Inconsciente
Obs: Os diálogos secos foram propositais.
Olívio acordou de madrugada ouvindo um uivo alto, estridente, como um lobo ou algo maior. Olhou para os arranhões nos braços que mais pareciam valas por onde escorria um líquido amarelecido. Gemeu, pois todo seu corpo era escoriações, dores e pustulência. Novamente ouviu o uivo mais perto e forte, quis gritar impotente, mas se engasgou com o próprio sangue na boca dos ferimentos recém adquiridos. No entorno nenhuma viv’alma para lhe prestar auxílio. Pensou em chamar a irmã, mas imaginou que ela estivesse dormindo àquelas horas.
Percebeu então que o que ouvia não eram uivos e sim guinchos de porco. Com muito esforço se pôs em pé, arrastando-se até a janela de onde escutou:
- Jingle Bells! Jingle bells...
Seu afeminado vizinho, vestindo uma cueca branca, corria de lá para cá na área de serviço com um machado em riste perseguindo um leitãozinho que derrapava no sangue e na neve.
- Irrioka! – xingou sem poder mexer direito os lábios devido ao inchaço e lesões.
Andou lentamente até o banheiro e quase toda a sanidade se esvaiu ao observar o reflexo. Estava em petição de miséria: a cabeça machucada também minava líquidos, os olhos tinham manchas roxas de baques, o nariz se mostrava o dobro do tamanho, os lábios fendidos e vermelhos e um arranhão profundo na maçã esquerda do rosto deixavam dúvidas se poderia tomar água sem que ela escorresse bochecha afora.
Urinou e se assustou com seu grunhido, pois ele sim parecia uivar como um lobo ante a dor. Os jatos quentes tinham rajas de sangue. Não suportava mais o peso do seu corpo, e com vertigens tomou três relaxantes musculares voltando para cama apoiando-se nas paredes.
- Hoje a noite é bela... Ui, ui, ui! Pernil com frutas! Pernil com frutas!
Balançou a cabeça reprovando os gritos de júbilo que vinham da casa ao lado. O vizinho havia se mudado há duas semanas, ele não foi com sua cara, odiava homossexuais e não conseguia esconder aquilo. O outro era exageradamente alegre, sempre nas janelas com aquele riso largo no rosto, sempre presente observando-o, impertinente, sempre... lá.
Olívio puxou as cobertas arrependendo-se em seguida devido a elas incomodarem mais as feridas. Gemeu e gemeu até ser vencido pelos efeitos das pílulas e dormiu.
******
- Oooh! Tanta raiva assim do cara! Isso é desejo contido.
-Hahá! Conta outra! Não vem com essas teorias de mesa de bar não.
- Diz aí? Ele ainda implica lá com a tua irmã?
- Vixe! Minha irmã morre de medo dele, diz que o cara tem um “Q” de psicopata. Tudo por que o fresco olhou demais pro namorado dela.
- Nada! Ele vê a mina como entrave de chegar até você. Passional! Hahahah!
- Ta me tirando, mano? Já deu! Já deu!
- É... já deu mesmo! Vamos comer pessoal, a subida do morro não é fácil.
- Hummm... Cara! Tu devia ser mulher...
- Quê isso Brou? Cê também com viadagem?
- Não, pow! Tu cozinha muiiito!
- Ah! É a fome.
- Hey! Olhem aquilo.
- O quê? O que?
- Um lobo... Grande... Deve ter vindo por causa do cheio da comida. Diz aí, lobos se ligam em omelete?
*****
Ding- dong! Ding- Dong!
A campainha o acordou, apurou os ouvidos e pôde escutar a voz irritante do vizinho surgir do andar inferior.
- Yuhu! Vizinhooo! Merry Christmas! Merry, Merry, Merry Christmas!
Permaneceu imóvel e não percebeu que mordia o lábio inferior. Depois pedrinhas de seixo ricochetearam na vidraça do quarto onde estava. Sentiu ódio e desejou poder ferir aquele homem que lhe roubava a paz. Demorou mais um tempo e então veio o silêncio. Sentou na cama e tentou se lembrar de tudo. O sonho era real e eram também suas últimas recordações.
Pensou. Pensou... E quando quis se levantar para pedir ajuda da irmã, começou a rever o que ocorrera como se a mente fosse escancarada. Até as vozes eram ouvidas.
*****
Estava junto dos amigos e todos riam seguindo uma trilha, mas não perdiam de vista o grande lobo que os observava em uma elevação próxima, caminhando de lá para cá na espreita. Nathanael era o mais desligado dos três e nunca usava os equipamentos corretos para montanhismo, assim que eles começaram a escalada Olívio e Mário ligaram as câmeras de suas máquinas fotográficas e seguiram morro acima fazendo sempre piadas com o lobo que passara a ficar embaixo deles.
- Hey! Ele ta te marcando mais do que teu vizinho “biba”.
- Olívio? Tu não tem nem curiosidade, mano?
- Mário! Tu ta me estranhando mesmo cara? Isola! Já disse!
Os risos eram constantes. A escalada não foi difícil nem fácil, e assim que Nathanael conseguiu concluí-la, seu sapato vagabundo descolou e Olívio veio dar a mão para que ele não se estabacasse de lá de cima, entretanto, para azar do amigo, foi ele quem acabou rolando morro abaixo.
*********
O som do telefone retirou-o de suas lembranças, e ainda que o corpo estivesse amortecido, sabia que as dores voltariam a qualquer momento.
- Olívio Dutra?
- Uhum.
- Ahhhh! Sou eu, o seu vizinho - Olívio abafou o fone com as mãos e praguejou sentindo as cascas das feridas nos lábios se rasgarem – Peguei uma correspondência sua quando passei aí agora pouco. Tá escondido como uma ostra, hein? Hihihi! Cacei teu número na lista telefônica. Está tudo bem com você?
Olívio detestava imaginar o outro, os trejeitos, a generosidade... Quis mandá-lo para bem longe, mas se conteve e antes de responder o vizinho voltou a falar com sua voz de taquara.
- Venha cear comigo hoje, é natal! Matei um leitão cedinho, ele já está assando na fornalha, sim eu tenho uma, hihihi! Venha! Vai ser "súper"!
- Eu...
- Ahhhh! Eu vou ter que implorar? Ficarei aqui até a meia- noite. Sei que você está sozinho. Te esperoooo!
Bateu o telefone e as dores de cabeça voltaram a sinalizar. Queria falar com seus amigos, mas não conseguia lembrar o número de ninguém. Pegou a mochila e vasculhou em busca do celular, achou a máquina fotográfica de Mário e um sorriso se estampou. Sentou em uma poltrona e começou a ver as imagens: fotos, brincadeiras, o grande lobo os observando... Foi nos vídeos e ligou o play, viu até a parte que caía morro abaixo onde o vídeo era interrompido.
Olhou mais umas vezes os ferimentos e pensou na grande queda, viu as pústulas e ficou imaginando a sujeira no solo, galhos e pedras o arranhando. Queria que a irmã estivesse ali para lhe passar iodo. Tentou imaginar se ela estava bem, pois já era quase à hora do almoço e nem sinal de suas músicas irritantes e bater de portas pela casa. As malditas dores novamente o dominaram impelindo-o em fazer descer mais comprimidos goela abaixo.
*****
Olívio despertou projetando golfadas de vômito, o cheiro que vinha da casa ao lado aumentava a ânsia. Passou um tempo sentindo que virava do avesso com a face para fora da cama e depois voltou a deitar a cabeça no travesseiro. Lembrou dos sonhos, mas achou tudo ridículo. O grande lobo não estava mais ali quando chegou ao fim da sua queda e além do mais, a câmera estava com ele o tempo todo, teria captado algo tão insólito quanto o que vira enquanto dormia.
Levantou se sentindo melhor e olhou a foto dele junto à irmã. Passou o dedo no cordão com pingente de estrela que ela usava. Viu a rua que, na verdade, se perdia na noite alva e gélida de neve. O pisca - pisca do vizinho luzia seu rosto e o cheiro de carne assada, nauseante, conseguia chegar até suas narinas mesmo com todas as janelas fechadas.
Aos poucos uma ideia lhe ocorreu e foi ficando mais forte.
"Diz aí? Ele ainda implica lá com a tua irmã?"
"Vixe! Minha irmã morre de medo dele, diz que o cara tem um “Q” de psicopata [...] "
"Ele vê a mina como entrave [...] Passional! Hahahah!"
Olívio balançava a cabeça tentando não pensar na maluquice que insistia em inundar sua mente, andava pela casa coxeando e chamando o nome da irmã, observando a bagunça nos cômodos. Parecia que um furacão havia passado por ali.
As palavras do vizinho martelavam enquanto o desespero aumentava.
"Venha cear comigo hoje, é natal! Matei um leitão cedinho, ele já está assando na fornalha, sim eu tenho uma, hihihi! [...] Sei que você está sozinho. Te esperoooo!"
-Não! Não! Não! – Dizia para si mesmo. Pensava no misterioso desaparecimento da irmã e não se lembrava de ter falado com ela assim que voltou do passeio com os amigos.
Quando retornara? Por quanto tempo havia dormido?
Imaginava o vizinho esquartejando a irmã e queimando-a na fornalha durante o tempo que esteve fora. Quando ambos brigaram ele não mediu palavras dizendo que queria tirar sangue dela. Agora era Olívio quem gostaria de matá-lo caso tivesse feito algo a ela.
Saiu na noite sentindo o frio, e no entanto, a febre o fazia arder por fora. Bateu com toda força na porta da casa ao lado e esperou. A lua ressurgiu detrás de uma nuvem e Olívio se sentiu mais estranho do que já estava.
- Opa! Já vou indoooo! – Ouviu a voz ecoando lá dentro. Como era possível se a grossa porta estava fechada?
Os passos se aproximavam e o peito disparava ante as convulsões. Estaria assim tão febril a este ponto? A pele coçava e o mau cheiro de pelo molhado aumentavam como se brotasse de si. Buscou ao redor se algum cão estaria perto, mas nada. A visão começou a falhar: era cinza, era claro, turvo e multicor.
- Ai meu Deus! Ai meu Deus! Ele veio! Cadê essa maldita chave? Puf! Puf! – Ouvia claro como se o outro estivesse ali prostrado.
Sentiu estalos dentro de si tais quais bambus vergados e contidos querendo voltar a ficar eretos. O odor se tornou mais intenso, a garganta se fechou dobrando de tamanho e ele grunhiu alto passando as unhas nos umbrais da porta. Dentro de si o mesmo arranhar de garras lhes feriam. Via a lua de soslaio como se o brilho fosse a ignição necessária para fazer irromper o que a mente humana não podia conceber.
- Ah! Fabuloso! Eu...
A neve recebeu somente respingos de sangue, pois a bocarra bestial não deixou que nada se perdesse do homem que nem ao menos gritou diante do monstro lupino. Ossos, carnes e vísceras quentes adentraram com sofreguidão pela glote do ser que emitia esturros diversos. Enquanto todos degustavam suas ceias natalinas, o amontoado de músculos e pelos curvado sobre seu próprio peso farejava e lambia da porta e da neve os últimos resquícios da vítima, sobejando e piscando com seus olhos flamejantes o prazer do alimento quente. Um uivo agourento irrompeu assustando os moradores e pegadas com garras tão grandes quanto punhais aos poucos foram sendo apagadas sob flocos de neve incessantes.
Nos restos de vômito deixado no quarto de Olívio, um pingente de estrela brilhava solitário na noite.
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Epilogo
- Cara, vê esse vídeo!
- Que é? O que é? Mulher pelada?
- Não. É uma câmera que meu pai achou próximo da trilha. Os caras estão andando e de repente o que filma cai. Depois aparece um bicho, tem uns gritos escrotos. Mas tu precisa ver o final.
- Como assim?
- No final os manos voltam pra ajudar o outro e... Cara! Só tu vendo! Só tu vendo.
- Perai! Perai! De quem é esse trem?
- Ah! Eles chamam ele de Olívio.