Reclusão

(J.C Lemos)

There's someone inside me that softly kills everyone around
They don't know they're dead to me, cause intent never makes a sound

-Anberlin
 
Dizem que a noite é escura e cheia de terrores. Há quem não acredite, mas hoje mesmo, estou prestes a presenciar a verdade por trás disso.

Sei disso porque estou olhando pela janela agora. Minha cadeira de madeira range com o mais leve movimento, e o vento, uma suave brisa, é o maestro da noite, soprando uma melancólica melodia, enquanto no bailar, minhas alvas cortinas dançam graciosamente.

O homem, um rapaz alto e de leves feições, aproxima-se mais uma vez do velho ponto de ônibus. O poste mais próximo lança uma tênue luz amarelada ao redor. A mulher o percebe se aproximando, esboça um sorriso simpático e mexe os lábios em um silencioso “boa noite”.

Não é de seu feitio se descortês, ele responde e sorri. Vejo-o fazendo um sinal com os dedos, batendo-os nos pulsos, dirigido à mulher.

– São 21:15. – a ouço responder.

– Uma bela noite para morrer. ­– ele insinua.

Sem suspense ou qualquer tentativa de reação: é assim que o rapaz faz.
Desesperada, vejo-a tentando correr e gritar, mas as fortes mãos do homem tapam sua boca e o grito morre ali mesmo, com uma seringa sendo inserida na nuca, e seu corpo despencando.

Eu poderia gritar, pular a janela e ajudar a pobre garota, poderia ligar para a polícia... mas não farei nada disso. Sou uma pessoa correta, veja bem, porém, há beleza no que o rapaz faz. A preparação, a escolha, o ataque. Tudo é bem planejado, “limpo” e correto. Sem vestígios, nem pistas. É assim que os profissionais trabalham.

Ao longe, vejo um farol iluminando a estrada. Com a mulher desacordada nos braços, observo-o desaparecer no matagal.

O ônibus para, descem os passageiros, e novamente o veículo segue viagem. As pessoas se dispersam e o soturno e mortal silêncio cai como uma pesada nuvem. Tenho a ligeira impressão de estar sendo observado e tento comtemplar além da escuridão. Vejo uma criatura com corpo de homem e olhos de besta. O sangue, tingindo seus braços e mãos, denuncia suas travessuras. Tirando o foco de sua arte, ela me mira e dá um largo sorriso rubro.
Eu não retribuo, não é aconselhável incitar este tipo de comportamento.

Sinto que já vi demais por uma noite. Fecho a janela, cubro-a com a cortina e deito-me, pensando quando irei novamente prestigiar o belíssimo trabalho que o rapaz faz.

Antes de dormir, uma velha frase me vem à cabeça: “Dizem que os olhos são os espelhos da alma”. Eu discordo, penso que seriam mais como janelas.
 
***

– Amor? – beijava-lhe o pescoço enquanto sussurrava.
– Ahn? – Acordou assustado. Os olhos vermelhos ardiam devido à noite mal dormida.
– Está na hora de acordar. Você chegou tão tarde ontem. – A luz do sol iluminava seus cabelos loiros e davam-lhe certo ar angelical.
– Cheguei tarde no ponto e perdi o ônibus. – As palavras saiam sofridas. Cada tom era uma badalada infinita chacoalhando a cabeça.
– Tudo bem, – ela se levantou em um pulo de gato e postou-se a frente dele. – vamos descer e tomar café?
– Hoje não, amor. – Sentia um embrulho no estômago, como se um buraco crescesse o devorando de dentro para fora. – Acho que comi algo noite passada que não me fez muito bem.

 
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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 09/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
Código do texto: T4876058
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