266-CLAUSTROFOBIA-
Abriu os olhos e sentiu a escuridão. Nos primeiros instantes de volta à consciência, apenas sentiu o negrume total, quase palpável. Ainda tonto, procurou virar-se. As mãos, cruzadas sobre o peito, estavam dormentes. Na tentativa de esticar os braços, bateu as mãos nas paredes macias do exíguo cubículo. Não conseguiu virar-se. Só com muito jeito distendeu os braços. Um cheiro esquisito invadiu-lhe as narinas: penetrante olor de folhas velhas, flores murchas. Apalpou ramos e pétalas. Novamente esbarrou nas paredes do local em que estava encerrado e sentiu a maciez do tecido sedoso. Um balanço ritmado, seguido de pequenas inclinações para um lado e para o outro, evidenciam estar sendo carregado. De repente, todas as sensações levaram a uma conclusão lógica. Estou num caixão!. Mas...Não estou morto! Estou vivo... Rápidas apalpadelas confirmaram a situação. Um berro de horror ecoou no exíguo recinto, abafado pelas folhagens e flores e pelo tecido estofado que cobria internamente o esquife.
O féretro seguia a passo lento. A estreita rua era pequena, tomada pela multidão que o acompanhava. Os calçados dos acompanhantes resvalam pelas pedras arredondadas do calçamento antigo. Os seis homens que carregam o pesado esquife sentem alguma dificuldade e o revezamento é constante. Balança o caixão, a mais luxuosa peça que o Major Mascarenhas conseguira adquirir na funerária de Goiânia. O peso descamba ora para a esquerda, ora para a direita, quando as fortes manoplas são substituídas nas alças do ataúde. Na frente, vai o Monsenhor Isidoro, de paramento roxo, ladeado por dois acólitos, portadores de vela e turíbulo, orando em voz alta, no que é acompanhado pela maioria.
No esforço de se livrar da prisão maldita, Afonso grita até perder a voz. Debalde. A ladainha das orações abafa qualquer ruído que venha do caixão. Movimenta-se como pode. Joga-se de um lado para outro, mas tudo em vão. Arranha o tecido da forração, rasgando-o em tiras até onde alcançam suas mãos. Macera talos, pétalas, folhas, aumentando ainda mais o odor de podridão e morte. O oxigênio escasseia no interior e o homem sente-se exausto. Seus movimentos diminuem ao mesmo tempo que o terror alcança níveis inauditos.
O major Mascarenhas e Dona Guilhermina acompanham o enterro do filho, acomodados no assento traseiro do Ford-29, dirigido com cuidado pelo Zé Lampreia, chofer de praça ajustado para aquela contingência. O major está impávido, o rosto sulcado de rugas profundas. Olha diretamente à frente, por sobre as cabeças do povo. Recolhido em seu mutismo, não dá mostra de qualquer emoção. Dona Guilhermina, ao lado, se desfaz em lágrimas, soluços e gemidos. Esconde o rosto em diáfano lenço, usado para enxugar as lágrimas e disfarçar seus lamentos.
Quem me dera pudesse ter meu filho de volta. Tão quieto, tão tranqüilo...Nunca ouvi dele uma queixa, um lamento. Sempre às voltas com seus livros...Como gostava de ler...Ai, meu Deus, por quê? Por que logo com Afonso?
A fúnebre procissão entra pelo cemitério. A luz do entardecer alonga as sombras de anjos, cruzes e colunas-partidas por sobre os túmulos. O mausoléu da família é o mais imponente de todo o campo santo, situado no final da aléia principal, à esquerda do cruzeiro de madeira. Na frente do mausoléu está uma armação de metal sobre a qual o esquife é colocado para a cerimônia derradeira, as despedidas e o panegírico usual de Monsenhor, dedicado aos mais ilustres do local.
Dona Guilhermina se desmancha em lágrimas de dor e saudade. O marido a sustenta com seu braço forte.
— Quero vê-lo ainda mais uma vez. A última vez. — Ela pede, sussurrando. O major determina ao filho Hipólito que abra o caixão. Com alguma dificuldade, usando a pequena chave do cadeado dourado, Hipólito destranca a tampa e abre o esquife.
A imagem tétrica de Afonso, iluminada parcamente pelo entardecer sombrio, salta do caixão como que movida por potente mola de aço. O rosto está coberto por estrias de sangue, dos arranhões causados pelo desespero do morto-vivo, no afã de escapar da nefanda prisão. Os cabelos desgrenhados. Os olhos muito brancos em covas escuras brilham com intensidade jamais imaginada. Flores maceradas e folhas esmagadas saltam com o movimento inopinado do falso defunto, atingindo a mãe, o pai, o padre e todos os que tinham se aproximado para o último adeus.
A confusão se estabelece entre a multidão. A devotada mãe dá um grito e desmaia, no que é amparada pelo marido. O major, ainda que muito assustado, toma a mulher nos braços e afasta-se, rumo ao portão do cemitério. Monsenhor Isidoro e Hipólito, o irmão, são as únicas pessoas que se adiantam para ajudar o homem que se levanta com dificuldade, saindo do esquife. Correria, gritos, tropeções, passadas por sobre os túmulos. O tumulto se instala no jardim da morte.
Nada seria como antes, na família do major Elpídio Mascarenhas. A começar pelo próprio major. Homem de fibra, herói da guerra do Paraguai, de cujas batalhas voltara coberto de glória e de doenças. A glória ficou apenas com ele mesmo, enquanto as doenças estranhas do pantanal e das mulheres que acompanhavam os batalhões, foram transmitidas por herança ao seu filho Afonso, gerado temporão. Homem de atitudes enérgicas, determinado e senhor de sua vida (e das vidas de todos os que o rodeavam), após o acontecido com o filho, perdeu toda a vontade de viver. Em poucos dias, passou a ser a sombra deformada e caricata do poderoso fazendeiro que antes fora.
Dona Guilhermina — ou Dona Mina, no recinto do lar — , não suportando as dores, não discernindo qual o pior, perder o filho ou vê-lo levantar-se do caixão, ficou louca. Endoidou no ato. Louca de pedra, com acessos de violência: então atacava as criadas, quebrava objetos, rasgava suas próprias roupas. Foi internada, pelo filho mais velho, em distante hospício no interior de Minas Gerais.
Afonso, se já tinha seus tiques e manias, aliados aos problemas congênitos de saúde, ficou morbidamente introspectivo e, voltando a morar na fazenda do pai, nunca mais dali saiu...Nem mesmo depois de morto.
Tornou-se claustrófobo. Nunca mais ficou em recinto fechado. Se antes não gostava de permanecer dentro de casa, agora evitava os interiores de qualquer construção. Circulava pelos amplos varandões que cercavam a casa-sede da Fazenda Abre-Campo, onde, entre redes, sofás e poltronas almofadadas, passa dias e noites. As refeições são servidas num canto da varanda próxima à cozinha. As noites, passa-as insone, sentado, lendo à luz de velas e lampiões.
— Hipólito, onde está sua mãe? E o Afonso, por que sumiu? — Senil prematuramente devido ao choque, o major passou a morar definitivamente no palacete na cidade.
— Estão em tratamento, papai. Vou trazer Afonso para almoçar conosco qualquer dia desses. Mamãe vai voltar logo para casa. — Promessas vãs do filho mais velho, jamais cumpridas.
Hipólito, depois de providenciar o internamento de Dona Mina, voltou sua atenção para a política, dedicando a maior parte do tempo ao exercício do mandato de deputado estadual. A fazenda era administrada por competente capataz, que o eximia de presença constante.
Nunca houve uma explicação para o estado de morte aparente de Afonso. Não se submeteu a nenhum exame médico e exilou-se na fazenda. Uma única vez foi visitado pelo Dr. Verdi, clínico da família, mas recusou-se a ser examinado.
— Tenho a certeza de que sua saúde física está boa. O que quer que tenha causado a morte aparente, já passou. Mas as manias estão tomando conta dele. — Num breve relatório, o médico colocou Hipólito ciente do estado físico e mental do irmão.
Não demora muito, vou ter de interná-lo também, junto com mamãe. Hipólito pensa nas soluções mais práticas que a fortuna da família possa financiar.
O medo de ficar confinado em ambientes fechados chegou ao páramo. Afonso tinha consciência de seu mal, da sua psicose. Claustrofobia. É assim que médicos e psicólogos classificam esse pavor. Não tem remédio, é um estado com o qual tenho de conviver.
Afonso sempre gostara de ler. Agora, lê por compulsão. O que era ante um prazer, transformara-se numa obsessão. Antes, lia de tudo; agora, está seduzido por livros de psicologia (ligados aos medos, às fobias), romances, novelas e contos de terror ou de horror. Histórias diabólicas de mistério. Obcecado por histórias de gente enterrada viva. Fantasmas, lobisomens e vampiros povoam sua fantasia. Lê e relê as histórias de Allan Poe, de Maupassant, de Stephen King, Brahm Stocker e de todos os especialistas em histórias macabras.Estuda as fobias, procura a raiz de seus medos.
Recebe os livros na fazenda. Livros que compra às dezenas, encomendadas às livrarias de São Paulo e Rio. Chegam periodicamente caixas e caixas de livros. As estantes — colocadas nas largas varandas — transbordam de volumes.
A morte do pai, o internamento da mãe, a carreira política do irmão deixam Afonso sozinho na fazenda. Nada mais importa ao esquálido e pálido homem, figura sinistra e insone, vista todas as noites perambulando pelos varandões, carregando um lampião na mão direita e um livro na esquerda.
Não se interessa por mais nada senão ler, ler, ler. Dia e noite. Não dorme, com medo de não acordar. Passa as noites lendo sob luz de lampiões, velas ou lamparinas. Descuidado, amontoa volumes por toda a parte. As varandas estão cheias de livros. Como não dorme à noite, suas leituras são entremeadas de longos cochilos — quer de dia, quer de noite.
Ninguém sabe como aconteceu. Raimundo, o capataz, tenta explicar o pavoroso incêndio que destruiu a sede da fazenda: talvez seu Afonso, em um dos seus cochilos entre as leituras noturnas, tenha esbarrado no lampião, que, caindo, derramou o querosene nas pranchas da varanda, sobre os livros, e o fogo alastrou-se com rapidez.
Tudo foi queimado, o fogo alastrando-se pela madeira seca do assoalho, pelas almofadas, livros, móveis de vime e cortinas, enfim, tudo material altamente combustível. O pessoal da fazenda não teve meios de combater o incêndio, que correu livre. Labaredas ergueram-se à altura de dez metros, numa voracidade incrível. Não houve tempo sequer de retirar móveis ou qualquer objeto do casarão. As três empregadas que dormiam nos quartos antes ocupados pela família, mal tiveram tempo de se evadir, pulando janelas e vestidas apenas de camisolas. Em poucos minutos o fogo atingiu o engradamento do telhado, que veio abaixo com estrondo, entre estalos e rugidos das chamas. Não sabiam em que ala das varandas estava o patrão.
Afonso foi incinerado na enorme fogueira. O que restou do corpo apenas enche um pequeno baú de metal, que Hipólito não se preocupou em enterrar. Deixou-o abandonado em uma dependência esquecida da fazenda.
ANTONIO ROQUE GOBBO
S.S.PARAÍSO, 25 DE JANEIRO DE 2004-
— CONTO # 266 DA SÉRIE M ILISTÓRIAS