RESSACA
Mandaram-nas olhar para o horizonte. Estavam todos preocupados com elas, pareciam querer marear.
O passeio foi planejado pelos dois amigos por semanas. Eles pretendiam surpreender duas meninas que haviam conhecido. O tio do Gustavo possuía uma Ferreti 40 pés. Uma beleza. Com a condição de que seus dois marinheiros sempre estivessem à bordo, o tio emprestava a lancha, mas tinha que ser agendado com antecedência. Rodrigo ficou encarregado de monitorar tempo e temperatura nos “sites” de meteorologia e de providenciar os víveres. Esqueceu do Dramin e a travessia pelo Golfão Maranhense se tornara complicada. Ir de São Luiz à Alcântara nunca é fácil, pela primeira vez, numa manhã de setembro, quase outubro, se tornou particularmente difícil.
Gustavo convidou Aimê e Rodrigo ficou com a Maria. Ambas com a cara da terra, com o autêntico sorriso mestiço do interior do Pará. Colônia de São Pedro, treze horas de barco de Santarém. Região de águas relativamente calmas, nunca tinham experimentado travessia igual a esta do Maranhão. Haviam ido a Sâo Luiz, atrás de vida melhor. Em Belém o pai da Aimê as acharia.
Gustavo e Rodrigo, filhos diletos da elite local, frequentavam o Bar do Nelson, na Praia do Calhau, e tinham todas as benesses de sua condição social. Queriam festar no meio da cidade fantasma, por detrás das ruínas e das meninas. Acabou que não foi uma boa idéia.
As meninas passaram muito mal e, posteriormente, em terra, não quiseram saber nem da comida, nem do álcool e muito menos da festa. Gustavo perdeu a paciência e a mão, Aimê bateu a cabeça em uma pedra e lá ficou com os ólhos esbugalhados e o cabelo ensopado em sangue. A Maria não parava de gritar e Rodrigo tapou-lhe a cara com tanta força que a menina desmaiou. Assustados, os amigos juntaram todas as coisas e depois jogaram os córpos em um poço mal coberto por galhos, folhas e algumas tábuas podres. Primeiro a Aimê e depois a Maria. O corpo de uma amorteceu a queda da outra.
Para os funcionários do tio, disseram que as meninas iam ficar em terra. Aparentemente, por terem passado mal na ida, desistiram da volta. Os marinheiros, acostumados de longa data com estas festinhas, não estranharam. Estas meninas sempre acabam ficando pelo caminho.
Mas Maria não estava morta. Acordou em um lugar escuro, sobre o corpo da amiga inerte e chorou. Berrou até perder a voz, mas no meio da madrugada não foi ouvida. Demorou uns dois dias para cair uma bola lá e elas serem retiradas. Maria ficou inteira, mas completamente apavorada. O pavor que experimentou apagou-lhe a memória e todos achavam que por não verem as tábuas, os galhos e as folhas, elas caíram no poço por conta delas mesmas. Uma fatalidade. Sorte de uma, azar da outra. Após três dias no hospital da Universidade Federal do Maranhão, teve alta e saiu sem rumo. Perdera a memória e a amiga, de cujo enterro nem ficou sabendo. Maria perambulou pelas praças e avenidas, depois perambulou pela vida, levando consigo um pesadêlo que não entendia.
Nesse meio tempo, Gustavo e Rodrigo foram para Orlando e na volta, quase que direto, para a faculdade em Sâo Paulo. Tinham passado no Vestibular. Um no Mackenzie e outro na GV. Tudo novo e, com tanta novidade, quem tem tempo para lembrar daquela manhã em Alcântara. Nunca mais.
Mesmo em escolas e turmas diferentes, os amigos sempre se encontravam, se reuniam para contar vantagem e fazer bagunça, ou na Major Sertório ou naquela Boite no subsolo da Rua Sete de Abril, quase Praça da República. São Paulo não para, oferece todo tipo de diversão e o Brasil inteiro vem para protagonizar. Uns com o papel passivo e outros para o desfrute da variedade de opções.
Rodrigo era assiduo frequentador da Rua Sete de Abril. Gostava das meninas e dos shows. Sempre deliciosas surpresas, peladas, ao acender abrupto das luzes coloridas. Garçons discretos e bom atendimento com mesas mal iluminadas. Tudo que se pode esperar. Mesmo assim, Rodrigo sentia saudade da cor da sua gente. Em São Paulo as pessoas pareciam doentes, verdes até. Faltava-lhe a cor do Norte. Apenas no último semestre de seu curso é que encontrou. Puro acaso.
Maria acabou chamada para a mesa sem ser reconhecida. A vida e a maquiagem lhe subtrairam a timidez e lhe deram outros traços. Mais tarde, no Hotel perto do Viaduto Martinho Prado, Maria gritou. “O que foi?”... “Gozei”, disfarçou. Lembrara-se de tudo, das feições e das pessoas, de cada detalhe e puxou conversa. Já que a fortuna lhe havia sorrido, quis que lhe mostrasse os dentes. Tinha encontrado um, queria os dois. Esperou pacientemente, até ser íntima do Rodrigo, que passou a frequentá-la regularmente.
Um dia, ela os viu juntos e prontamente reconheceu Gustavo. Os destinos estavam selados. Maria convenceu outras duas meninas do lugar a participarem de uma suruba com aqueles dois rapazes e todos foram para o apartamento do Rodrigo. Duas horas de todas as posições possíveis lhe pareceram uma eternidade, mas Maria soube esperar até que os rapazes ficassem inertes de cansaço.
Com toda a calma do mundo matou a todos. Não podia deixar testemunhas. Com uma navalha, cortou de pronto três jugulares. Todos estatelados na cama. A quarta morreu no chuveiro, sem saber.
Maria se lavou, se vestiu, apanhou o dinheiro de todos, alguns objetos de valor e saiu dirigindo o Toyota do Rodrigo, daqueles com vidros incrívelmente escuros. Calmamente, esperou que o porteiro acionasse o portão automático, deu dois toques na buzina e sumiu na madrugada.