O Colecionador

(Miliany Pellegrini)

 
 
Edgar Martins era o caçula da família e sacrificou parte da juventude cuidando de seu pai que definhou até falecer. Tinha a paciência e a calma que seus outros três irmãos não tinham. Essa fase o aproximou do pai e ele tomou gosto pela coisa, afinal levava jeito. Formou em enfermagem mas quis ser cuidador de idosos.
 
Talvez por empatia ou porque lembrou seu pai, foi trabalhar pra seu Alberto Magalhães que tinha mal de Alzheimer e definhava até o inevitável.
 
***
 
Depois de dar a medicação de seu Alberto, Edgar abriu as cortinas, o sol banhou o quarto e o velhinho na cadeira de rodas sorriu.
 
- O senhor sabe que ontem quase fui pego pelos guardas da ditadura?
 
- Sério? Conte-me sobre essa sua aventura enquanto toma seu café da manhã.
 
Edgar sorriu e empurrou a cadeira de rodas até a mesa de centro do quarto, na qual um delicioso café da manhã aguardava pra ser devorado.
 
O cuidador ajudou seu Alberto a comer e ouviu, pacientemente, a história da ditadura, que lhe era contada todos os dias pela manhã. Encerrada a refeição e a história, Edgar o levou até a praça, onde crianças brincavam, pessoas passeavam com seus cachorros, outras iam apressadas pro trabalho. Observar tudo isso era o que deixava seu Alberto feliz. Ficavam por lá, até a hora do almoço, quando retornavam. À tarde o idoso tirava seu habitual cochilo, enquanto Edgar preenchia um relatório sobre o estado da doença. Depois do descanso, a leitura era rotina, o cuidador passava um tempão lendo pra ele, que apreciava as aventuras contadas nos livros. Antes do jantar, ele era banhado e após, o expediente de Edgar estava encerrado.
 
Chegava em casa, tomava banho, jantava, assistia algum filme do telecine e dormia por volta das vinte duas horas e trinta minutos.
 
Como consegue aguentar uma rotina tão patética feita a sua - Edgar perguntou pro quarto vazio. - eu faço da sua vida algo mais divertido e você nem sabe. Trouxa. - completou.
 
Levantou da cama, se trocou e saiu. Andou vários quarteirões até chegar numa ruela sem saída, onde tinham diversos terrenos vazios e as casas que resistiam ao tempo estavam desocupadas. O único imóvel, de fato, em uso era um pequeno galpão, no fim da rua. Edgar entrou no imóvel, olhou ao redor e constatou que tudo estava do jeito que deixara. Entrou na BMW e foi até uma boate não muito longe dali. Chegando lá, música alta, bebidas e o melhor, vítimas. Analisou minuciosamente cada pessoa com quem conversou, dançou e bebeu, escolhendo com cautela a mais apropriada para seus atos sórdidos. Por fim, alguém lhe chamou a atenção, ele a levou pro camarote, onde conversou e embebedou a vítima.
 
Quando a mulher já não dizia coisa com coisa, ele, gentilmente, ofereceu uma carona e ela, sem noção nenhuma, aceitou. No carro, ele apagou a mulher. Manuela observava quando a bmw entrou no galpão.
 
- Mais uma maldito, o que é teu te aguarda. Amanhã não passa. - resmungou do alto do telhado.
 
Ele colocou a vítima na mesa, despiu, amarrou suas mãos, colocou seu macacão (aqueles de mecânico), luvas e  começou os trabalhos. Com o bisturi abriu o abdômen e a mulher acordou.
 
- O que tá acontecendo? O que você está fazendo? - perguntou, ainda sob os efeitos do álcool..
 
- Cala a boca e me deixa trabalhar. - deu-lhe um golpe na cabeça com um pé de cabra. O líquido rubro saiu do lugar da pancada, constatando sua morte.
 
Tirou, primeiramente, o fígado e colocou no vidro que ganhou um rótulo: "Nome: Luisa Queiroz, RG: 37.564.812-5", informações tiradas do documento que ele achou na bolsa dela.  Terminou a retirada de todos os órgãos e levou os vidros para a sala na parte de trás, guardando-os na prateleira das pessoas que começavam com a letra L. Pegou o corpo da mulher e o colocou na banheira de ácido, que o devorou. Olhou pra sua coleção, satisfeito, sentia um prazer imenso em fazer aquilo.
 
- Amanhã, tem mais. - disse despindo o macacão e as luvas.
 
Jogou uma água e tirou possíveis manchas de sangue dos braços, voltou pra casa, tomou banho, trocou de roupa e foi dormir. Antes de pegar no sono, deixou que o cuidador controlasse novamente. Edgar, o cuidador, viveu sua rotina diária e à noite, o psicopata entrou em ação. Dessa vez foi até um bar, queria um uísque e alguém pra acompanhá-lo. Não demorou muito para que Manuela, que o tinha seguido, chamasse sua atenção. Ela tinha traços parecidos de alguém que ele já matara, algo na memória lhe dizia isso. Mal sabia o que lhe esperava. Conversa vai, conversa vem, um uísque daqui e outro de lá e Manuela fingiu estar bêbada, do jeito que ele gostava. Mais fácil de manipular, era a explicação dele. Gentilmente, ele ofereceu a carona, que ela aceitou sem hesitação.
 
Mal saíram do lugar e ela caiu no suposto sono imposto pelo álcool.
 
- Maravilha, economizei clorofórmio com essa daí. - disse rindo, enquanto dirigia.
 
Dentro do galpão, como manda a rotina, colocou a moça na mesa, tirou suas roupas e amarrou suas mãos com as cintas de couro. Colocou seu vestuário e as luvas. Bisturi na mão e a diversão começou. Manuela, que estava bem acordada, manteve-se de olho fechado e quando o bisturi penetrou a carne, segurou a dor. Ele cortou e a abertura cicatrizou. Cortou mais uma vez e novamente cicatrizou. Franziu o cenho.
 
- O que diabos está acontecendo? Como isso é possível? O que é você? - estava supreso pela situação.
 
- Seu pior pesadelo. - ela respondeu e com a força, que sua natureza lhe confere, cujo combustível era o ódio, arrebentou as amarras.
 
Logo estava de pé, avançando na direção dele que tentava, em vão, acertá-la com o bisturi. Ela o empurrou com força contra a parede do galpão e pela primeira vez, o psicopata sentiu medo. Ele, que sempre fora o predador, agora era presa, mas como esse sentimento não lhe pertencia, ele foi pra escanteio e o cuidador, que imaginava estar dormindo, entrou em cena, contudo, o psicopata estava à espreita, observando, afinal imaginou que poderia se safar. Ela ergueu a mão para dar-lhe um golpe e ele gritou:
 
- Ei! Que que tá acontecendo?
 
- Como se você não soubesse, seu doente maldito. - ela esbravejou.
 
- Eu não sei. Do que você está falando? Onde eu estou? - olhou confuso ao redor.
 
- Que que é? Deu amnesia? Que tal olhar o bisturi na sua mão, não te lembra nada?
 
Ele olhou pro instrumento ensanguentado e largou horrorizado. Foi a vez dela de franzir o cenho, pelo batimento cardíaco, sabia que ele não estava mentindo. Algo lhe passou a mente e quis testar. Colocou Edgar numa cadeira e o amarrou. Vestiu-se rapidamente, foi até a sala na parte de trás e pegou o primeiro vidro que encontrou.
 
- O que você vai fazer? - ele perguntou com medo.
 
- Quero fazer um teste. - ela pegou um latão de tinta velho, colocou álcool e ateou o fogo.
 
- Olha moça deve ter tido algum engano aqui, eu só sou um cuidador. Não sei como… - e antes que ele pudesse terminar a sentença o psicopata voltou (chutando o cuidador pra escanteio), no mesmo instante que ela tacara um vidro com um pâncreas dentro do latão em chamas.
 
- Sua vadia eu vou acabar com você.
 
Ela percebeu a mudança na voz e no olhar, mais agressivos. O que ela pensara estava certo, o cara sofria de dupla personalidade.
 
- Como? Amarrado aí você não é de nada. - ela riu. - Eu vou matar você, mas antes vou te torturar.
 
Manuela pegou vidro por vidro e foi jogando no latão, enfurecendo cada vez mais Edgar, que tentava se livrar das amarras. Ela ria e se deliciava a cada vidro arremessado.
 
- Minha coleção não! Para com isso! Eu vou matar você!. - ele gritava alucinado.
 
Uma sequência de vidros, em particular, arrancou lágrimas da garota. Na etiqueta, o nome da sua irmã estava gravado.
 
- Olha aqui, seu merda. Isto, era da minha irmã que você matou sem hesitar.
 
Ele riu.
 
- Ela gritava tanto enquanto eu a cortava. Matei com o maior prazer e faria tudo de novo.
 
- Seu doente.
 
Os vidros foram todos pro latão. Por fim, foi até a bancada e pegou um facão.
 
- Antes de eu te matar, responda uma coisa. Por que você fez isso com todas essas pessoas inocentes?
 
- Prazer.
 
- Prazer? Você tem problema.
 
- Prazer em satisfazer esse ódio que me criou. Esse cuidador de merda, apanhava do pai sem motivos, era mal tratado e ainda assim reprimiu o ódio que sentia, os escrúpulos dele diziam que não era certo sentir ódio do próprio pai. Quanta estupidez. E quando esse velho caiu doente, lá foi o babaca cuidar dele. Perdeu anos da juventude cuidando desse cretino que não tinha outro fim senão a morte. Mas admito que ele é um disfarce perfeito, afinal quem vai desconfiar de um cuidador tão carismático?
 
- Chega! Não quero ouvir mais esse absurdo. - disse ao erguer o facão e ao descê-lo a cabeça de Edgar saiu quicando pelo galpão.
 
Ela jogou tudo o que era inflamável pelo galpão, abriu o isqueiro à fluido e deu uma última olhada.

- Ninguém precisa saber o que aconteceu aqui. O importante é que eu consegui minha vingança. - falou pra si, abrindo a porta.

Jogou o isqueiro em direção a bancada e as chamas lamberam famintas o pequeno galpão. Manuela podia transforma-se quando quisesse, algo incomum de sua espécie que dependia da lua cheia para tal. Transformou-se e saiu de lá. Afinal, quem desconfiaria que um lobo poderia causar um incêndio? (Essa parte Eduardo não sabia que acontecera)
 
***
 
Ele acordou assustado, depois que a mulher o tirara do transe, encerrando a sessão de regressão. Não lembrava de muita coisa, mas a sensação da lâmina no seu pescoço ficara. O que era a título de curiosidade sobre seus constantes sonhos em que perdia a cabeça, acabou por ser uma verdade assustadora de uma vida passada de EDuardo GARcia.

 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 12/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
Código do texto: T4879838
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