que ostentam a rede colorida, de franjas desfiadas. Agnes adora balançar e dormir na aconchegante rede, que se tornou seu brinquedo favorito.
O alpendre na verdade é um ambiente de estar, chamativo e acolhedor e foi assim projetado pensando nas noites quentes e nas tardes melancólicas que Catarina passaria sozinha em casa lendo ou escrevendo. Catarina amava os livros, romances, contos e filosofia, gostava de rabiscar poemas e assim se divertia. Quando lia as histórias e vivenciava a saga de cada personagem, viajava mais que o marido.
Catarina e Miguel, quando viram realizado o sonho da casa própria sentiram-se o casal mais feliz do mundo. O imóvel estava bem danificado, completamente abandonado e dilapidado pela ação do tempo, mas com a reforma, no entanto, a casa ficou bela e acolhedora. Conservaram as árvores do jardim e também o pomar nos fundos do imóvel. Catarina pensa às vezes, em retornar ao trabalho, mas ama ficar em casa e cuidar de Agnes.
Desde a primeira visita Catarina sentiu-se atraída pela casa, mais que isso assim que adentrou no imóvel pressentiu que seria parte daquele lugar. É como se vivesse ali desde sempre. Aquele era seu lar, mesmo todo desmoronado exalava um cheiro de lar, e nasceu em seu coração a certeza de que viveria naquele habitat para sempre!
No início da reforma começaram os pesadelos de Catarina com o bairro, com a casa abandonada e com pessoas totalmente desconhecidas para ela. Pelo menos na vida real porque nos sonhos de toda noite via sempre a mesma gente que se reunia à sua volta, cada qual contando sua própria história, e ela agoniada não compreendia nenhuma delas.
O tormento chegou ao ponto de suas madrugadas tornarem-se assombradas por dolorosos pesadelos e, acordava diversas vezes gritando na escuridão, o corpo ensopado de suor.
O pavor às vezes era tamanho que ficava impossível voltar a dormir, assim passava muitas madrugadas em claro, assistindo a televisão, ou lendo um livro.
Sensitiva, era o que diziam a seu respeito desde criança, pois muitas vezes vira e ouvira coisas que seus pais não sabiam explicar.
Catarina não rara vezes, era acordada na madrugada com sopros contínuos em seus cabelos, e sentia os fios esvoaçantes na face e o sopro leve e constante vindo do nada desaparecia quando despertava completamente, ficando a sensação de sonho e realidade. Era como se algo ou alguém brincasse com ela.
Certa noite acordou sobressaltada com o leve tapa no dorso do pé. Por alguns segundo ainda guardou a sensação do toque em seu corpo. Foi assustador!
Durante o dia ouvia vozes chamando por ela, e por diversas vezes se dirigia ao portão e não encontrava ninguém.
Catarina amava o por do sol, sentia uma doce melancolia com a chegada do crepúsculo. Era finalzinho de uma ensolarada quarta feira. O sol dava adeus ao calor da tarde e uma brisa fresca amornava o alpendre. A rede branca dera lugar à rede colorida ostentando as mesmas franjas desfiadas e jazia displicente, enquanto Catarina brincava com Agnes no jardim.
Distraída, a mulher nem percebia os transeuntes que passavam em frente. Mostrava para a filhinha os insetos, as flores que enfeitavam o gramado verde e bem cuidado, e os passarinhos que em revoada buscavam nas copas das árvores um local para passarem a noite. Naquele instante a pequena Agnes admirava extasiada a última refeição do dia de um leve beija- flor.
Mãe e filha alheias a tudo mais que não seja a natureza, se surpreendem quando alguém chama por Catarina, que além de distraída é míope e somente quando aproximou- se ao portão da casa reconheceu Leniria, que todos carinhosamente chamam de Leninha, sua prima que se mudara para o bairro há algumas semanas. As duas mulheres se encontraram no dia da mudança, pois solícita Catarina ajudou a prima a organizar as coisas e ainda fez um jantar para receber a família na vizinhança.
A prima já havia dito a Catarina que é médium vidente. Recebe mensagens psicografadas dos espíritos desencarnados. Explicou que muitos falecidos querem fazer contato com a família para aliviar o sofrimento, outros desejam passar ensinamentos preciosos que vão ajudar na evolução de outros espíritos ainda encarnados. O interesse de Catarina se aviva. Ela não compreende bem os termos que a prima usa, fica bastante interessada no assunto embora não acredite em reencarnação.
Leninha viera especialmente para trazer alguns livros que ajudarão Catarina compreender a doutrina espírita.
- Catarina! - disse a mulher bastante eufórica: - Eu trouxe além da doutrina, alguns romances maravilhosos que ajudam as pessoas compreenderem melhor o processo da vivência terrena. E são um beneplácito para as pessoas aceitarem com mais paciência e dignidade os sofrimentos pelos quais muitos passam sem compreenderem a razão sobrenatural e o carma que carregam. Os livros ajudam principalmente enxergar a morte como causa natural e certa e que a vida não termina com ela, mas continua em outras encarnações.
Enquanto Leninha explicava seu ponto de vista, percebeu o efeito de suas palavras em Catarina que demonstrou demasiado interesse pelo assunto.
Depois de um café com pão de queijo, Catarina se despede de Leninha. Dá um banho e alimenta a esperta Agnes que após ter gasto tanta energia no dia, logo está dormindo tranquilamente. A jovem mulher com avidez se entrega à leitura do romance ‘ O Amor Venceu’, extasiada não consegue largar o livro tamanho o envolvimento com personagens, a história e o ensinamento. Jamais se esquecerá do homem enterrado na areia, representando que o tempo pode significar muito dependendo do estado que a pessoa se encontra.
Assim a semana voou. Sexta feira é o dia que o marido retorna, e ao chegar notou que Catarina estava diferente, mais introspectiva. Ela comentou que estava lendo outro romance espírita muito interessante chamado ‘ O Judeu’.
Como de costume Miguel foi recebido com carinho, e ele sentia - se menos cansado e bastante feliz. Poderia se dizer que formavam uma família perfeita. Estavam planejando inclusive aumenta-la, agora que Agnes já estava mais crescida um bebê na casa só poderia significar mais alegria para os três.
Depois do jantar foram para o alpendre da casa. O jovem casal conversava tranquilamente, isso por volta das vinte e uma horas e Agnes, a doce menina, já dormia o sono dos inocentes.
O jovem casal conversava animadamente e trocavam carinhos quando Leninha parou no portão e cumprimentou o casal. Sorrindo explicou que retornava de uma Reunião. Entabulam um agradável bate papo no alpendre da casa. Catarina comenta com a prima sobre os livros que lhe foram emprestados e o quanto lhes tem feito de bem. Explica que intercala a leitura dos romances com a leitura do evangelho e livros de doutrina. Enquanto Miguel entra para pegar alguns pães de mel, a mulher sente liberdade para desabafar com Leninha sobre os pesadelos que a atormentam. Conta o fato estranho de sonhar sempre com as mesmas pessoas e lugares desconhecidos na realidade, mas presenças frequentes no sono de todas as noites. Depois de relatar todos os outros acontecimentos que ocorriam durante a noite, pediu a opinião da prima. Daí nasceu o convite para que Catarina fosse conhecer a Casa e participar da reunião de doutrinação.
Ao ouvir a história da prima, inclusive os episódios da época de criança, Leninha concluiu que Catarina certamente era médium, e nas Reuniões poderia desenvolver a habilidade ainda oculta e consequentemente levar a luz do entendimento à outras pessoas. O convite foi aceito e a próxima reunião seria na segunda feira.
Miguel viajaria para a capital, ficando longe de casa por alguns dias. Catarina iniciara a sua missão na Casa por influência de Leninha e já participara de algumas sessões e à noite será sua primeira atuação como médium que receberá espíritos ou então poderá ser como a prima que psicografa. Isso será revelado na reunião, onde as pessoas que frequentam, por sinal em número bem restrito, precisam jejuar, é essencial se abster de carnes, da ansiedade, praticar a caridade, só assim estarão preparados para o contato com o além.
Durante os trabalhos, Catarina ficou em êxtase, perdeu a fala, faltou- lhe o ar. O dom que descobriu possuir foi bastante doloroso. Estavam todos concentrados, alguns médiuns psicografavam enquanto outros com a voz modificada revelavam nomes de pessoas que se encontravam ali presentes. Os espíritos falavam através dos médiuns sobre a vida após a morte, uns diziam que estavam bem na outra dimensão, outros se diziam tristes pelo comportamento de algum parente. Outros espíritos se apresentavam desejosos de secar as lágrimas dos pais e falavam do quanto o lugar onde estavam depois de mortos era aprazível e que eram felizes apesar da saudade dos entes queridos. A reunião transcorria cheia de mensagens transmitidas através daqueles que possuíam mediunidade e assim outras dimensões foram tornando- se acessíveis para consulta e esclarecimentos.
Catarina, porém, via! E não sabia como proceder, ou o que dizer para aquela visão tão aterradora, tão dolorosa, horrivelmente deprimente. A mulher lhe estendia a mão descarnada e mais que um pedido de socorro, lhe exigia uma solução e com gritos estridentes lhe dizia:
- Você disse que é médium, Catarina! Agora, tem que me ajudar. E apontava para o próprio ventre todo aberto e apodrecido, carcomido pelos vermes. Aquele espectro ou espírito gemia. A mulher cuja face estava totalmente deformada chorava copiosamente. Maldizia a morte, queria de qualquer maneira voltar à vida. Não aceitava bela que fora, estar assim putrefata. E continuava berrando:
- “Olhe para mim! Eu sou linda, não mereço isso! Você não quer me ajudar? Prometa que vai me ajudar! Não me despreze! Fale comigo! Fale comigo, eu imploro!”
E chegou tão próxima de Catarina que ela teve a sensação de sentir o hálito podre vindo daquela funesta visão.
Somente Catarina presenciava a horripilante cena, as outras pessoas ali presentes estavam alheias a angústia que tomava conta da viva e da morta.
O espectro que um dia fora uma mulher, arrancava os poucos fios louros da cabeça, cujo crâneo reluzente tomava quase a totalidade de onde vasta cabeleira antes o ornava.
Pedro, um experiente médium ao ver a fisionomia aterrorizada de Catarina, teve a certeza de que algo muito estranho estava ocorrendo. A jovem estava em transe. Ele saiu de onde se encontrava e cautelosamente se aproximou de Catarina. Discretamente chamou por ela, uma, duas, três vezes. A sua atitude, porém fora inútil, sendo preciso tocar em seus ombros com ambas as mãos para tentar traze- la de volta à realidade, porque o arrebatamento dos sentidos foi total, ocorrendo de forma bastante complexa. Embora fosse um espiritualista convicto e estudioso de todos os fatos que envolviam o pós-morte, Pedro se assustou com a reação de Catarina diante de algo que ele não via, ou ouvia, mesmo sendo esse o seu principal dom.
Quando o médium balançou bruscamente o corpo de Catarina, dizendo seu nome pela quinta vez, que só então a mulher saiu do transe, murmurou palavras desconexas e desmaiou.
Leninha percebeu que algo estava errado e correu para junto de Pedro. Para não provocar alarde, com discrição, a levaram para a salinha ao lado, onde a jovem despertou sem entender o que havia acontecido.
Catarina ficou na companhia de duas colegas, aguardando o término da sessão. Assim que a Casa ficou somente com seus membros dirigentes, todos se reuniram à sua volta, em círculo, e fizeram uma prece impondo as mãos sobre ela. Pedro finalizou oferecendo- lhe a água fluidificada para beber. Todos lhe garantiram que ficaria bem.
Enfim Catarina descobrira a capacidade especial inata que possuía. Fora lhe concedido o dom de ver e dialogar com espíritos desencarnados que ainda não sabem que estão mortos, ou que não aceitaram a morte.
Pedro, antigo estudante do tema, lhe revelou que esse tipo de mediunidade é raríssimo. Poucas pessoas no mundo espiritualista o possuem e é preciso ter um espírito forte, entendimento e fé inabaláveis para exercê-lo com maestria. Do contrário as consequências podem ser terríveis, podendo levar o vidente à loucura.
Muitos médiuns à semelhança de Catarina sucumbiram á força desta missão, justamente porque tornou- se um fardo demasiadamente pesado, haja vista que convivemos com espíritos errantes, chamados também de almas penadas, mas esse convívio torna-se discreto porque nossos olhos humanos e espirituais estão fechados para essas visões, porém... os olhos de Catarina naquela noite se abriram definitivamente e não mais se fecharão para ver os espíritos perdidos e ouvir suas lamentações.
Leninha, Pedro e a esposa acompanharam Catarina até sua residência, onde Emília, uma mulher beirando os sessenta anos, baixa, de cabelos grisalhos e amáveis olhos azuis, calma e alegre, a vizinha que se tornara sua grande amiga, estava a sua espera. Emília que cuidava de Agnes na sua ausência.
Os amigos ficaram quase uma hora fazendo companhia para Catarina, e só se foram quando a mesma afirmou que estava bem. A filhinha dormia tranquilamente, um cheirinho gostoso de infância rescendia no local que exalava ainda uma atmosfera de paz.
Catarina, porém, não conseguia pregar os olhos. Não queria ficar no escuro, pois sentia- se incomodada, a sensação de que alguém a estava observando era nítida, perceptível e principalmente incômoda.
Passava da meia noite quando cochilou sentada na cama, com a cabeça apoiada no travesseiro, as pernas cruzadas sobre o colchão. O livro que estava lendo despencou no assoalho de madeira, dando- lhe um susto por causa do barulho que sucedeu a queda. Então ela ouviu um choro, o mesmo pranto doloroso e reconheceu a voz que fez eriçar os cabelos de sua nuca. O corpo todo ficou gelado. A mulher com as entranhas expostas estava ali, bem na sua frente, se lamuriando. Era como se ela estivesse assistindo um filme de terror... A mulher estava como que colada na parede e se movimentava nela, para lá, e para cá, arrancando os próprios fios de cabelo, como alguém desesperado que procura uma explicação para seu infortúnio, explicação essa que jamais virá.
A mulher gritava:
- Você me prometeu ajuda! Você tem que me ajudar! Olhe que horrível! Sou tão bonita... Olhe para os vermes que estão me devorando. Faça- os parar! Quero voltar! Então ela parou de gritar e com olhar de ódio mortal, fixo em Catarina, falou com firmeza:
- Eu Preciso me vingar! Isso não pode ficar assim...
Catarina permanecia muda, sem qualquer reação. Buscava orações em sua memória, mas seu cérebro era pura letargia. Não conseguia ao menos balbuciar um Pai Nosso.
A cena foi ficando mais horrorosa, pois a mulher arrancava os próprios cabelos com fúria louca. De repente a morta passou do histerismo para a violência.
- VOCÊ! Você vai me pagar. E com o dedo em riste, apontava para Catarina. A boca escancarada na caveira espumava, enquanto se dirigia para a pobre mulher, quase morta de medo.
- Você disse que era médium, que me ajudaria! Blá, blá, blá.... Você vai me pagar! Você é mentirosa! Também me enganou como todos sempre me engaram! Eu odeio você! Tenho ódio, ódio...
Então ela desapareceu. Ato contínuo Catarina ouve o choro de Agnes. As pernas estão geladas, amortecidas. Ela queria se levantar e não podia. O quarto estava cheirando a carniça. Não sentia as próprias pernas, mas a preocupação com a filha fez com que ela se jogasse no chão e seguisse se arrastando até o quarto da menina.
A janela estava aberta, fazia muito calor. O luar projetava seus raios. A lua cheia iluminava despudoradamente os vivos e também os mortos. A mulher com as entranhas expostas estava do lado do berço de Agnes que dormia um sono agitado, como se estivesse presa no pesadelo mais aterrador. E a visão olhou para Catarina e havia lágrimas e ódio em seus olhos opacos, totalmente sem vida.
Amor de mãe é sublime, e a médium conseguira ficar de pé e estava apoiada no batente da porta do quarto, recuperando suas forças para chegar até onde estava a filha. Precisava arrancar a menina de dentro do bercinho. Esse era o único pensamento que tinha em mente: - ‘ Tirar Agnes do berço e fugir para longe dali’.
Tentou gritar por socorro, mas com angústia percebeu que a sua voz não saia... Nem ao menos balbuciar o nome da filha conseguia.
Catarina percebeu tarde demais que nem todos estão preparados para exercer os dons que lhe são confiados.
Justamente quando a aturdida mulher estava prestes a tocar as grades do berço, sentiu uma vertigem, pois números incontáveis de vozes, em um uníssono, foram tomando conta do lugar deixando-a atordoada.
A cena mais inacreditável se formou à sua frente. A mulher cujos vermes a devoravam, continuava em pé olhando para Agnes no lado direito do berço... Enquanto nos pés do berço um homem com aspecto de índio velho com um cocar na cabeça, os cabelos totalmente brancos e longos, também olhava para a menina que dormia presa no pesadelo. Ele entoava uma canção fantasmagórica enquanto balançava um chocalho indígena.
Outra mulher usando um hábito de freira, com a cabeça coberta vinha se arrastando pela parede e parou no lado esquerdo do bercinho. A visão dizia aos prantos que precisava de ajuda, pois agiu contra o próprio destino que lhe reservara a maternidade e ela erroneamente escolheu o celibato, e tal atitude fez sua alma perder- se no limbo e agora vagava sem rumo, via a luz mas não a alcançava. Era preciso que Catarina mostrasse o caminho. E ela repetia baixinho com voz melodiosa: - Catarina... Catarina... Catarina...
Já a ponto de desfalecer, quase sem forças, pois aquelas visões lhe sugavam a energia, tentava desesperadamente conseguir chegar até a criança, que estava ao mesmo tempo tão próxima e tão distante...
De repente Catarina ouve um grito horrível seguido de um engasgo e ânsia de vômito. Com os olhos embaçados pelas lágrimas ela então viu quem estava assim tão mal. Um rapaz bem jovem, moreno, cabelos pretos e lisos, estatura mediana, magro, olhou para ela e estendeu a mão:
- Me ajude! Me ajude! Meus pais... a polícia ... Eles precisam saber que meu melhor amigo me traiu. Eu não sou suicida! Minha mãe não para de chorar... Ela tem que saber... Meu amigo inseparável, ele envenenou minha bebida. Não percebi o ódio, a inveja... Foi ele! Foi ele! Ahhhhhhhhhh! Dói muito... Ai meu estômago! Que dor! E ele expeliu a golfada esverdeada de vômito sobre o berço de Agnes, que despertou, chorava e chamava pela mãe: - Mamãe, mamãe... Medo! Medo! Mamãezinha...
E Outros espectros foram aparecendo, sucessivamente, tomando conta do lugar! O infortúnio de alguns retratados como em cenas teatrais. Catarina via a enfermeira que antes de cometer o suicídio injetou veneno no soro matando o namorado infiel que ela manteve em cativeiro vários dias e que se levantava da cama carregando o frasco de soro e pedia socorro para a médium, pois também estava perdido. Catarina viu o velho pedófilo cujos genitais ardiam em brasa, enquanto ele se debatia e gritava: - Sou culpado! Sou culpado!
Estavam perdidos, sugavam a energia de Catarina, e não percebiam que a levavam ao desespero quando exigiam sua ajuda.
A médium sem perceber abrira um portal que não conseguia fechar, nem tampouco tinha condições de dar uma palavra que fosse de conforto para todos aqueles espíritos atormentados, pobres almas penadas, enlouquecidas na prisão da morte.
A madrugada pareceu- lhe tornar- se eterna, mas o choro incontido da filha gritando desesperadamente por ela devolveu-lhe o ânimo e a coragem.
O dia amanheceu com o sol irradiando luz e calor sobre o jardim de Catarina.
Miguel retornou cansado da viagem. Não via a hora de reencontrar a esposa e a filha. Abriu o portão eletrônico, guardou o carro. Pegou a mala, o livro e a caixa de bombons. Sempre trazia um presente para as duas únicas mulheres da sua vida. Alguma coisa, porém estava errada na residência. A sua alma, o seu espírito pressentiu. Assim que a chave girou na fechadura da porta da sala ele sentiu o odor que não era o do seu lar. O cheiro nauseabundo de coisa muito antiga, de flores murchas, de substâncias desconhecidas invadia o ambiente. Um cheiro incômodo que Miguel jamais sentira.
A casa parecia fria e deserta, não havia sinal de Catarina ou de Agnes. O normal seria encontra- las bem cedo na cozinha. A pequena esperando pela mamadeira de achocolatado que ela adorava, e Catarina aguardando o marido para juntos tomarem o café.
O homem seguiu pela sala, e adentrou no corredor que levava para os quartos. Andava com cautela para não acordar mãe e filha, afinal só poderiam estar ainda dormindo.
A porta do quarto do casal estava aberta. O livro jogado no chão. A lâmpada continuava ligada sem necessidade, pois a luz do sol que adentrava a janela invadia todo o lugar. Ele se dirigiu então para o quarto da filhinha e ficou tremendamente chocado com a cena a qual se deparou: Paralisado tentava entender o que acontecera ali.
Havia intensa quantidade de cinzas espalhada pelo chão e dezenas de marcas de pés: descalços, calçados, grandes e pequenos; nas paredes do quarto havia nomes de pessoas grafados com carvão e as letras SOS aparecia junto de cada um deles.
Os brinquedos de Agnes estavam espalhados, alguns estraçalhados.
Ele murmurou o nome de ambas enquanto se aproxima delas. Deixou os presentes caírem no chão, totalmente sem ação. Estacou mudo diante da cena que parecia totalmente surreal, mas não uma cena retratada por Dali, muito pior, Miguel era o retrato da angústia, naquele momento ele era o próprio personagem de Munch na tela O Grito.
Catarina se mantinha de olhos fechados, ignorando por completo a presença do marido, que estarrecido viu a esposa abraçada com a filha totalmente imóvel em seus braços.
Catarina balançava a criança, incessantemente como se embalasse um bebê, ou a estivesse ninando.
A menina parecia estar dormindo, ou não, ambas encolhidas dentro do berço. Catarina repetia sem parar, totalmente fora de si:
- Não toquem na minha Agnes! Por Deus, deixem minha filha em paz! O Portal! Minha filha não pode atravessar o Portal! Não sou médium, não sou nada, não sou médium, não sou nada... Por favor, me deixem em paz! Não sou médium, não sou nada, me deixem em paz! Esta casa... Agnes... O Portal ...
Em seguida após pronunciar estas palavras dentre outras frases desconexas, Catarina, com a filha inerte em seus braços, com voz débil e quase inaudível disse pausadamente: “Similia similibus curato”; parecia que sua alma havia dissociado da matéria e entrou em estado catatônico. E assim permaneceu em meio ao vazio.