Sobre o Sangue dos Meus Filhos

Nota: O início da contaminação é descrito no conto “Principio Finis”, que se encontra no blog http://contosassombrados.wordpress.com.

...Meus cabelos oscilam desorientados à mercê do bafejo forte do vento, partículas de poeira golpeiam meu rosto, cabisbaixo e ajoelhado ao chão, olhar perdido e mui distante, totalmente inerte. Assim eu me vejo vagueando pela paisagem que outrora foi cheia de vida e luz, sinto-me um errante consciente no meio desse cataclismo ocorrido de uma hora para outra, talvez se eu me tornasse um morto-vivo, seria menos doloroso, sem saber oque, para que ou porque de tudo e não estaria com este pesar que corta meu coração já contrito por tantas perdas, desespero e medos. Infelizmente eu sou imune a este mal e agora com minhas mãos sujas pelos restos fétidos dos meus filhinhos, vejo o sangue deles escorrerem até tocar meus joelhos, inundando minha alma com o vácuo que devastou toda minha razão de existir...

Anteriormente ao contágio se transfundir por todos os lugares, Eliano vivia tranquilamente em um pequeno sítio em Juquitiba, distante uns 75 km de São Paulo. Cuidava de suas criações, da horta e pomar bem modestos, porem lhe traziam o sustento necessário para ele e sua família composta por sua esposa e um casal de filhos gêmeos com idade de 11 anos. No inicio de 2013 uma praga zumbi disseminou-se pela região metropolitana de São Paulo, tumulto, saques, violência em demasia, medo e muitas mortes ocorreram.

O terror de um apocalipse bíblico tomou vida e espalhou-se rapidamente. Em pouco tempo os mortos ressurretos e errantes caçavam os vivos e os vivos, por sua vez, matavam-se por bens mais valiosos nesses dias, como água, comida e remédios que eram cada vez mais escassos. As regiões urbanas foram as mais afetadas, destroços humanos e muita carniçaria povoaram as ruas das cidades, muito sangue foi derramado pelo exército, que despreparado, atirava a esmo, sem distinção de quem estava infectado ou não. As investidas, mesmo sendo furiosas, das forças armadas duraram pouco, os quartéis próximos também foram alvo da difusão da bactéria causadora da desgraça. Ataques aéreos foram descartados, o alto comando decidiu esperar os errantes definharem por falta de alimento, isolaram as principais vias de acesso as cidades infectadas, Osasco, Embu, Barueri, Cotia, Guarulhos, Taboão da Serra, São Caetano e todas as cidades circunvizinhas a São Paulo foram bloqueadas e postas sob quarentena, lei marcial vigorava por todo território brasileiro e a ONU adotou medidas extremas em relação ao Brasil, ancorando navios e porta-aviões por toda extensão da orla brasileira, fechando o espaço aéreo para pousos e decolagens internacionais.

Tempos difíceis e insólitos, e no meio deste zoo sanguinolento, estava a pequena propriedade de Eliano, não tinha para onde fugir, não havia em quem confiar, não recebiam noticias dos familiares, o telefone não funcionava e o sinal do celular sumiu, em uma semana a energia elétrica acabou. De sorte que a região rural onde vivia era um tanto acidentada, consequentemente pela distancia e topografia, talvez a infestação demorasse ou com mais sorte nem chegaria ao portão de seu sítio. Aos poucos e com a ajuda da esposa e dos filhos, fortificou como pode a cerca de arame farpado e o portão, instalou no cercado latas vazias, que serviriam de alarme caso alguém tentasse passar, seu cachorro, um bom vira-latas, era esperto e vigilante, latia por qualquer coisa estranha.

Sua casa, de alvenaria, simples e mal acabada, com portas de madeira, não aguentaria um improvável ataque de muitos zumbis. Eliano afiou um facão e o machado e os deixou bem próximos a cozinha, preparou seu velho rifle Winchester model 70 de calibre 22, herança de seu pai, contudo não testou as munições, receava que o som alto da arma chamasse por demais a atenção, um receio que gerou a omissão e por fim um erro infesto.

Duas semanas e vida seguia, apesar dos pesares, tranquila. A mulher de Eliano improvisou uma sala de aula no quintal em frente a casa, para entreter os filhos, enquanto o pai cuidava das poucas criações que restaram, muitas já haviam servido de alimento e não havia muito oque ofertar para os bichos, o pomar seguia rendendo bons frutos e a pequena horta fornecia bem verdes folhas de couve e alface.

Início de Março, uma ensolarada manhã de quinta-feira surgia majestosa, céu límpido azul celeste com poucas nuvens, o esplendor do firmamento contrastava com o horror da época. Eliano logo cedo rumou para os limites de sua propriedade, munido com foice, facão e acompanhado pelo cachorro. O mato alto dos arredores e das vizinhanças, tanto ajudava a manter a camuflagem do seu lar como também impedia a visão da estrada de terra e de alguns sítios vizinhos.

Som das latas que estavam penduradas na cerca chegou aos ouvidos, um barulho fraco no começo, soava igual a um vento que tivesse culpa disso, todavia mais uma vez e mais intenso chacoalhar das latinhas, despertou a ira do cão e fez os olhos de Eliano abrirem espantados e um calafrio gelar sua espinha, mirou ao lado direito e enxergou uma figura do que foi um dia um humano, babando e grunhindo um som grave de sua boca, um zumbi alto, forte e de pele cinza, no que provavelmente foi em vida um homem negro e de bom vigor físico, agora estava com roupas em farrapos, investindo contra o arame, rasgando seu abdômen e boca, vertendo sangue negro. Os braços da criatura ainda eram ágeis, tentavam desesperadamente agarrar o cão que latia e rosnava colericamente, mas ao perceber a presença de Eliano, seu alvo mudou de direção.

Após o choque, o dono do sítio estava disposto a acabar com a existência, se é que se pode qualificar assim, daquele ser. Segurou firme o facão e golpeou forte os braços do errante, líquido escuro jorrou em direção ao cachorro junto com a mão esquerda, Eliano por um instante fitou ao redor e viu outros zumbis aproximando-se devagar das suas cercanias e antes de outra ação ouviu um grito tenebroso.

— Ahhhhhh! Socorro paaaiii! – Era voz de sua filha Íris.

O homem correu como louco, sua casa era fincada bem ao centro do terreno, os gritos não cessavam e estavam cada vez mais altos, estridentes e pavorosos, rompiam os tímpanos e cortavam o coração de Eliano, fatiando-o em milhares de medos possíveis.

Maria sua esposa, assim que Eliano partiu pela manhã, levou Íris e Ivan seu filho para colher figos mais ao fundo do terreno, uns cem metros distante de sua casa, infelizmente não perceberam que seis zumbis haviam transpassado pelas frágeis fortificações da propriedade, foram atacados de surpresa, cercados pelos horríveis, pútridos e fétidos monstros.

Maria estava na escada apanhando os frutos nos galhos mais elevados, um tranco potente de um errante fez ela, a escada e o zumbi caírem com violência ao chão. A vigorosa mordida do monstro arrancou um filé de carne das costas de Maria, seu grito de sofreguidão foi bruscamente abafado por outra criatura feminina que cravou os dentes em sua garganta, deixando os músculos à mostra e asfixiando com seu próprio sangue. As crianças correram e gritaram apavoradas em direção do lar.

Ivan, sempre foi rápido na corrida, todavia era o mais atabalhoado, e uma pedra no caminho selou seu destino ao tentar desviar de um zumbi. Tombou com a face voltada para terra, quebrando seu nariz e vertendo grosso sangue, tentou virar-se e continuar, mas dois rápidos e ferozes monstros mordiam suas mãos que sem sucesso buscavam proteger seu corpo e face. Arranhavam, puxavam e abocanhavam Ivan que lutava bravamente pela sua vida, vida ceifada a toques da mais vil maldição por seres mórbidos e brutais. Sua existência terminou com as dentadas dos zumbis se deliciando com suas vísceras.

Íris conseguiu chegar até a porta da casa, outros dois errantes a seguiam, Eliano já adentrava pelo outro lado, trêmulo e desesperado por achar e municiar sua Winchester. Íris abriu a porta, defecou mole e urinou-se toda quando se deparou com o um ser com um dos olhos pendurado pelo pequeno nervo, pele recoberta de chagas e feridas emanando sangue e pus.

O pai da menina surgiu por detrás do monstro, empunhando sua arma com compreensível tremedeira, puxou o gatilho, uma e mais uma vez, as velhas munições falharam. O zumbi já estava com sua mão forte no pescoço de Íris, uma dentada selvagem arrancou cabelos, pele, pouca carne, mas muito sangue, um vermelho vivo que recobriu toda a face do zumbi, Eliano antes de pular ferozmente em cima do ser com seu facão em punho, viu pedaços dos miolos da sua princesinha caírem ao piso de seu lar.

Eliano, o monstro e sua filhinha foram ao chão e lá o homem furiosamente fez em pedaços o zumbi, nem se incomodou em ter recebido uma mordida e logo em seguida partiu para cima dos outros dois que vinham em sua direção. Cego pela cólera, golpeava os seres com furor e brutalidade nunca antes despertada. Ganhou os fundos do quintal e viu o que nenhum pai de família mereceria ver, seus amados destroçados, sua terra manchada com os do seu sangue, servidos como um banquete para o diabo.

Eliano atacou os zumbis restantes, despedaçando-os por inteiro.

— Ivan... Íris... Maria! Nãaaaaoooo! – Eliano pranteava andando desorientado ao redor dos corpos trucidados de sua família.

Tomou Íris em seus braços e rumou até onde estava Ivan, lá ajoelhou, murmurou e amaldiçoou a tudo e a todos, esperava se transformar, mas depois de 4 horas nada ocorreu, seu destino foi mais cruel que a própria morte. Outros errantes logo entrariam em seu sítio.

Eliano prostrado sobre os corpos e sangue de seus filhos, apenas esperou.