O CONTORCIONISTA
 
   Quase não comia, ensaiava cerca de oito horas diárias os números para o circo itinerante onde trabalhava.

 Ao chegar no trailer, que era sua casa, à noitinha, degustava sempre seu pãozinho dormido e duas canecas de vinho tinto seco. Levava essa vida pacata, disciplinada. Seu corpo era sua religião, seu ganha-pão.


   O dono do circo, afeito à estranhezas, resolveu que armariam a lona na quadra de esportes de uma grande favela, numa grande metrópole, para tal, tinha que tomar certas atitudes, como conversar com a associação dos moradores e falar com o Bambambam do morro, para ter sua permissão, e  para intermediar a difícil missão escalou, ele mesmo, o contorcionista, que tinha um caso com a mulher de seu patrão.

 Uma mulher linda, por quem era apaixonado, porém, ela nunca deu esperanças de um dia ficarem definitivamente juntos.. Ele gostaria de fazer outros trabalhos para complementar seu orçamento, mas gostava da vida nômade que levava e havia, logicamente, uma grande motivação: os momentos de extrema alegria ao lado da mulher amada.

 
   Em segundos, cogitou a hipótese do marido ter descoberto tudo e por esta razão tê-lo enviado a uma missão difícil, quase suicida. Quis desistir de tudo, mas tinha uma atração enorme pelas situações excêntricas, inusitadas, inusuais, perigosas. Decidiu pagar para ver.


 No dia seguinte às quinze horas, meio ressabiado, foi ter ao pé do morro uma conversa com os representantes da associação dos moradores, que acatou e aplaudiu a iniciativa e prontificou-se a encaminhá-lo imediatamente ao Bambambam, pois toda decisão partiria dele.
Percorreu um longo caminho por entre ruelas, caminhos sujos, sem saneamento ( esgoto a céu aberto) e estreitos, passava por dentro de residências sem pedir licença e os moradores nem se incomodavam, estavam em constante exposição das suas intimidades, também não tinham noções básicas de higiene.

Mas as casas até o meio da ladeira, possuíam piso frio, eletrodomésticos novos e algumas parafernálias com tecnologia de ponta. Subia e descia escadas feitas à mão em barrancos, para novamente passar por dentro de barracos eternamente em construção. Olhou para cima e não viu poste, nem iluminação de rua; mais para cima ficou sabendo que a água só chegava uma vez por semana. Teve contato com pessoas quase miseráveis, algumas com feridas, mordidas de bichos, mas estranhamente felizes, não sabe por que, comparou mentalmente a favela e o corpo da metrópole às plantas parasitas, que se proliferam com velocidade, sem controle e desordenadamente a explorar e consumir tudo de bom que o ambiente possa oferecer. 

  Chegou à casa do chefão com certo medo,

pois foi recebido com desconfiança e seus seguranças o circundavam andando vagarosamente.


  Espantou-se com o luxo dos móveis e dos materiais de construção, era uma mansão! 

   Ficou de pé. Ao final da conversa, receberam e aceitaram muito bem a ideia, só acertando os dois dias de apresentação, afinal, um circo inteiro nunca havia subido o morro, e quem não gosta de circo?! Seria uma oportunidade para todos, principalmente das crianças de conhecerem um mundo mágico, quase irreal e ideal de fantasias. Sem querer, olhou para um recinto da casa e viu um homem depositando num cofre, grande quantidade de dinheiro, desviou o olhar antes que alguém percebesse. Tinha paixão pela vida e não queria morrer à toa.


   O transporte foi trabalhoso, mas os próprios habitantes curiosos, ajudaram na montagem do circo. Chegou o primeiro dia de espetáculo e todos ficaram maravilhados com o que viram: mágicos, palhaços, domadores, bichos, equilibristas, atiradores de faca, músicos.


 Ao fim do evento, foi para o trailer e casualmente pensou no dinheiro que viu sendo guardado no cofre. Pensou como seria sua vida com aquele montante e que poderia fugir com seu amor para um lugar distante. Lembrou-se do ditado: " ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão!". Não. Não podia fazer isso, sua consciência doeria, além do mais seria muito arriscado, mesmo assim pegou um papel e desenhou tudo o que vinha à memória do interior e exterior da casa do Bambambam.

De súbito, decidiu por seu plano em prática e nem dormiu naquela noite. No começo do dia, passou por sua cabeça o Rap debochado que o segurança estava cantando, continha números e podia ser a combinação que abriria o cofre. Ia entrar na casa por um buraco, alguma grade ou basculante. Aproveitaria o descuido na hora do espetáculo, guardaria a féria e voltaria para fazer o seu número no circo.


 Foi à noite e percebeu três homens encapuzados e armados guardando a habitação. Não podia nem queria desistir ali. Viu uma pequena fresta, uma ventilação ao lado direito,

e Deus estava a seu favor, escutou tiros de fuzil bem próximos, os homens correram em direção e confrontaram-se com a polícia. Entrou com facilidade pela fresta, passou primeiro os dois braços juntos, a cabeça e comprimiu-se para passar o resto do corpo, pois estava acostumado a permanecer por horas na mesma posição em caixinhas pequenas.

 Chegou ao cofre e com alegria e batimentos cardíacos acelerados, constatou que a combinação dos números do segredo estava correta.

Pôs as cédulas num saco preto de lixo, passando-o pela fresta, para finalmente sair. Levou tudo e ninguém viu. Só uma coruja, no galho da árvore. Voltou ao trailer e ao circo a tempo de atuar, dando tudo de si e foi, por isso, aplaudido de pé por dez minutos.

Disse à amada, com alegria nos olhos, que precisaria viajar e perguntou se ela gostaria ir com ele. Secamente ela respondeu negativamente e sem hesitar.


A expressão de felicidade em seu rosto se desmanchou, desviou o olhar do olhar dela, mirou o chão e... Bem, restou fugir dali naquela hora, pegando rápido seus pertences, entrando pelas casas, descendo escadas pelos barrancos, percorrendo o caminho de volta. Enfiou-se no primeiro bueiro que encontrou pelo caminho

e foi sair, sem ser notado, depois de horas, numa rua principal, quase de manhãzinha.



 O Bambambam, que assistiu a todos os espetáculos, constatou o roubo no dia seguinte. Achou que tivesse sido cometido pelos três seguranças, mortos no confronto com a polícia, que teria levado a féria. Quanto a isso, não tomou atitude alguma, pois poderia servir posteriormente para uma troca de favores.



Extraído do meu primeiro livro, Gauche, a estranheza.

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LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 08/07/2014
Reeditado em 18/01/2017
Código do texto: T4874258
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