O LADRÃO DE GALINHAS
Ele odiava aquelas galinhas. Mas talvez as pobres aves não fossem mais que a âncora do seu ódio por aquela vida miserável que levava, tendo que suportar a ignorância da mãe, a estultice do irmão mais velho, a indiferença da irmã, a mediocridade e a pobreza do ambiente em que vivia, e do qual, por mais que lutasse, não conseguia escapar.
Seu PAI morrera quando ele tinha doze anos. A mãe, analfabeta e sem qualquer recurso para sobreviver ─ o pai sequer deixara uma pensão do INSS, pois nunca trabalhara com carteira assinada ─ tinha que lavar e passar montes e montes de roupa para sobreviver. E era ele quem tinha que sair com aquelas enormes trouxas de roupa para entregar. Era o fim dos anos cinquenta e ninguém ainda condenava o bullying como forma de degradação das pessoas. Garotos como ele eram naturalmente espezinhados e maltratados pelos moleques mais fortes e mais velhos. Para ele até que foi bom, porque aprendeu a se defender . Depois de cortar dois ou três moleques atrevidos com um canivete, os outros aprenderam que não deviam se meter com ele.
O maior problema dele era em casa. A irmã, logo que se tornou mocinha, deu um jeito de escapar. Envolveu-se com o primeiro namorado fixo que arrumou e ficou grávida. Naquele tempo a gravidez precoce não era tão comum como hoje. Era o caminho mais próximo para o casamento. Assim ela casou e foi embora.
"Já foi tarde," dizia ele. A irmã era uma chata que vivia reclamando de tudo e não ajudava em nada. Embora não fosse analfabeta como a mãe, dela não diferia muito em termos de manias. Era briga todo dia com ela. Mas pelo menos, agora ele tinha uma cama só para ele, pois durante toda a sua vida tivera que dividir com o irmão mais velho uma imunda enxerga de molas, onde o velho colchão de capim parecia mais um criadouro de pulgas do que uma base onde ele podia descansar os jovens ossos já tão cansados.
Sim. Porque ele trabalhava muito. Além de entregar as roupas que a mãe lavava, era ele quem sempre tinha que ajudar nas tarefas domésticas. Porque sempre ele? Essa era a causa maior da sua ira. Porque sua mãe nunca pedia nada ao irmão mais velho para fazer alguma coisa? O cara era um folgado. Vivia a vida toda lendo gibi. Embora já tivesse mais de dezoite anos, idade suficiente naquele tempo para alguém trabalhar, o cara não queria saber de nada. Só ler gibi e jogar bola. Ele não. Tinha quinze anos e desde que o pai morrera, mal tinha tido tempo de sair para brincar. Quando não precisava sair para entregar a roupa lavada, a mãe o mandava varrer a casa, dar milho para as galinhas, lavar aquelas horríveis panelas de ferro e alumínio, eternamente enegrecidas pela fumaça daquele horrível fogão de carvão que eles ainda usavam, e fazer outras coisas.
Oh! Vida desgraçada. Ele odiava, sim, tudo aquilo, como Cinderela deve ter odiado a sua vida antes de a fada madrinha aparecer e transformá-la em uma princesa. Mas para ele não havia fadas madrinhas. Nem sonhos de príncipes. Havia sim, demônios que viviam sussurrando coisas estranhas aos seus ouvidos. Coisas que ele, mesmo não sendo mais que uma criança, sabia serem ruins. Era sim, ainda inocente e ainda puro, mas já tinha noção de pecado. E aquelas coisas que seus demônios sussurravam eram horriveis!
Mas ah! seria tão bom se acontecessem. Principalmente ele se veria livre daquelas malditas galinhas. Ah! como ele odiava aquelas aves. Sua mãe criava galinhas no pequeno quintal do barraco onde viviam. Vendia os ovos e as vezes algumas das aves para os vizinhos. Era das fonts de renda da família. De dia ela ficavam presas num pequeno cercadinho de madeira e tela de arame que ela fizera no quintal, mas de noite, para impedir que os ladrões as roubassem, ela pegava as aves todas e trazia para dentro do barraco. Isso era feito todo dia.
E quem tinha que fazer isso era sempre ele. Todo dia, pela manhã, tirava as bichinhas do caixote onde elas eram postas á noite e levava para o improvisado galinheiro; e á noite, tirava do cercado e as acomodava embaixo do caixote, dentro de casa. Vários anos fazendo aquele ritual: de manhã tendo que lavar a sujeira que as galinhas deixavam no chão da cozinha; á noite, aquela correria atrás das aves para pegar, uma a uma, para levá-las para dentro.
Isso era o que ele mais odiava. Principalmente porque era sempre ele que tinha que fazer aquilo. Não se lembrava de uma única vez que a mãe tivesse pedido ao seu irmão para realizar aquela insana, odiosa e nojenta tarefa. Nem se importava muito com o fato de sua mãe dar sinais de que gostava mais do seu irmão do que dele. Se aquelas malditas galinhas morressem, ao menos, sua vida se tornaria mais tolerável. Seria já um grande consolo não ter que fazer aquela tarefa nojenta todos os dias. Ah! como ele odiava as malditas.
Odiava tanto que nem conseguia comer as canjas que
sua mãe fazia com elas. Nem os ovos, que eram a principal e única mistura mistura que eles tinham para comer.
O irmão não servia para nada, mas pelo mesnos os gibis que ele lia acabaram servindo para alguma coisa. O idiota gostava de estórias de terror. Um dos gibis contava a história de um sujeito que morava numa rua, em frente a uma praça infestada de pombos. Os danados pássaros sujavam tudo em torno. Cagavam em cima dos carros, sujavam a roupa lavada, faziam ninhos nas cumeeiras das casas, emporcalhavam os bancos das praças e tudo o mais, carimbavam a cabeça das pessoas que sentavam neles. Um dia o sujeito resolveu dar um jeito nos pombos. Comprou uns quilos de milho e misturou-os com veneno de rato. Depois alimentou os pombos com eles. Centenas apareceram mortos no dia seguinte. Todo mundo gostou de se ver livre dos incômodos pássaros. A estória terminava de uma maneira bem bizarra. Os pombos sobreviventes resolveram se vingar e invadiram a casa do sujeito e o mataram a bicadas. Igual áquele filme do Hitchcock. Depois arrancaram o coração dele e o levaram para o inferno.
Galinhas não voam, diziam os demônios que sussurravam ao ouvido dele. E são tão covardes que jamais pensariam em atacar alguém. E depois, aquilo era só um gibi. Uma estorinha besta.
Não foi difícil para ele conseguir o milho e o veneno de rato. Mas ele sabia que não podia exterminar todas as galinhas de uma vez. Teria que ser aos poucos. Dar o milho envenenado para elas em intervalos e para algumas a cada dia, de cada vez. Levou duas semanas para matar todas. Ninguém desconfiou.Todo mundo pensou que as aves tinham pegado uma doença.
Foi assim que ele exterminou as malditas galinhas e acabou, de vez com o motivo de seu ódio. Pois Junto com as galinhas, morreram também sua mãe e seu irmão. Porque os dois, durante uma semana não deixaram de comer os ovos que as bichinhas botavam. E também comeram canja feita com uma das aves mortas. Morreram, dolorosa e lentamente, sem que nenhum médico conseguisse diagnosticar a causa de suas mortes. Infecção provocada por alimentos estragados, foi o que todo mundo acreditou.
Depois do enterro da mãe e do irmão, ele morou alguns meses com a irmã casada. Mas um dia o bairro foi surpreendido com a notícia de que ele havia sido morto numa tentativa de roubo. Ele invadira o quintal de um japonês para roubar, e proprietário meteu fogo nele. Dizem que ele estava querendo roubar algumas galinhas do japonês.
Ele odiava aquelas galinhas. Mas talvez as pobres aves não fossem mais que a âncora do seu ódio por aquela vida miserável que levava, tendo que suportar a ignorância da mãe, a estultice do irmão mais velho, a indiferença da irmã, a mediocridade e a pobreza do ambiente em que vivia, e do qual, por mais que lutasse, não conseguia escapar.
Seu PAI morrera quando ele tinha doze anos. A mãe, analfabeta e sem qualquer recurso para sobreviver ─ o pai sequer deixara uma pensão do INSS, pois nunca trabalhara com carteira assinada ─ tinha que lavar e passar montes e montes de roupa para sobreviver. E era ele quem tinha que sair com aquelas enormes trouxas de roupa para entregar. Era o fim dos anos cinquenta e ninguém ainda condenava o bullying como forma de degradação das pessoas. Garotos como ele eram naturalmente espezinhados e maltratados pelos moleques mais fortes e mais velhos. Para ele até que foi bom, porque aprendeu a se defender . Depois de cortar dois ou três moleques atrevidos com um canivete, os outros aprenderam que não deviam se meter com ele.
O maior problema dele era em casa. A irmã, logo que se tornou mocinha, deu um jeito de escapar. Envolveu-se com o primeiro namorado fixo que arrumou e ficou grávida. Naquele tempo a gravidez precoce não era tão comum como hoje. Era o caminho mais próximo para o casamento. Assim ela casou e foi embora.
"Já foi tarde," dizia ele. A irmã era uma chata que vivia reclamando de tudo e não ajudava em nada. Embora não fosse analfabeta como a mãe, dela não diferia muito em termos de manias. Era briga todo dia com ela. Mas pelo menos, agora ele tinha uma cama só para ele, pois durante toda a sua vida tivera que dividir com o irmão mais velho uma imunda enxerga de molas, onde o velho colchão de capim parecia mais um criadouro de pulgas do que uma base onde ele podia descansar os jovens ossos já tão cansados.
Sim. Porque ele trabalhava muito. Além de entregar as roupas que a mãe lavava, era ele quem sempre tinha que ajudar nas tarefas domésticas. Porque sempre ele? Essa era a causa maior da sua ira. Porque sua mãe nunca pedia nada ao irmão mais velho para fazer alguma coisa? O cara era um folgado. Vivia a vida toda lendo gibi. Embora já tivesse mais de dezoite anos, idade suficiente naquele tempo para alguém trabalhar, o cara não queria saber de nada. Só ler gibi e jogar bola. Ele não. Tinha quinze anos e desde que o pai morrera, mal tinha tido tempo de sair para brincar. Quando não precisava sair para entregar a roupa lavada, a mãe o mandava varrer a casa, dar milho para as galinhas, lavar aquelas horríveis panelas de ferro e alumínio, eternamente enegrecidas pela fumaça daquele horrível fogão de carvão que eles ainda usavam, e fazer outras coisas.
Oh! Vida desgraçada. Ele odiava, sim, tudo aquilo, como Cinderela deve ter odiado a sua vida antes de a fada madrinha aparecer e transformá-la em uma princesa. Mas para ele não havia fadas madrinhas. Nem sonhos de príncipes. Havia sim, demônios que viviam sussurrando coisas estranhas aos seus ouvidos. Coisas que ele, mesmo não sendo mais que uma criança, sabia serem ruins. Era sim, ainda inocente e ainda puro, mas já tinha noção de pecado. E aquelas coisas que seus demônios sussurravam eram horriveis!
Mas ah! seria tão bom se acontecessem. Principalmente ele se veria livre daquelas malditas galinhas. Ah! como ele odiava aquelas aves. Sua mãe criava galinhas no pequeno quintal do barraco onde viviam. Vendia os ovos e as vezes algumas das aves para os vizinhos. Era das fonts de renda da família. De dia ela ficavam presas num pequeno cercadinho de madeira e tela de arame que ela fizera no quintal, mas de noite, para impedir que os ladrões as roubassem, ela pegava as aves todas e trazia para dentro do barraco. Isso era feito todo dia.
E quem tinha que fazer isso era sempre ele. Todo dia, pela manhã, tirava as bichinhas do caixote onde elas eram postas á noite e levava para o improvisado galinheiro; e á noite, tirava do cercado e as acomodava embaixo do caixote, dentro de casa. Vários anos fazendo aquele ritual: de manhã tendo que lavar a sujeira que as galinhas deixavam no chão da cozinha; á noite, aquela correria atrás das aves para pegar, uma a uma, para levá-las para dentro.
Isso era o que ele mais odiava. Principalmente porque era sempre ele que tinha que fazer aquilo. Não se lembrava de uma única vez que a mãe tivesse pedido ao seu irmão para realizar aquela insana, odiosa e nojenta tarefa. Nem se importava muito com o fato de sua mãe dar sinais de que gostava mais do seu irmão do que dele. Se aquelas malditas galinhas morressem, ao menos, sua vida se tornaria mais tolerável. Seria já um grande consolo não ter que fazer aquela tarefa nojenta todos os dias. Ah! como ele odiava as malditas.
Odiava tanto que nem conseguia comer as canjas que
sua mãe fazia com elas. Nem os ovos, que eram a principal e única mistura mistura que eles tinham para comer.
O irmão não servia para nada, mas pelo mesnos os gibis que ele lia acabaram servindo para alguma coisa. O idiota gostava de estórias de terror. Um dos gibis contava a história de um sujeito que morava numa rua, em frente a uma praça infestada de pombos. Os danados pássaros sujavam tudo em torno. Cagavam em cima dos carros, sujavam a roupa lavada, faziam ninhos nas cumeeiras das casas, emporcalhavam os bancos das praças e tudo o mais, carimbavam a cabeça das pessoas que sentavam neles. Um dia o sujeito resolveu dar um jeito nos pombos. Comprou uns quilos de milho e misturou-os com veneno de rato. Depois alimentou os pombos com eles. Centenas apareceram mortos no dia seguinte. Todo mundo gostou de se ver livre dos incômodos pássaros. A estória terminava de uma maneira bem bizarra. Os pombos sobreviventes resolveram se vingar e invadiram a casa do sujeito e o mataram a bicadas. Igual áquele filme do Hitchcock. Depois arrancaram o coração dele e o levaram para o inferno.
Galinhas não voam, diziam os demônios que sussurravam ao ouvido dele. E são tão covardes que jamais pensariam em atacar alguém. E depois, aquilo era só um gibi. Uma estorinha besta.
Não foi difícil para ele conseguir o milho e o veneno de rato. Mas ele sabia que não podia exterminar todas as galinhas de uma vez. Teria que ser aos poucos. Dar o milho envenenado para elas em intervalos e para algumas a cada dia, de cada vez. Levou duas semanas para matar todas. Ninguém desconfiou.Todo mundo pensou que as aves tinham pegado uma doença.
Foi assim que ele exterminou as malditas galinhas e acabou, de vez com o motivo de seu ódio. Pois Junto com as galinhas, morreram também sua mãe e seu irmão. Porque os dois, durante uma semana não deixaram de comer os ovos que as bichinhas botavam. E também comeram canja feita com uma das aves mortas. Morreram, dolorosa e lentamente, sem que nenhum médico conseguisse diagnosticar a causa de suas mortes. Infecção provocada por alimentos estragados, foi o que todo mundo acreditou.
Depois do enterro da mãe e do irmão, ele morou alguns meses com a irmã casada. Mas um dia o bairro foi surpreendido com a notícia de que ele havia sido morto numa tentativa de roubo. Ele invadira o quintal de um japonês para roubar, e proprietário meteu fogo nele. Dizem que ele estava querendo roubar algumas galinhas do japonês.