Henrique
(Maria Santino)
(Maria Santino)
Henrique corria próximo aos trilhos do trem sentindo o peito disparar, os cães raivosos seguiam em seu encalço e o menino de calças curtas alcançava o comboio, já em movimento, atirando-se de uma só vez. O policial estacava levando o apito metálico aos lábios e o menino ria alto ao ver o objeto quicar nas mãos do homem e cair dentro de uma vala. Depois respirava aliviado na certeza de que aquele alarme não soaria e ele poderia, enfim, examinar o conteúdo da bolsa que havia furtado.
Os grunhidos distantes dos cães confirmavam que o trem já estava “a todo vapor”, Henrique buscava sentar-se próximo de uma abertura para usar o luar e visualizar aquilo que retirava da bolsa:
Papéis, alguns cobres, cigarrilhas, uma pequena caixa metálica, mais papéis...
O menino com cicatriz recém adquirida no queixo e pele clara, suja de fuligem, atirava longe a maioria dos objetos se sentindo frustrado em não encontrar nada de valor. Sua barriga reclamava e ele esbravejava alto:
- Droga de vida! Mas não volto pra lá. Não volto!
Segurando a caixinha ele deslizou com as costas na parede do vagão e fechou os olhos tentando cochilar antes do trem chegar ao seu destino (desconhecido para ele). Por breves momentos ouviu vários clicks soando dentro daquele objeto, mas não deu muita importância e dormiu.
Era uma jovem mulher que trajava um vestido roxo e chapéu de lapela negro assim como as luvas. A bolsa se mantinha firme nas mãos enquanto os olhos detinham-se no trem que apitava prestes a chegar na estação. O menino esgueirou-se nas sombras e puxou a bolsa bruscamente. A mulher se esquivou e ele caiu machucando o queixo no chão, porém, quando um oficial se aproximou de ambos, a bolsa estranhamente foi entregue e o pequeno ladrão que partiu em disparada enquanto a mulher gritava e apontava.
- Ladrão! Ladrão! Atrás dele! Atrás dele!
Henrique acordou assustado, ouvia os latidos dos cães ecoando e ficou feliz de tudo ser apenas um sonho. Olhou a caixa em suas mãos e franziu o cenho ao ouvir aqueles barulhos, agitou-o próximo ao ouvido atirando-o no chão após uma lâmina machucar seu dedo.
A caixinha caiu desdobrando-se e ganhando uma nova forma. Houve uma pirueta, uma luz azul fluorescente, engrenagens que romperam de lá para cá e em pouco tempo o objeto se tornava algo circular como um relógio, porém, sem ponteiros. A luzinha azul traspassava um buraquinho bem no centro. Henrique estudou aquilo mais de perto projetando a luz na parede e ouvindo curiosos tic- tacs.
Novamente o estômago reclamou mostrando maior revolta, o garoto passou a mão sobre a barriga lembrando-se do café amargo e pão seco do orfanato de onde escapara há dois dias.
- Não volto! Não.
A voz já não tinha a mesma convicção de antes, mas ele buscava distrair-se para esquecer a fome. O “relógio” foi colocado em um dos bolsos não furados de sua calça e ele se lançou para cima, galgando os degraus de ferro da parte externa da máquina a vapor que corria veloz sobre os trilhos.
Do alto o menino via as copas dos pinheiros, fazendas e lagos que refletiam a luz da lua tão escondida sob os vapores que escapavam das chaminés nas cidades. Ele se sentou não temendo nem a altura nem a velocidade e abriu os braços como um albatroz livre. Lembrava das paredes enegrecidas do orfanato, da frialdade da clausura e do quanto sofrera naquele lugar.
Em pouco tempo o apito da locomotiva soou e Henrique se apressou em descer antes que o trem parasse na estação. Verificou o “relógio” no bolso e estranhou a coloração vermelha da luz. Saltou correndo novamente por entre os trilhos e partiu apressado como um rato na ruas escuras daquela cidade. Na estação, duas figuras não perderam de vista o pequeno passageiro e seguiram sorrateiros atrás dele.
Henrique caminhou devagar quando se sentiu seguro, e ao ler o letreiro estampado em uma construção qualquer, soube que pisava no chão de Londres. O céu escondido dentre fumaças diversas não deixava que ele se maravilhasse com os imensos edifícios espalhados, mas enquanto erguia a vista, a passagem de um vulto correndo de lá para cá o assustou impelindo-o em apressar o passo. Mais uma vez o vulto cruzou os telhados de uma construção e outra, e logo um assovio fez o peito de Henrique bater tão veloz quanto os sons, agora descompassados, do objeto que trazia no bolso.
Um beco escuro e sem saída foi o seu reduto e a projeção de dois seres cantando e dançando vindo em sua direção, fê-lo tremer acuado.
- Ora, ora. Se não é o pequeno ladrãozinho! – A voz feminina deixava dúvidas se era amistosa ou não.
- Tic- Tac. Tic- Tac. O tempo está passando... – Um homem falava saltitando e batendo os calcanhares vez por outra.
O menino engoliu seco sentindo o objeto esquentar em seu bolso. O céu precipitou uma fina chuva sobre os três fazendo a mulher abrir uma curiosa sombrinha com luzinhas brancas em cada ponta. Dessa forma tanto o garoto pôde ser visto quanto os rostos daqueles diante dele. Henrique se manteve parado e surpreso em reconhecer aquela mulher a qual furtara a bolsa na estação e ver as maravilhas luminescentes da sombrinha. Havia uma mala que ela segurava, mas assim que ambos pararam, ela foi colocada no chão. O homem que seguia ao lado era alto e dava rodopios como um acrobata sem jamais deixar cair a cartola e a bengala.
Henrique não teve qualquer reação quando ele disparou ao seu encontro e meteu a mão no bolso da calça onde estava o objeto circular exclamando ao tocá-lo.
- Quente, quente! Mais um pouco e... Boomm! Um ladrãozinho a menos no mundo.
A mulher apanhou no ar o “relógio” que o homem lançou, e uma chave que trazia presa em um cordão no pescoço foi inserida no objeto fazendo-o retornar a forma de antes: uma caixinha metálica.
- Uffa! Foi por pouco!
Henrique deixou que algumas palavras escapassem dos lábios, não sentia menos tensão, mas o excesso de estranhezas que presenciara aguçava a sua curiosidade.
- Boomm? Isso era... uma bomba?
Os dois olharam para ele e riram alto. O homem mexeu em seus cabelos lhe perguntando amigavelmente quem era e onde morava. O garoto respondeu de imediato confiando no estranho que recompunha o colete e cartola e brincava com a bengala.
- Henrique Russell. Eu... eu morava em um... orfanato.
O homem deu um giro na bengala enquanto a mulher guardava aquela caixinha na mala junto de tantas outras. A mente infantil do menino não atinou que aqueles artefatos poderiam explodir uma cidade inteira e nem que estava diante de dois agentes secretos. A bengala parou de girar e o homem puxou a cabeça dela projetando uma faca e apontando para o rosto de Henrique.
- Toda operação quase fracassou por causa de um orfãozinho de merda! – Sua expressão era mais de reprovação que raiva.
A mulher correu com sua sombrinha luminosa e falou lançando olhares de ternura para o órfão.
- Não, pare! Pense um pouco. Um órfão ladrão pode ser útil e depois... “A Ordem” precisa de mais recrutas.
A chuva aumentou fazendo os pingos que escorriam da lapela da cartola do outro molhar o nariz de Henrique. O homem piscou os grandes olhos azuis e frios várias vezes. Todos os trejeitos que fazia pareciam ensaiados e ambos não se assemelhavam as pessoas que Henrique estava habituado.
- Hunf! Este cai no primeiro teste.
- Não é você quem decide!
A faca foi retirada do pescoço do menino e a voz masculina soou como desaprovação para companheira.
- Você e seus arroubos! Ok! É responsabilidade sua. Agora vamos!
Ele saiu cantando e espalhando a água empoçada enquanto segurava a mala.
Os grunhidos distantes dos cães confirmavam que o trem já estava “a todo vapor”, Henrique buscava sentar-se próximo de uma abertura para usar o luar e visualizar aquilo que retirava da bolsa:
Papéis, alguns cobres, cigarrilhas, uma pequena caixa metálica, mais papéis...
O menino com cicatriz recém adquirida no queixo e pele clara, suja de fuligem, atirava longe a maioria dos objetos se sentindo frustrado em não encontrar nada de valor. Sua barriga reclamava e ele esbravejava alto:
- Droga de vida! Mas não volto pra lá. Não volto!
Segurando a caixinha ele deslizou com as costas na parede do vagão e fechou os olhos tentando cochilar antes do trem chegar ao seu destino (desconhecido para ele). Por breves momentos ouviu vários clicks soando dentro daquele objeto, mas não deu muita importância e dormiu.
Era uma jovem mulher que trajava um vestido roxo e chapéu de lapela negro assim como as luvas. A bolsa se mantinha firme nas mãos enquanto os olhos detinham-se no trem que apitava prestes a chegar na estação. O menino esgueirou-se nas sombras e puxou a bolsa bruscamente. A mulher se esquivou e ele caiu machucando o queixo no chão, porém, quando um oficial se aproximou de ambos, a bolsa estranhamente foi entregue e o pequeno ladrão que partiu em disparada enquanto a mulher gritava e apontava.
- Ladrão! Ladrão! Atrás dele! Atrás dele!
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Henrique acordou assustado, ouvia os latidos dos cães ecoando e ficou feliz de tudo ser apenas um sonho. Olhou a caixa em suas mãos e franziu o cenho ao ouvir aqueles barulhos, agitou-o próximo ao ouvido atirando-o no chão após uma lâmina machucar seu dedo.
A caixinha caiu desdobrando-se e ganhando uma nova forma. Houve uma pirueta, uma luz azul fluorescente, engrenagens que romperam de lá para cá e em pouco tempo o objeto se tornava algo circular como um relógio, porém, sem ponteiros. A luzinha azul traspassava um buraquinho bem no centro. Henrique estudou aquilo mais de perto projetando a luz na parede e ouvindo curiosos tic- tacs.
Novamente o estômago reclamou mostrando maior revolta, o garoto passou a mão sobre a barriga lembrando-se do café amargo e pão seco do orfanato de onde escapara há dois dias.
- Não volto! Não.
A voz já não tinha a mesma convicção de antes, mas ele buscava distrair-se para esquecer a fome. O “relógio” foi colocado em um dos bolsos não furados de sua calça e ele se lançou para cima, galgando os degraus de ferro da parte externa da máquina a vapor que corria veloz sobre os trilhos.
Do alto o menino via as copas dos pinheiros, fazendas e lagos que refletiam a luz da lua tão escondida sob os vapores que escapavam das chaminés nas cidades. Ele se sentou não temendo nem a altura nem a velocidade e abriu os braços como um albatroz livre. Lembrava das paredes enegrecidas do orfanato, da frialdade da clausura e do quanto sofrera naquele lugar.
Em pouco tempo o apito da locomotiva soou e Henrique se apressou em descer antes que o trem parasse na estação. Verificou o “relógio” no bolso e estranhou a coloração vermelha da luz. Saltou correndo novamente por entre os trilhos e partiu apressado como um rato na ruas escuras daquela cidade. Na estação, duas figuras não perderam de vista o pequeno passageiro e seguiram sorrateiros atrás dele.
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Henrique caminhou devagar quando se sentiu seguro, e ao ler o letreiro estampado em uma construção qualquer, soube que pisava no chão de Londres. O céu escondido dentre fumaças diversas não deixava que ele se maravilhasse com os imensos edifícios espalhados, mas enquanto erguia a vista, a passagem de um vulto correndo de lá para cá o assustou impelindo-o em apressar o passo. Mais uma vez o vulto cruzou os telhados de uma construção e outra, e logo um assovio fez o peito de Henrique bater tão veloz quanto os sons, agora descompassados, do objeto que trazia no bolso.
Um beco escuro e sem saída foi o seu reduto e a projeção de dois seres cantando e dançando vindo em sua direção, fê-lo tremer acuado.
- Ora, ora. Se não é o pequeno ladrãozinho! – A voz feminina deixava dúvidas se era amistosa ou não.
- Tic- Tac. Tic- Tac. O tempo está passando... – Um homem falava saltitando e batendo os calcanhares vez por outra.
O menino engoliu seco sentindo o objeto esquentar em seu bolso. O céu precipitou uma fina chuva sobre os três fazendo a mulher abrir uma curiosa sombrinha com luzinhas brancas em cada ponta. Dessa forma tanto o garoto pôde ser visto quanto os rostos daqueles diante dele. Henrique se manteve parado e surpreso em reconhecer aquela mulher a qual furtara a bolsa na estação e ver as maravilhas luminescentes da sombrinha. Havia uma mala que ela segurava, mas assim que ambos pararam, ela foi colocada no chão. O homem que seguia ao lado era alto e dava rodopios como um acrobata sem jamais deixar cair a cartola e a bengala.
Henrique não teve qualquer reação quando ele disparou ao seu encontro e meteu a mão no bolso da calça onde estava o objeto circular exclamando ao tocá-lo.
- Quente, quente! Mais um pouco e... Boomm! Um ladrãozinho a menos no mundo.
A mulher apanhou no ar o “relógio” que o homem lançou, e uma chave que trazia presa em um cordão no pescoço foi inserida no objeto fazendo-o retornar a forma de antes: uma caixinha metálica.
- Uffa! Foi por pouco!
Henrique deixou que algumas palavras escapassem dos lábios, não sentia menos tensão, mas o excesso de estranhezas que presenciara aguçava a sua curiosidade.
- Boomm? Isso era... uma bomba?
Os dois olharam para ele e riram alto. O homem mexeu em seus cabelos lhe perguntando amigavelmente quem era e onde morava. O garoto respondeu de imediato confiando no estranho que recompunha o colete e cartola e brincava com a bengala.
- Henrique Russell. Eu... eu morava em um... orfanato.
O homem deu um giro na bengala enquanto a mulher guardava aquela caixinha na mala junto de tantas outras. A mente infantil do menino não atinou que aqueles artefatos poderiam explodir uma cidade inteira e nem que estava diante de dois agentes secretos. A bengala parou de girar e o homem puxou a cabeça dela projetando uma faca e apontando para o rosto de Henrique.
- Toda operação quase fracassou por causa de um orfãozinho de merda! – Sua expressão era mais de reprovação que raiva.
A mulher correu com sua sombrinha luminosa e falou lançando olhares de ternura para o órfão.
- Não, pare! Pense um pouco. Um órfão ladrão pode ser útil e depois... “A Ordem” precisa de mais recrutas.
A chuva aumentou fazendo os pingos que escorriam da lapela da cartola do outro molhar o nariz de Henrique. O homem piscou os grandes olhos azuis e frios várias vezes. Todos os trejeitos que fazia pareciam ensaiados e ambos não se assemelhavam as pessoas que Henrique estava habituado.
- Hunf! Este cai no primeiro teste.
- Não é você quem decide!
A faca foi retirada do pescoço do menino e a voz masculina soou como desaprovação para companheira.
- Você e seus arroubos! Ok! É responsabilidade sua. Agora vamos!
Ele saiu cantando e espalhando a água empoçada enquanto segurava a mala.
- God save the Queen. O Lord our God arise, scatter her enemies, and make them fall...
- Tudo bem. Vamos!
Henrique caminhou ao lado da mulher sem parar de olhar suas roupas, eram estranhas e extravagantes. Um espartilho de couro marrom estava por sobre o vestido claro de mangas bufantes, o comprimento da saia era um pouco abaixo do joelho e ela calçava botas negras nunca vistas por ele. O chapéu estava mais para cartola masculina do que para algo feminino. Ele sentia as maçãs do rosto esquentarem ao olhar aquele busto muito exposto.
- Desculpa pela queda – Ela disse segurando a mão dele.
- Desculpa por roubá-la.
A mulher riu, lembrando-se de haver entregado a bolsa para não chamar atenção para si.
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Meses depois a polícia secreta britânica era chamada às pressas para investigar as estranhas explosões a trens de cargas e embarcações com manufaturas vindas das colônias Inglesas. Uma crise se anunciava. No jubileu de diamante da Rainha, um objeto circular muito quente foi levado para os aposentos de um empregado, a explosão foi mantida em sigilo, mas todos ficaram alarmados.
Henrique Russell fracassara em sua primeira missão e corria na dúvida se outras oportunidades surgiriam ou não.