O Poder dos Astros

(TT Albuquerque)

 
A enorme sombra se projetou sobre as águas límpidas do oceano pontuado por montanhas alvas que flutuavam levadas pelas mãos secretas das correntes. A nau brilhante que impavidamente fazia pouco caso da gravidade avançava morosamente com suas flâmulas e estandartes coloridos deixando atrás de si redemoinhos de fumos negros que recendiam a óleo minado das rochas. Homens envergando pesadas cotas polidas que rebrilham com a luz pálida do inverno faziam vigília no convés de cedro envernizado que rangia queixoso das constantes fustigadas que Bóreas lhe lançava. As sentinelas deixavam escapar nuvens de vapor ao fim de cada respiração e pequenos tremores faziam os anéis de metal de suas vestimentas tinirem como címbalos desafinados, mas elas não procuravam o abrigo no interior do Flagelo dos Infiéis, a nau do vizir Almir Bin Ademir, conhecido como “Almir: o Inquieto”, pois assim como sua sanha por conhecimento era vasta, o seu retaliar perante atos que desabonavam os fiéis era duro.
 
Nascido em uma próspera família de comerciantes de óleos minerais, o agora idoso legislador galgou searas ladeadas de perigos e traições até se tornar o segundo homem mais poderoso do Império Persa, sua influência só era menor que a do próprio Imperador. Almir se destacou entre os homens de sua geração por possuir um espírito questionador e prático, o qual lhe fez seguir o caminho das letras e das ciências, trazendo glórias ao Império, fazendo a sua sagacidade e erudição serem comparadas as do Grande Salomão.
 
A inquietude que sentia ao desconhecer os segredos do mundo o fazia se lançar em empreitadas como a atual, a qual apesar de não aprovada pelo Imperador, foi levada a cabo, pois alguma coisa na alma do homem dizia que algo não andava bem com o mundo além das areias andarilhas dos desertos. Algo que escapava de sua percepção e pesquisa. Para sanar a questão Almir seguiu até as bordas do mundo em busca das lendárias cidades do ocidente. Cidades perdidas no pó da história. Lugares além-mar celebrados em tomos centenários como moradas de demônios, djins e ghouls.
 
O sábio idoso fumava seu narguilé de jade enquanto divagava sobre medos obscuros na alcova forrada por finas tapeçarias com imagens intricadas de batalhas míticas. O recinto era a materialização da suntuosidade do império, estantes do mais negro ébano se curvavam ante o peso de tratados científicos finamente encadernados.
 
 O vizir foi arrancado do vale de incertezas e teorias o qual seu pensamento vislumbrava quando batidas na porta ecoaram acompanhadas de uma voz rouca e máscula pelo quarto.

- Meu senhor, o erudito Gabriel roga por uma entrevista.

Deixando de lado o intrincado cachimbo, o vizir se aprumou.

- Deixa-o entrar Mohamed e que mais ninguém o siga.

As portas rangeram ao se moverem nas dobradiças de bronze permitindo a entrada de um rapaz de compleição frágil, madeixas da cor do trigo, pele alva, voz suave e trajando roupas modestas, a verdadeira antítese do homem deitado com sua pele azeviche, barba espessa e com salpicos de prata.

- Que Jesus o abençoe, Excelência. Espero que estejas bem.

O idoso sorriu ante o cumprimento. Um sorriso reprovador.

- Estou bem Gabriel e pelo que posso constatar a mania de professar sua fé aos servos de Alá ainda não o abandonou. O rapaz meio encabulado tentou expor sua visão.

- Penso que jamais perderei essa “mania” Excelência. Como cristão é meu dever.

O sorriso na face do idoso se alargou e gesticulando para que o cristão se sentasse.

- Quem dera todo fiel fosse tão observador da fé no Islã quanto tu és da tua, Gabriel. Mas como bem sabe, a tripulação é composta por homens sem muita luz do conhecimento e não conscientes de que tememos o mesmo Deus e por culpa dos ímpios do passado e sua maldita torre, O nomeamos de formas distintas. Essa falta de ilustração deles poderá te trazer algum “acidente” durante nossa viagem.
A face do rapaz se contorceu com a idéia e confuso ele perguntou.

- E o que devo fazer Excelência? Fingir ser o que não sou? Isso me parece um pecado hediondo.

O sorriso de Almir mudou para um de pura benevolência, como o de um avô ante seu neto mais querido.

- Faça o que todo fiel deve fazer com os assuntos da fé: ore, jejue e sirva nosso Senhor e Sua Obra. Para isso não necessitas da aprovação de homem algum ou tentar convencer qualquer outro a fazer o mesmo da forma que acreditas ser a correta.

Gabriel concordou com um aceno de cabeça, vendo isso, o vizir mudou o rumo da conversa.

- Agora diga o que deseja, pois acredito que não veio até mim para discutir teologia.

O jovem retirou das dobras de suas vestes um aparelho de leitura e o estendeu na direção do idoso.

- Perdão Excelência, realmente não vim roubar vosso tempo com esse assunto. A tradução está completa e como Vossa Excelência ordenou, trouxe-a logo que terminei o processo.
O vizir tomou o pequeno aparelho e olhando atentamente o visor brilhante, elogiou o jovem tradutor.

-Realmente você é um gênio Gabriel. Poucos são os homens no Império capazes de traduzir essa antiga língua com a rapidez e competência que demonstras. Eu não consegui amar essa língua bárbara como tu amas e acabei por apenas arranhar uma pequena parcela de seu entendimento. Agora me deixa só para que eu leia a tradução.

O jovem se ergueu e após uma reverência, deixou a alcova do legislador.

Novamente só, o homem passou o tempo lendo as linhas que rolavam na tela do aparelho e só terminou a tarefa quando a noite lançou seu manto negro pontuado de luz sobre o mundo. A face do vizir parecia roubar as sombras do próprio Abismo para si e um brilho sinistro emanava dos profundos olhos cinza. Ele pousou o aparelho sobre as almofadas e novamente levou aos lábios a piteira do narguilé. Entre anéis de fumaça, deixou escapar uma frase preocupada.

-Um pedido de socorro. Mas por que eles precisariam de ajuda?

Ignorando as divagações do sábio vizir, a nau continuou sua lenta caminhada pelas águas que espelhavam o céu noturno de inverno.
 
***
 
A manhã tocou o metal reluzente das armaduras das vigias postadas sobre o tombadilho. Na distância uma curiosa silhueta lentamente se formava no horizonte. Após semanas de viagem a expedição do vizir finalmente se aproximava de seu objetivo. Uma terra cujo nome se perdeu nas areias da ampulheta, onde os filhos de Adão já não são senhores.

A cada jarda vencida, a silhueta dessa terra mítica se despia mais e mais das brumas que lhe defendiam dos olhos das vigias enregeladas, até que a sombra da calma nau deixou de escurecer as águas do oceano para cobrir as praias desertas e então continuar sua viagem sobre densas florestas recobertas pelo véu de neve soprado pelo céu.

Algumas horas depois, os olhos das sentinelas foram invadidos por uma visão fantástica, uma muralha de proporções ciclópicas, que ocupava o horizonte até quase se perder de vista. Sua sombra acabou por engolir a figura do Flagelo que se tornou ínfimo ante sua magnitude.

Vestindo um pesado manto de pele de urso, o vizir observava a fantástica construção junto do jovem erudito.

- Veja Gabriel! Como vos disse, encontraríamos as ruínas. Os antigos mapas estavam certos!

Maravilhado com a visão, o rapaz apenas sorriu e não percebeu a chegada de Mohamed, o comandante da guarda pessoal do legislador, que envergando uma pesada armadura fazia o tombadilho estalar ainda mais queixosamente do que o comum.

- Excelência, o pelotão de reconhecimento está preparado para desembarcar. Aguardo apenas o vosso comando para iniciar a operação.

Os sulcos da face idosa ficaram ainda mais pronunciados devido ao sorriso que se esforçava em escapar de sob a barba do vizir, e apontando para uma fenda no paredão, ordenou.

-Pois vá agora. Entre por aquela parte danificada da estrutura e retorne em duas horas. Você tem minha permissão para usar da força. Que Alá lhe sorria.

O soldado ouvindo a ordem fez uma pequena mesura e se virou para partir, mas sua saída foi interrompida pela voz do vizir.

- Espere Mohamed. Leve ele contigo.

As faces do rapazote e do guerreiro eram pura surpresa. Gaguejando, o linguista perguntou.  

- Mas por que devo ir Excelência? Não sou um soldado, apenas irei atrapalhar a equipe do comandante.

Apertando o pesado manto contra seu corpo castigado pelo frio, o idoso olhou de forma dura para o rapaz.

- Por que assim eu desejo. Você será útil na busca, pois é o único que domina completamente a língua que era falada nessas ruínas. Agora parta. Já perdemos tempo demais com sua falta de respeito para com minha autoridade.

Vencido, Gabriel após uma saudação de despedida, apenas seguiu o homem de armadura convés abaixo.

Sozinho sobre a proa do Flagelo, Almir observava os céus de forma preocupada e questionava-se.

- Estarei errado? Será apenas uma coincidência?

Os céus de cor plúmbea apenas despejaram seus flocos gelados como resposta.
 
***
 
Após um som pesado de metal movendo, o Flagelo se abriu e de seu interior como um ovo sendo cuspido das entranhas de uma ave, despencou uma embarcação menor. O Vento do Deserto, uma embarcação de combate, armada com as mais mortíferas maquinações do engenho bélico imperial. Velozmente ela mergulhou na fenda da muralha, se perdendo dos olhos das vigias.

No interior do Vento, o pelotão especial do vizir fazia os últimos preparativos da missão. Sentado ao lado de Mohamed na ponte de comando, Gabriel rezava para todos os santos que conhecia pedindo ajuda enquanto a embarcação fazia evoluções no interior da muralha para evitar os obstáculos no caminho. O comandante sorria se divertindo com a preocupação do rapaz.

- Calma cristão, naveguei em lugares muito piores e ainda estou aqui. Em alguns segundos estaremos do outro lado e aí sim, você poderá ficar preocupado.

O linguista olhou horrorizado para o homem ao seu lado e em um tom de voz cheio de medo, perguntou.

- Por quê?! O que há lá?!

Gargalhando à custa do rapaz, Mohamed levou a nave até a luz invernal que se pronunciava no outro lado da fissura e lá, foram recebidos por quilômetros de ruínas arrasadas, cobertas pelo pó dos séculos e a neve mui alva despejada dos céus da tarde silenciosa.

Como um pássaro carniceiro, a embarcação deu voltas no ar procurando uma área livre para lançar seus tripulantes em terra. O veículo pairou como uma mosca varejeira sobre os resquícios de uma praça e abrindo uma comporta lateral, permitiu a saída do pequeno pelotão com quatro soldados mecanizados. Eles foram içados até o chão recoberto pela neve profunda através de poderosos guindastes e ao palmilharem o solo intocado durante séculos com seus pés de aço, debandaram tal qual insetos flagrados. Mohamed, observando a movimentação de seus subordinados, perguntou ao linguista.

- E então? Tens noção sobre qual coisa o vizir anseia encontrar nessa ruína?

Ainda pálido graças à viagem, o tradutor tentou tomar para si uma postura mais centrada e menos vexatória.

- Peça aos seus homens que procurem qualquer inscrição com a palavra “shelter” ou “army”. Pelo que pude colher do vizir, o que ele procura provavelmente se achará em algum lugar relacionado a essas palavras.

Usando o comunicador, Mohamed instruiu seus homens a seguirem a diretriz sugerida pelo rapaz. Uma hora escorreu pelo vão da ampulheta antes de uma mensagem ser enviada pelo soldado Azis, o comandante em solo. Um homem de meia idade, truculento e afeito ao linguista.

-Não encontramos. Repito. Não encontramos qualquer inscrição que se encaixe no requerido. Não seria melhor nos informar o significado dessas palavras Comandante? Ou o cristão não deseja repartir seu conhecimento com os servos de Alá?

O piloto olhou de maneira divertida para Gabriel, debochando de seu pouco desenvolvido espírito prático, esperando uma resposta do jovem que no momento ostentava uma expressão contrariada.

- Diga ao seu subordinado que procure alguma construção militar ou abrigo para civis.

O militar repassou a informação para a equipe em solo e novamente Azis enviou uma mensagem.

- Perdemos tempo por nada Comandante, se o garoto tivesse tido o bom senso de nos dizer o que queria antes, já poderíamos estar adiantados na missão! Encontramos uma entrada meio demolida de um abrigo contra bombas logo ao chegarmos ao solo!

Mais sério, o piloto instruiu seus homens.

-Prossigam a missão adentrando o local. Liguem os emissores visuais.
 
****


Quando as correntes foram lançadas para puxar as máquinas de guerra até a segurança do bólido de destruição, se lançaram ao hangar. Eles encontraram Aziz já desembarcado de sua armadura mecanizada. O soldado trazia um intrincado objeto metálico semelhante a uma arma em suas mãos e jogados sobre o tombadilho ao seu lado, estavam um livreto embolorado e os ossos da bocarra do tubarão visto nas imagens.

Gabriel não dando atenção às demais coisas ou ao homem, se lançou sobre o livreto e feliz traduziu em sua mente parte do texto. Perdido na tarefa, não notou a aproximação do Comandante, que tomando de suas mãos o objeto, passou a o avaliar.

- O que é isso Azis?

Cercado pelos demais soldados analisando a coisa em suas mãos, Azis deu de ombros.

- Não faço idéia Comandante, estava no corpo encontrado. Pensei que o cristão poderia nos dizer se é algo útil.

Olhando com descrédito para o jovem, Mohamed estendeu o livro em sua direção.

- Pode?

Um sorriso triunfante invadiu a face do tradutor e pousando seus punhos na cintura em uma postura desafiante, ele quase gritou de tão cheio de si.

- Sim! Eu posso! 
 
***
 
As portas da alcova do vizir se abriram ruidosamente e a figura de Gabriel invadiu o recinto. O jovem parecia exausto, desde seu retorno ao Flagelo que o linguista não descansara, pois a tradução do livro encontrado nas ruínas da cidade arrasada foi posta como assunto prioritário. Ele carregava um aparelho de leitura em suas mãos.

-Excelência, eis a tradução do documento encontrado. Penso que ficarás decepcionado com seu teor.

Deitado sobre os montes multicoloridos de almofadas, o vizir gesticulou para o jovem sentar-se enquanto expelia nuvens azuladas de fumo por suas narinas.

-Tua dedicação e capacidade não serão esquecidas Gabriel. Será meu secretário particular ao retornarmos a capital, mas por que pensas que ficarei desapontado?

O ar cansado do rapaz desapareceu por alguns instantes por trás de seu sorriso de alegria.

-Vossa Excelência é muito generoso, mas ouça, apesar de termos encontrado os estranhos restos animais ao lado da múmia que guardava o livro e eles parecerem pertencer a criaturas descritas no mesmo, o texto me pareceu uma fantasia demente.
 
Após a permissão do vizir o tradutor começou a ler:

”Jamais poderíamos imaginar que nós, o Grande Império Britânico, nos veríamos prostrados ante um inimigo estrangeiro. Um inimigo que anos atrás era parte de nossa economia e cultura.
 
            O primeiro relato acerca do inimigo surgiu entre os navios baleeiros que aportavam em nossa capital. A maioria das embarcações retornava aos portos, parcialmente destruídas e com massivas baixas na tripulação. Os poucos sobreviventes remontavam histórias fantasiosas que na época eram tidas como meras bravatas insanas.
 
            Os relatos eram desconexos em sua maioria, a única coisa em comum entre os mesmos era o traje dos inimigos: pesados escafandros de linhas curiosas, quase alienígenas, que apesar do grande tamanho e estimado peso, permitiam seus usuários se moverem como estivessem envergando roupas leves de verão.
 
            O caos se instalou em todo o império, indústrias de óleo de baleia e pesqueira tiveram suas atividades paralisadas, gerando um medonho desabastecimento dos viveres marinhos e aumentando o seu custo de forma absurda. Relatos semelhantes aos observados nos portos da capital começaram a surgir provenientes das colônias e após poucos meses algumas delas deixaram de enviar notícias. A Rainha, ciente da gravidade da situação enviou toda a armada para averiguar o que poderia ter ocorrido e em caso de necessidade tomar medidas contra o possível inimigo.

Nenhuma das embarcações retornou.
 
Em menos de três meses o mar tornou-se um ambiente proibido aos homens. As pequenas embarcações de pescadores eram atacadas ao se afastarem da costa. Cada vez mais a distância segura entre a costa britânica e o mar aberto diminuía tornando proibitiva a prática da pesca. O império ficou literalmente ilhado ante as forças nebulosas que passaram a dominar os mares ingleses.
 
Mas o inimigo não se conteve em nos humilhar negando acesso aos mares, e invadiu o solo sagrado de nossa terra. No início, apenas pequenos vilarejos costeiros foram atacados pelos exércitos de escafandristas estrangeiros que dizimavam as populações com selvageria inumana em ações pontuais. Lentamente os ataques tornaram-se mais contumazes, forçando o povo a abandonar seus lares e correrem procurando abrigo no interior do país.
 
Cheios de um espírito combativo, nossos militares se jogaram em direção ao litoral, mas foram chacinados pelas forças inimigas. Arma alguma parecia ser capaz de ferir os invasores, mesmo a artilharia pesada se mostrava inútil.
 
As baixas militares e de terreno foram enormes, nem mesmo a briosa Brigada Ligeira, com seus destemidos e celebrados tropeiros, foi capaz de fazer frente aos soldados de armaduras azeviches.
 
Tudo parecia perdido até que durante um dia de tempestade a chama da esperança queimou no coração do povo inglês por uma vez mais! Um dos invasores foi fulminado por um raio enviado pela providencia divina e tombou abatido. Os seus companheiros ao verem tal cena, debandaram em fuga rumo ao mar sem se preocupar em resgatar o caído. E foi nesse instante que tivemos o maior de todos os assombros. Ao tentarem retirar o capacete do soldado, um jato de água marinha foi expelido e o insólito se desnudou ante seus olhos. Dentro da armadura não havia um homem, mas sim um peixe. Uma maldita sardinha.
 
Para tentar entender a situação, o “corpo” foi levado para a Academia Real de Ciências e Engenharia. Após uma minuciosa análise, ficou sendo do conhecimento público que os atacantes na verdade eram peixes que utilizando uma avançada tecnologia, pilotavam as poderosas armaduras cujo metal dava indícios de ter sido moldado a frio e até o momento era inédito na tabela periódica. As assombrosas máquinas propelidas por um avançado sistema bio-elétrico serviam como aquários móveis para os animais que presos por eletrodos pilotavam as mesmas para atacar o Império. O mecanismo foi nomeado de Lito-Fato.
 
Munidos desse espécime e dos conhecimentos adquiridos através dele, nossos melhores cientistas criaram armas que podiam combater os inimigos que desde então ficaram conhecidos como Lito-Escafandristas pelos eruditos e Shell-Fishs pelo povo.
 
Uma nova arma foi distribuída entre as fileiras: A mochila de arco voltaico. Um genial armamento que consistia em uma bobina elétrica carregada por esforço mecânico, capaz de disparar uma forte descarga semelhante a um raio. Munidos dessa nova tecnologia uma nova brigada foi criada a partir dos remanescentes da Brigada Ligeira: A Brigada Voltaica.
 
Foram estrondosas as vitórias sobre os Lito-Escafandristas graças ao avançado armamento usado pelas tropas de nossa nação, mas estas foram breves, pois novos tipos de inimigos se apresentaram.  Em um esforço de guerra jamais visto antes pela humanidade, foi erigida a Grande Muralha de Londres, uma maravilha da engenharia composta por aço, rocha e sangue. Em apenas um inverno, a muralha foi erguida e ao raiar da primavera, com o recomeço dos ataques, nossa pátria teve como sobreviver ante as hordas marinhas.
 
Em cada trecho da muralha foram instalados gigantescos arcos voltaicos e canhões em trilhos que se moviam ante a necessidade de se concentrar as defesas em algum ponto onde os atacantes se concentrassem. Por dois anos a grande muralha e os bravos homens e mulheres da Brigada Voltaica conseguiram manter a segurança do povo, mas ainda assim a situação era desesperadora, pois a população confinada precisava de viveres e estes cada dia mais se escasseavam. Como produzir alimentos no espaço restrito e poluído da capital?
 
A cada dia a fome se tornava mais endêmica na cidade e revoltas populares. Uma guerra civil eclodiu e durante quatro meses o pior inimigo foi o nosso próprio povo. A insuflação só teve termino quando a Real Academia de Engenharia Militar tornou pública a criação de um modelo de autômato baseado na tecnologia dos Shell Fishs que seriam responsáveis pela produção de alimentos fora dos muros da capital. A alegria popular foi tamanha que os revoltosos largaram as armas e novamente o povo britânico se uniu contra seu inimigo figadal dos mares.

Mas como transportar para fora das muralhas os autômatos (que popularmente passaram a ser conhecidos como Dick devido ao seu peculiar formato cilíndrico) para fora das muralhas sem permitir a entrada das legiões assassinas?

Muitas propostas foram apresentadas, mas todas se mostraram infelizes na sua eficácia. Apenas quando um imigrante forçado (o governo passou a usar esse termo para designar as pessoas que ficaram presas em nosso país graças à crise) apresentou um revolucionário projeto de aeronave que serviria como cargueiro e nave de guerra que o problema ruiu.
 
Assim foi criada a Primeira Brigada Aérea da Coroa e usando da sua mobilidade e poder, a crise alimentar foi remediada.

Fazendas foram restauradas, a produção se tornou recorde e com o uso das aeronaves (chamadas de Thunder Clouds graças aos seus canhões voltaicos e de suas bombas) a maré da guerra mudou em favor da Inglaterra.
 
Até o fim do inverno seguinte nossa nação conseguiu se estabilizar e entrar em contato com o restante do mundo e para nosso pesar, descobrimos que a maiorias das nações haviam sucumbido sob o julgo dos demônios marinhos. Poucos países ainda existiam além-mar e sua maioria se localizava no oriente médio, entre as areias causticas do Saara.

Um breve período de bonança recobriu nosso país, mas assim que a neve derreteu, nosso pesar recomeçou.
 
Enormes tubarões brancos com dezenas de metros e munidos com pesadas armaduras irromperam velozmente nos campos de guerra com suas duplas fileiras de patas mecânicas no formato de braços humanos. Seu poder e velocidade faziam com que mesmo os Dicks fossem destruídos por suas presas metálicas.
 
Nossas forças terrestres foram dizimadas e mesmo nosso poderio aéreo se mostrou ineficaz ante os tubarões-máquina. Em poucos dias eles chegaram até a Grande Muralha deixando a morte e a desolação por onde passavam. A situação mais uma vez se tornou desesperadora, pois as investidas dos monstros (apelidados de Armed Sharks) eram constantes e quase impossíveis de serem contidas.
 
Utilizando os conceitos criados para a construção dos arcos voltaicos e de antigos conceitos acerca de armas de fogo repetidoras, eficientes metralhadoras de Disparo de Arco foram criadas. Essas maravilhas do engenho humano eram capazes de criar verdadeiras barreiras de chumbo eletricamente carregadas e propelidas na velocidade do som magneticamente pelas pesadas armas, foram capazes de equilibrar a guerra e dar novo fôlego a nossa combalida nação.
 
Novamente passamos os áridos meses gelados nos preparando para a chegada da primavera e o reinicio dos ataques de nosso inimigo insólito. Novos modelos de Dicks armados com Metralhadoras de Arco e um sistema de auto detonação foram fabricados e barricadas móveis foram instaladas na Grande Muralha. Londres não dormiu uma só noite durante a última estação de paz e frio ocupada no esforço de guerra. Ao raiar do primeiro lume do degelo, estávamos preparados para vencer... Assim pensamos.
 
Os malditos invasores conspurcaram novamente o solo de nossa nação com um novo engenho de guerra, uma criatura monstruosa que somente o mais visionário dos homens poderia vislumbrar. Como behemoths marinhos, titânicos cachalotes albinos saíram do seio do oceano rastejando lentamente sobre infindáveis fileiras de patas de metal.

As bestas se mostraram imunes às nossas armas e usando de poderosos canhões de água marinha capazes de retalhar aço e rochas com sua pressão quase sobrenatural, arrasaram os postos avançados das forças de defesa e lentamente mergulharam nas sombras projetadas pela muralha escudo.
 
Neste mesmo instante em que escrevo essas linhas, elas forçam sua entrada na capital e em breve as hordas de tubarões, peixes-espadas e escafandristas com cérebros de sardinhas retalharão os corpos do povo inglês. Todos os cidadãos de Londres se muniram com os engenhos de guerra e aguardam a batalha derradeira.
 
Meu nome é Alex Stonehill, sou professor por profissão e jornalista por paixão. Espero um dia poder ler este relato aos meus netos e que eles possam fazer o mesmo para os seus. Este é o décimo terceiro dia do mês de agosto do ano de 1845 de Nosso Senhor.
 
Deus salve a rainha!”
 
Ao terminar a leitura, o rapaz ficou em silêncio, esperando algum comentário do vizir, mas ele estava perdido em divagações. Após um longo tempo, Gabriel tentou expor novamente sua visão sobre o documento.

- Como disse para Vossa Excelência, o relato é fantasioso demais e...

Os olhos do idoso emanavam uma chama selvagem, pareciam os de um demente. Isso deixou o linguista assombrado. O vizir correu até um armário e ao retornar carregava um volume bizarro. Um tomo de aparência milenar, encadernado em couro escuro e mal cheiroso. O legislador pousou a coisa sobre a mesa e sem entender o motivo, o rapazote se afastou até as costas estarem firmemente coladas no respaldar. Olhando para o livro, cheio de temor, Gabriel escutava a voz excitada do vizir.

-Esse tomo fala sobre demônios e espíritos que vivem desde antes do homem existir. Coisas presas sobre as ondas por medo dos vapores lançados pelas estrelas. Essas criaturas só podem escapar de sua prisão no abismo quando uma configuração certa dos astros cessa o poder carcereiro o qual lhes domina. Baseado neste texto recuperado das ruínas, posso afirmar que em breve o horror será solto sobre o mundo por mais uma vez!

O tradutor olhou para a figura do idoso com puro medo. Ele temia pela sanidade do vizir.

-Mas Excelência, não acha que possa estar presumindo coisas? É apenas um texto de fantasia, uma fábula sinistra.

Um esgar de desdém invadiu o semblante de Almir e sua voz pareceu encavernar.

-Não é fabula alguma! A data prevista para o último alinhamento coincide com outros documentos!

Ligando um aparelho de leitura pousado sobre a mesa, o vizir atraiu a visão do jovem para uma imagem capturada pelos soldados. A visão fez o maxilar de Gabriel tombar ante o horror.

Uma gigantesca pilha de ossos humanos coberta pela neve cercava uma escultura. O ser retratado era semelhante aos escafandristas descritos no texto traduzido, apenas sua cabeça era diferente do descrito. Era uma criatura semelhante um polvo ou lula disforme.

A imagem trouxe desconforto ao rapaz. O vizir voltou a falar.

- Percebe? Em poucos meses um mal sem par que arrasou o maior império do ocidente séculos atrás retornará.

- O que faremos, Excelência?

Olhando no fundo dos olhos do jovem que mesclava ânsia e medo, Almir decretou.

-Vamos à guerra e que Alá nos ajude!
 
Ignorando os medos e sonhos que dominam os tripulantes da morosa nau em sua marcha rumo ao lar, as estrelas marchavam para tomar seus assentos e liberar o mal sobre o mundo.
FIM
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 10/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
Código do texto: T4877385
Classificação de conteúdo: seguro
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