225-A MULA SEM CABEÇA

Eleito prefeito de São Roque da Serra, Tonico Pimenta, professor aposentado e ex-inspetor federal de ensino, tratou logo de dinamizar as atividades culturais. Aliás, já na campanha eleitoral, por diversas vezes prometeu que esta seria uma prioridade de seu governo. Nos palanques, já bradava ao povo.

— Temos de aumentar a cultura de nossa gente. Mostrar a nossa inteligência serrana para o mundo. Nosso folclore é rico. Vamos lá, minha gente, abram as cabeças. O nosso lema será: “Com o prefeito Pimenta, a cultura aumenta!”

Na estrutura simplificada da prefeitura, nos idos da década de 1940, o secretário era o responsável pelo cumprimento das ordens do prefeito. Tonico Pimenta chamou o seu Alberto Moreira, o secretário da prefeitura.

— Seu Moreira, vamos criar uma semana do folclore de São Roque. Pense em alguma coisa,uma festa,uma quermesse, qualquer coisa assim. —O próprio prefeito não tinha idéia exata do que queria, mas o secretário apanhou a idéia no ar. Alguns dias depois, seu Moreira deu à luz a primeira elucubração sobre o assunto:

— Pensei nos contadores de causos aqui da cidade e do interior. O senhor sabe, todo mundo sabe duma história ou dum causo. Um concurso pra ver quem sabe a melhor história...

— Boa idéia, seu Moreira! Mas não vale mentira! Tem que ser história ou caso real. Acontecido.

O Concurso de Contação de Histórias de São Roque da Serra começou sério. Todo mundo sabia de causos, engraçados, tristes, famosos ou ignorados. Em dois ou três anos o concurso ficou famoso na região. Vinha gente dos arredores. Até da capital vieram pessoas para contar causos e tentar ganhar o prêmio de melhor contador de histórias.

Com o passar dos anos, a exigência quanto à veracidade das histórias foi sendo afrouxada. Houve um ano no qual o primeiro lugar (e o prêmio de duzentos cruzeiros) foi entregue ao Pedrim Mentira — e nem será preciso explicar que sua história era uma tremenda patarata. Engraçada, sim, bem contada. Mas uma lorota das melhores.

O causo que mais chamou atenção, no concurso de 1946, foi a história da mula-sem-cabeça, contada por Ramiro Costão.

"Foi certa ocasião, há muitos anos, cês se lembram, quando a Mula-Sem-Cabeça foi vista em diversos lugares, tanto aqui em São Roque da Serra como na região toda, nas cidades vizinhas. Muita gente viu o tal animal pavoroso, a tal mula que põe fogo pelas ventas, embora seja sem cabeça. Quem viu, sabe como é.

"Pois numa noite de sexta-feira tava eu e minha Filomena se apreparando pra deitar, quando ouvimo um escarcéu danado, vindo das bandas da Ponte Pequena, lá na parte baixa da cidade. Como ceis sabe, moro no final da rua da caixa d´água, ali naquela pracinha do alto, de onde a gente tem uma vista geral da cidade. Pois então.

"Ouvimo aqueles grito, vindo lá de baixo da cidade. Fiquei intrigado com o alarido. Abri a janela do quarto e nois dois — eu e a Filó — abrimos os ouvido morde escuitá o que se passava. Eu num distingui nada da barulheira, mas a Filó escuitou.

"— Tão gritando que é a Mula-sem-Cabeça!

"A noite tava escura, mas lá embaixo tinha um clarão, que nem uma fogueira de São João, QUE IA DE UM LADO PRO OUTRO! Então, fiquei atento e iscutei, sim, o vozerio do povo:

"— É a Mula! Tá empacada na Ponte! — E outros gritos assim.

"Aquela zoada mais o clarão me deixou curioso. Mas a Filó, que entende dessas coisas, foi logo dizendo:

"— Fecha a janela, Miro. Se ela subi na nossa rua, vai passá na frente de casa. Credo em cruz, Virge Nossa Senhora. — E assim falando, já agarrou o terço e começou a rezar.

"Aí que fiquei curioso mesmo. Fui pra sala da frente, e entreabri a janela. Filó veio atrás, me segurando, me avisando:

"— Miro, num óia a Mula não! Quem vê a Mula-Sem-Cabeça vira o maldito Tordilho Pinguela.

"— Tordilho Pinguela? — pergunta um dos ouvintes.

"— É, esse é outra assombração que vive pelas grotas das fazendas. Mas é outra história. — Ramiro responde e volta à sua narrativa.

"Encostei a janela, deixei só uma frincha, pra olhar disfarçado. A Mula já tinha desempacado e vinha mesmo subindo nossa rua. Um clarão que deixava a gente cego iluminava rua inteira. Num dava pra perceber o bicho. Mas lá vinha ela, resfolegando, zurrando, uma barulheira dos infernos. E o tal clarão, que não deixava ver nada. O barulho das ferraduras nas pedras da rua calçada era pavoroso. Quando tava mais perto, eu já tava vendo as chispas das ferradura que nem relâmpagos, a Filó encostou na folha da janela, fechou a fresta que eu tava olhando. Mas o clarão do fogo que saía da mula-sem-cabeça (ceis sabe que ela bota fogo pelas venta, mesmo sem ter cabeça), o clarão, como dizia, era tão grande, que alumiou a sala, passando pelas frinchas da porta e da janela. Aquela barulheira, os relinchos, o clarão que passava pelos buracos das portas e janelas, as faíscas, tudo me deixou com um medo danado. Confesso que fiquei horrorizado."

— Mas, cê num viu a assombração, Ramiro? — inquiriu, com ar severo, um dos ouvintes, que era jurado do concurso.

— Não, vê mesmo, eu num vi... Mas que ela passou ali, na frente da minha casa, tenho certeza.

— Então sua história não vale. É um causo sem prova provada. — Falou o que tinha jeito de ser jurado.

Uma velhinha, de aspecto suave e tranqüilo, gritou do meio da multidão:

— Mentiroso! Nem viu a mula e ainda tem coragem de contar essa lorota aqui na praça? Tá mentindo mais que o Pedrim Mentira!

Ramiro não se intimida. Enquanto mete a mão dentro do embornal que trazia dependurado nos ombros, vai finalizando seu causo:

— Eu sabia que ocêis num ia creditá. Mais num sô mentiroso não. Óia aqui...

Do embornal tirou uma ferradura enferrujada, que exibiu, levantando bem alto:

— ...a ferradura que caiu da pata traseira da Mula-Sem-Cabeça!

ANTONIO ROQUE GOBBO —

bELO HORIZONTE, 28 DE MAIO DE 2003

CONTO # 224 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/06/2014
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