221-MINHA DOCE VAMPÍRA
MINHA DOCE VAMPIRA
Prezaria imenso ignorar os terríveis eventos de que fui testemunha e deixar enterradas as lembranças das minhas investigações feitas a posteriori do que foi relatado pelo senhor Sheridan Lê Farnu, em sua noveleta “Carmilla”, onde, sob a forma de ficção, procurou dar à luz um dos mais estranhos casos de amor, posse e morte entre vampiros.
Tomo da pena movido exclusivamente pela preocupação em revelar algumas observações que julgo indispensáveis ao tratamento, à luz da ciência, do intrigante assunto. Ou seja, os vampiros e suas estranhas relações com os da sua própria estirpe e com aqueles que lhe estão próximos. Estes são, em última análise, os responsáveis por sua sobrevida, já que fornecem aos sugadores de sangue a essência da suas existências que se sobrepõem ao tempo.
Retomo aqui a narrativa do ilustre senhor Sheridan. Credito à falta de conhecimento das ocorrências posteriores o final feliz que deu ao encerramento de sua crônica. Os anos que se seguiram ao desaparecimento de Carmilla não levaram a paz e a tranqüilidade ao castelo de Estíria.
Na qualidade de médico, atendi Laura desde os primeiros sintomas de estranhas manifestações que estão além das explicações da ciência médica, e acrescento o relato de seu trágico final.
Antes de entrar na narrativa propriamente dita dos fatos, seja-me permitido fazer alguns esclarecimentos necessários. O antigo castelo onde aconteceram as estranhas ocorrências situa-se numa região misteriosa e remota. A província de Estíria pertence ao Império Austro-Húngaro, e fica ao sul de Viena. É uma “terra solitária e primitiva”, nas palavras da própria Laura. O castelo de Herr Joseph Mizildorf (este é o nome do pai de Laura) dista cerca de cinqüenta milhas de Gratz, a capital da província, e algumas poucas vilas se situam nas imediações. Situado ao sopé dos Alpes, cercado de florestas, está fora das rotas e dos caminhos transitados por viajantes.
Laura conta (e o senhor Lê Farnu registra apressadamente) que seu pai “serviu no exército austríaco até se reformar”. Deixa de ser registrada, entretanto, a origem da família Mizildorf. Era originária da pequena localidade de Mizil, às margens do rio Siret, a leste dos Alpes da Transilvânia, região famosa por lendas e histórias fantásticas. Rumo a Viena, dali saiu Joseph, filho da família Mizildorf, a mais importante da localidade. Um dia a ciência poderá definir se nas veias dos Mizildorfs corria o sangue dos Dráculas, do que tenho quase certeza absoluta.
Atendi, pela primeira vez, ao chamado de Herr Mizildorf quando Laura tinha apenas oito anos. Por certo não lhe causei boa impressão, pois relata que “chamaram um médico, velho e pálido. Lembro-me bem de seu rosto longo e saturnal, ligeiramente marcado pela varíola, e de sua peruca castanha”. Assim ela me via. Observadora, pois jamais pensei que minha peruca seria notada por uma criança, ainda mais sob a depressão e o nervosismo de que era presa. Recomendei, na ocasião, que não dormisse sozinha e que uma empregada ficasse com ela, à noite. Por dois meses visitei o castelo de Mizildorf, três vezes por semana, a fim de acompanhar o estado de Laura e ministrar-lhe remédio, que ela “é claro, odiava”.
Naquela ocasião — ou seja, no primeiro ataque da doença nervosa que a acometera — encontrei-me, por diversas vezes, com o Reverendo Helmuth, que visitava a menina para, juntos, fazerem orações pelo seu reestabelecimento. A figura alta e esguia do padre causava impacto: o longo hábito negro quase o fazia invisível nos corredores sombrios do castelo, não fosse seu rosto intensamente vermelho, coroado por basta cabeleira de lã alvejada. Lembro-me de haver trocados algumas palavras com o respeitável pároco.
— O caso dela é mais espiritual do que físico. Precisa muito de orações para afugentar o mal que está dentro dela. — Do alto de seus quase dois metros, a voz soava como se vindo do céu.
— Pode ser. A mente humana é capaz de tudo. Até de se imaginar doente. — Tentei explicar, respeitosamente, o meu ponto de vista.
Devo dizer que, naquela ocasião, poucas informações eu havia recebido sobre a lenda de Drácula e dos vampiros. Nada que pudesse alterar minha visão de médico e de homem cético a respeito de fatos extraordinários, inexplicáveis. Sabemos que o mistério existe somente enquanto a ciência não encontra a explicação. Posso afirmar que era, então, completamente descrente de tabus, milagres e coisas que tais.
Alguns anos se passaram desde a primeira crise de Laura, quando fui chamado, desta vez com urgência, para atender outra cliente no mesmo castelo dos Mizildorf. O mensageiro ficou me esperando, enquanto trocava de roupas e verificava o conteúdo de minha maleta, a fim de me levar ao castelo, tão grave seria o estado da paciente. Devo dizer que a distância de duas léguas, que separava minha residência do castelo seria mais rapidamente vencida se eu usasse meu cavalo, o enorme Niger, de garboso trote e galope rápido, quando solicitado.
Uma jovem de profundas olheiras, a tez muito branca, estava deitada no enorme dossel do quarto anexo ao de Frau Laura. A voz fraca saía como soluços. Tinha dificuldades em respirar e uma evidente anemia. Contaram-me tratar-se de uma estranha, que havia sido deixada pela mãe, após um incidente nas proximidade do castelo. A mãe e a comitiva seguiram viagem e deixaram Carmilla aos cuidados do castelão que vivia solitário, contando com a companhia apenas de sua filha, servido por quatro ou cinco serviçais.
Carmilla era uma bela jovem, apesar do seu crítico estado de saúde: anemia profunda, apatia constante e verdadeiro pavor da luz do dia. Diria que tinha um medo pânico, uma heliofobia, o que dificultava o tratamento, pois bem sabem os leitores dos salutares efeitos da luz solar no tratamento de pessoas fracas e raquíticas. Entretanto, a moça reagiu bem ao tratamento, não obstante se recusasse terminantemente a sair de seu quarto nas horas de sol pleno. Após a primeira quinzena, já conversava animadamente e, principalmente à noite, mostrava vivacidade, a atenção desperta para diversos assuntos. Recebera uma educação eclética, que gostava de mostrar nas longas conversas que mantínhamos nas diversas vezes em que a visitei.
Passei , por diversas vezes, pelo castelo de Mizildorf, nas minhas idas e vindas pela região, pois naquele verão diversas pessoas se tornaram, inexplicavelmente, doentias, fracas, e, como Carmilla nos primeiros dias de sua estada no castelo, presas de forte anemia. Cheguei a pensar que a alimentação ou a água ingeridas pelos moradores da região pudessem estar lhes fazendo mal. Pelo menos, para algumas pessoas mais suscetíveis a sangramentos e falta de apetite. Curiosamente, todos os pacientes apresentavam estranhas marcas de picadas no pescoço ou nos braços, próximas às veias. Pensei em algum animal hematófago, mas a suspeita não foi confirmada, pois os pacientes continuavam definhando mesmo isolados em quartos totalmente vedados.
Perdi quatro pacientes num semestre. E outros caíram de cama, vítimas do mesmo mal. Estava profundamente desgostoso comigo mesmo e com os poucos recursos que tinha a meu dispor, com a falta de acesso às informações mais atualizadas sobre como tratar de hemofílicos, quando soube da chegada, ao castelo de Herr Mizildorf, de visitantes vindos de Gratz. Não tive oportunidade de conhecer os novos hóspedes, pois, por essa ocasião, novos casos de gente contaminada pelo estranho mal apareceram até na vila, e meu tempo era todo dedicado aos doentes.
Soube, por narrativa do próprio castelão, das estranhas ocorrências que finalizaram pelo “exorcismo” de uma capela, na qual estariam os restos “imortais” de uma vampira. A revelação completa (tão bem descrita pelo senhor Lê Fanu) dos estranhos eventos, foi-me feita numa visita que realizei para atender Laura, agora uma linda moça de seus vinte e poucos anos, contaminada pelo mal que grassara a região nos anos anteriores.
Diante da macabra narrativa feita pelo pai, e sem meios para diagnosticar o problema, não tive dúvidas em lhe recomendar:
— Laura ficou impressionada demais com todos esses acontecimentos. Melhor seria, tanto para ela, como para o senhor, Herr Mizildorf, uma longa viagem por lugares claros, ensolarados. A Itália seria um ótimo lugar para alguns meses de repouso e arejamento das suas cabeças.
Devo dizer que, coincidentemente com o “exorcismo” (Quanta crendice idiota, meu Deus!), cessou a epidemia de gente fraca, embora nenhum dos atacados houvesse sobrevivido. É como se, com a extinção da última gota de sangue em suas veias, a peste se extinguisse por si mesma.
Um ano depois, Herr Mildorf e Laura retornaram de sua viagem pela Itália meridional. A memória deste retorno ficou marcada, pois fui convidado para um jantar de gala, em agradecimento pelos serviços que havia prestado no ano anterior.
— ...E, principalmente, agradeço ao doutor o conselho que nos deu, para que fizéssemos a viagem. — Laura estava mais linda do que nunca. Tornara-se uma mulher completa: mesmo magra, estava esbelta e mostrava-se animada. Os cabelos muito escuros combinavam com os profundos olhos negros. Seus olhos brilhavam no fundo das olheiras (que nela ficavam absolutamente bem) e os lábios vermelhos destacavam-se na face clara. As maçãs do rosto eram rosadas como se pintadas por suave colorista. O seu belo vestido de noite, de pura seda chinesa, todo carmim, de mangas curtas e suave decote, revelava, com discrição, o belo colo (marcado por poucas e delicadas sardas) e os longos braços muito alvos. O sorriso exibia alvíssimo colar de pérolas de mais intenso brilho.
Contou-me, então, das magníficas paragens que haviam visitado: a ilha de Capri, Nápoles, a excursão à beira do Vesúvio, e as pitorescas vilas e pequenas cidades do sul da Itália..
— Sabe, doutor, adoro passear de noite, pelas madrugadas. — Falava-me, e me deixava fascinado pelas noites de luar em que passeava solitária pelas colinas, pelos campos e páramos misteriosos
Herr Mizildorf, entretanto, não acompanhava a filha na sua exuberância. Mostrara-se, ao contrário, macambúzio e preocupado. Falou pouco e o pouco que falou foi em tom de queixume.
— Não posso lhe esconder a tristeza que me invade a alma. Parece que uma maldição me acompanha. Por todos os lugares em que estivemos, a maldita praga nos acompanhou. Em todas as vilas e aldeias nas quais passamos, revivi, nesses meses de viagem, todo o terror pelo qual passei aqui no castelo, antes da destruição dos vampiros da capela amaldiçoada.
Não achei de bom alvitre manifestar o que pensava a respeito daqueles rituais dos quais sabia por ouvir dizer.
— Ora, Herr Mizildorf, não deve pensar que seria o portador da doença. Embora não conhecendo as causas, posso afirmar que não se trata de doença transmissível, pois em cada caso que atendi, as pessoas que cuidavam dos pacientes não foram contaminadas. Se a doença se espalha, deve ser por meios que desconhecemos.
O jantar decorreu em clima agradável. Tendo exagerado um pouco nos aperitivos delicados, no vinho encorpado de Chianti e no conhaque e licores servidos na biblioteca, aceitei, já meio confuso, o convite para pernoitar no castelo.
Meu quarto ficava ao longo de um extenso corredor, no final do qual uma grande janela envidraçada deixava entrar a claridade da noite de luar. Na mesma ala ficavam os quartos de Frau Laura e de Herr Mizildorf. Recolhi-me alegre e satisfeito, completamente saciado e satisfeito com a companhia adorável da moça, apesar das maneiras macambúzias do pai.
Se o jantar foi excelente, o resto da noite foi de mal-estar e de . . . terror! Não sei a que atribuir tanto desconforto. Não consegui dormir e a azia me fez levantar diversas vezes para tomar algumas porções de Sal de Monzt, eficaz antiácido que sempre tenho em minha maleta. Os pesadelos povoaram as poucas horas de sono. Os sonhos se misturavam com a realidade. Pela madrugada, pensei ter ouvido ruídos no corredor. Levantei-me de supetão, assustado e (por que não confessar?) amedrontado, e abri a porta do meu quarto. Ainda tonto de sono, pude divisar, na escuridão quebrada apenas por um foco de fraca luz no fundo do corredor, uma figura esvoaçante e evanescente, tal qual um gigantesco morcego. Tive a impressão de ser roçado, no rosto, pelas asas ásperas do hediondo animal, que desapareceu defronte à porta do quarto de Laura. Voltei à cama e permaneci insone o resto da noite.
No dia seguinte, tudo me pareceu ridículo. Abusara das bebidas e das comidas no lauto jantar e as conseqüências só poderiam ser aquelas. Mas fiquei muito intrigado ao mirar-me no espelho manchado e notar uma estria de sangue na minha face esquerda, como se riscado por objeto pontiagudo.
A epidemia voltou, agora atacando os habitantes da vila, distante algumas léguas de minha residência no campo. Achei melhor alugar uma casa na vila, que pudesse ser ao mesmo tempo minha residência durante os períodos mais críticos. Nessa moradia provisória, poderia estar em contato com o jovem doutor Albert Kolbert, recém-chegado à região e que, por certo, muita informação teria para me passar. Também ficou mais fácil encontrar-me “aleatoriamente” com o Reverendo Helmuth, testemunha ocular do estranho ritual de “exorcismo” na capela nas vizinhanças do Castelo de Mizildorf. Se bem que ainda descrente da existência de vampiros, a curiosidade científica me levava a pesquisar tudo o que estivesse relacionado com a epidemia de hemofilia, de volta à região. E o pároco, por mais que os estudos teológicos lhe houvessem enchido a cabeça de preconceitos, era uma pessoa de alto senso crítico e interessado pela explicação científica que eu pudesse dar ao mistério.
Contei ao padre da noite que eu passara no castelo e o pressentimento, mais do que a visão, de um enorme morcego e do arranhão na face.
— Consta da lenda que os vampiros se transformam em morcegos para melhor se trasladarem de um lado a outro. Como animal noturno, de estranho comportamento e misterioso dom de se orientar no escuro, é a encarnação perfeita para os vampiros. Sem falar na facilidade de penetrar misteriosamente nos locais mais herméticos, por frestas estreitas ou frinchas aparentemente invisíveis.
— É pura lenda, não há comprovação científica...
— Meu caro doutor, a ciência corre sempre atrás do misterioso, do inexplicável. Um dia a explicação científica virá. Talvez o senhor mesmo poderá encontrar essa explicação.
No atendimento de meus clientes, houve um, apenas um, que se recuperou. O jovem Carl Nimitz, calmo e calado, na pujança de seus vinte anos, foi acometido pela hemofilia. Tudo como nos outros casos. As marcas de picadas no pescoço, nos braços, como se uma serpente se saciasse do seu sangue nas horas de lassidão ou de profundo sono.
— Observe que as marcas podem ser também de morcego. — O jovem doutor Albert me chamou a atenção. — Os dentes incisivos dos morcegos têm a mesma posição das presas de uma serpente.
— Morcego, serpentes... Quanta besteira! — Eu já estava me exasperando e o meu equilíbrio crítico estava ficando prejudicado. Embora negasse acerbamente as hipóteses do jovem doutor e as lendas do padre, a verdade é que já me sentia influenciado pelo clima de mistério e de terror que baixara sobre a nossa bela região do sul da Estíria.
Apesar do terror e da falta de explicação, o jovem Karl curou-se. E não só se restabeleceu como ficou mais forte, mais bem disposto. Com um inconveniente, registrado pela mãe:
— Ele agora só quer sair de noite. Fica o dia inteiro enfurnado no seu quarto, no escuro, não sai nem para comer. Mas que sarou, sarou.
O Doutor Albert e eu decidimos fazer investigações além das nossas atribuições médicas. Estabelecemos vigílias por noites e noites seguidas, escondidos nos arredores das casas onde os pacientes definhavam até à morte. O reverendo Helmuth soube de nossas vigílias e quis participar. Passamos a formar um trio, que se revezava: ficávamos sempre dois, a fim de que a observação de algo estranho fosse comprovada por não apenas um, mas testemunhada por dois argutos vigilantes.
Os casos se multiplicavam. As vítimas passavam por um ciclo fácil de ser constatado: num período de uma semana a dez dias, a vítima sofria um ataque (os sinais de picada se apresentavam nítidos) e em seguida caía num torpor, do qual ia se recuperando pelos próximos sete, oito ou dez dias. Novamente uma recaída, e depois, o repouso e a recuperação. Acontecia que a fraqueza se acentuava, e a cada recaída o estado de saúde piorava, de tal forma que em poucos meses a morte implacável e previsível ocorria fatalmente.
O doutor Albert, com novos métodos de registros e estatísticas, estabeleceu um quadro para cada cliente, no qual anotava as datas de recaídas e os períodos de restabelecimento. Dentro de poucos meses organizara um arquivo macabro dos efeitos da doença.
Tínhamos plena consciência de que nossos esforços científicos (bem como as bendições e orações do padre Helmuth) não surtiam o menor efeito. O que acontecia, fossem os surtos ou a cura, estava além de nosso controle. Com a cura de Karl, pensamos que a peste havia entrado num ciclo novo, em que as vítimas poderiam se curar. Ledo engano. Depois de Karl restabelecido, os casos aumentaram. Ficamos desanimados. Mas o doutor Albert, a mente sempre perquiridora e sem preconceitos, elaborava teses e hipóteses.
— Se for mesmo um vampiro, deve estar sediado na própria vila ou na região. Vamos vigiar o cemitério e as capelas onde pessoas foram enterradas.
A contragosto, segui o jovem médico em suas novas vigílias.
— Vamos estar atentos também para o comportamento das pessoas. Sabemos que vampiros não gostam da luz do dia. Quem sabe se a ojeriza de Karl por atividades durante o dia não seja uma pista?
Com uma faísca na manhã clara em que conversávamos, lembrei-me das palavras de Laura, na noite daquele jantar: Adoro passear de noite, pelas madrugadas. Afastei de pronto de minha cabeça essa associação de idéias, bem como tentei apagar as sugestões do doutor Albert.
O jovem doutor Albert se aprofundava no assunto. Agora, além de suas estatísticas, registros, mapas e anotações, muitas anotações, ele tinha aumentado consideravelmente seu conhecimento, adquirido de livros e documentos sobre vampirismo. Os livros vinham diretamente de Viena e alguns documentos raros ele os obteve por meios que desconheço, de viajantes que vinham dos remotos locais da Transilvânia, “a pátria dos vampiros”, como ele dizia. Revelou-se mais do que um médico. Tornara-se naqueles poucos meses de convívio com o mistério da peste hemofílica, também um estudioso do vampirismo e agora sabia tudo sobre eles – inclusive as técnicas de extermínio.
— Há uma crença generalizada, nas regiões onde os vampiros já foram detectados, de que nem todas as pessoas mordidas (e sugadas até a morte) se transformam em vampiros. Somente os eleitos, os escolhidos, é que perpetuam a espécie. Esses não morrem nunca. E, embora se passem por mortos, mantêm-se vivos para sempre, à custa do sangue das suas novas vítimas. Ocorrem constantemente casos de paixão entre vampiros e pessoas normais, o que dá continuidade à espécie.
— Karl seria uma dessas pessoas... humm...”eleitas”. — Incrédulo, eu o estimulava.
— Pode ser. Mas devemos ser precavidos e destituídos de preconceitos. Apenas suspeitas não nos levam a conclusões definitivas.
Não sei como o doutor Albert teve a confirmação de suas desconfianças com relação ao fato de Karl ter-se tornado, efetivamente, um vampiro. Não só chegou a essa conclusão, como disso convenceu o reverendo. Eu estava ainda incrédulo de todas as suas explicações “científicas”. Talvez por isso ele e o padre Helmuth tenham decidido, sem me consultar, pelo “exorcismo” do jovem Karl. A mãe do rapaz já havia morrido há alguns meses. Morte inesperada, repentina. Karl morava sozinho na casa que ora lhe pertencia. Como disse, só saía à noite, e sua vida cercara-se de completo mistério.
Quando fui informado, horas antes da visita que o doutor e o padre pretendiam fazer ao jovem, para praticarem o que quer que fosse com relação ao estado vampiresco de Karl, recusei-me a participar do ato, que resultou, na verdade, no seu extermínio. Uma noite tétrica, de tempestade, aquela em que visitaram o mancebo. Submeteram-no às mais iníquas práticas de exorcismo que o levaram a manifestar-se como vampiro que era realmente. Preso num círculo de água benta e sob a visão do crucifixo do padre Helmuth, o vampiro permaneceu sem ação, enquanto o doutor, com a frieza de um carrasco, lhe cravava uma aguda estaca de madeira no coração, procedimento definitivo e totalmente eficaz para o extermínio de vampiros.
Quando soube do terrível extermino do jovem Karl, senti calafrios de terror, mas, ao mesmo tempo, fiquei aliviado por saber que o foco da epidemia estava eliminado.
— Nein, Nein, Doktor. Lembre-se que Karl ficou doente há poucos meses, bem depois do início da onda de ataques do vampiro. — O doutor Albert estava obcecado pelo assunto, enquanto eu me lembrava, com amargura, de que a atual onda de ataques — vampirescos — começara com o retorno de Herr Mizildorf e sua filha, Frau Laura. E, apesar da morte de Karl, como predissera o doutor Albert, a epidemia continuou grassando sobre os habitantes da aldeia.
Passei por uma fase de confusão e de desgosto. Os argumentos do meu colega eram tão impressivos, e reforçados por suas tabelas, quadros estatísticos, livros, documentos, que a dúvida se instalara em meu espírito. O Reverendo Helmuth já se rendera à paranóia de Albert e o acompanhava em todas as atividades de caçador de vampiros. Iam constantemente ao pequeno cemitério comunitário, visitavam tumbas e túmulos espalhados na região, capelas e ermidas ou mesmo simples locais marcados por cruzes, onde pessoas teriam sido enterradas.
Voltei minha atenção para o Castelo de Herr Mizildorf. Numa de minhas visitas, conversei demoradamente com o castelão. Ele me falou do estranho comportamento da filha, que se negava terminantemente a sair do castelo durante o dia. Ela estava mais bonita e viva do que nunca. Numa conversa muito estranha, me falou da morte de Karl, nos mínimos detalhes, como se tivesse assistido a tudo.
Notei o grande desânimo do dono do castelo. Não tinha mais a vivacidade de outros tempos. Sugeri-lhe, sutilmente, um exame médico, ao qual relutou com veemência. Estaria ele também acometido pela praga?
A peste continuava. Por sua disseminação, morreram diversas pessoas na vila, a maioria moças jovens, pessoas humildes que não despertavam a atenção das autoridades. Por mais que o doutor Albert e eu nos desdobrássemos na prestação de assistência, na prescrição de fortificantes e alimentos reconhecidamente fortes, não progredíamos em nada. Uma vez atacada, a pessoa, mais cedo ou mais tarde, terminava falecendo. Muitas vezes, na minha presença.
Isso me desgostava. Tornei-me irascível. Não pensava com serenidade. Fiquei tanto ou mais obcecado contra o vampiro (embora minha formação científica se negasse em acreditar na sua existência) quanto o doutor Albert.
As investigações do doutor, agora agindo com confiança e ajuda do Reverendo Helmuth, levaram ao castelo de Mizildorf e à conclusão de que ali era a morada do vampiro. E só podia ser ela!
Passei a visitar o castelo por minha própria iniciativa. Constatei com pesar que o velho estava, sim, contaminado: não tinha mais ânimo para nada, estava extremamente pálido e recusava-se a sair do castelo ou a receber qualquer tratamento.
A revelação foi cruel. Forte demais para mim, que tinha Laura como uma vítima. Jamais poderia imaginá-la como um agente da grande desgraça que pairava sobre a região.
Por sugestão do dr. Albert, passamos a vigiar o castelo. E vimos, sim, por diversas noites, uma figura fantasmagórica esvoaçar pela janela aberta do quarto de Frau Laura. Cinzenta, poderia facilmente ser confundida com um morcego gigantesco. A estranha e misteriosa entidade tomava, invariavelmente, a direção da vila. No dia seguinte, era constatado mais um ataque ou uma recaída de pessoas já abatidas pela “doença”.
Custei a crer. Mesmo porque nutria uma grande simpatia pela linda moça. Habilmente, o Dr. Albert conseguiu ser admitido no castelo, juntamente com o Reverendo Helmuth. Herr Mizendolf estava tão abatido que aceitou nossas presenças. Os empregados — apenas dois atendiam o castelo, os demais haviam abandonado o trabalho — também nos aceitaram de bom grado.
Triste e terrível noite foi aquela em que nós três, em vigília, observamos, dos jardins do castelo, a saída do monstro em busca de seu alimento. Corremos para o terceiro pavimento, onde se situavam os quartos e entramos na alcova de Laura. Estava sinistramente vazia, a janela escancarada, o leito intocado.
— Que vamos fazer? Fechar a janela? Impedir sua volta? — perguntei aos cochichos ao doutor Albert.
— Nein, Nein! Vamos ficar escondidos aqui no próprio quarto e esperar.
Escondemo-nos,os três, por detrás das cortinas. O doutor Albert levava em sua valise de médico alguns apetrechos com os quais pretendia “tratar” de Laura. O Reverendo Helmuth levava água benta e no peito, uma cruz de prata brilhava sob os reflexos do luar. A espera foi demorada. Por mais de uma hora tremi de ansiedade e medo, o terror dominando completamente meus nervos. Ainda mantinha alguma dúvida sobre a possibilidade de Laura ser uma vampira, mas tudo levava à conclusão contrária. Tinha esperança de que nós três estávamos num delírio coletivo e inexplicável.
Ouvi um farfalhar, como se o vento agitasse as folhagens das grandes árvores do bosque que circundava o castelo e lançava galhos até bem próximo das paredes. Uma forma de imenso morcego assoma à janela, e voando pesadamente, dependura-se em uma das travessas superiores do dossel. Vejo com nitidez sua face, os olhinhos vermelhos, e a boca (horror dos horrores!) manchada de sangue, certamente de sua vítima mais recente. Afastei os olhos daquele bicho horrível, recusando-me a crer no que via. Ouvi um baque surdo sobre o piso atapetado. Quando olhei de novo, o animal desaparecera. Laura caminhava pelo quarto, agitada. Seu doce semblante estava irremediavelmente poluído pelos vestígios de sangue em seus lábios, nariz e queixo.
Parecendo desconfiada, fechou a janela. Absoluta escuridão reinou por alguns momentos, até que minha vista se acostumasse. Pude, então, vê-la deitada sob o dossel de seu leito. Aparentava dormir. Vi o padre sair de seu esconderijo e, silenciosamente, andar ao redor do leito, derramando água benta no piso decorado do quarto. Quando o círculo se completou, uma estranha luminosidade começou a emanar do líquido aspergido, subindo e constituindo como que uma fina e transparente cercadura de luz ao redor do leito.
Inopinadamente, o doutor Albert saltou de seu esconderijo, atravessou com passadas decididas a curta distância que o separava do leito, transpassou a cerca de luz e aproximou-se da cabeceira da cama onde Laura dormia. Senti um cheiro muito ativo, um fedor mesmo, de alho amassado. Na mão esquerda ele segurava uma estaca de ponta aguçada e na direita um pesado martelo. Enquanto avançava, gritava palavras cujo sentido ignorava – e continuo ignorando.
Laura acordou de chofre com o escarcéu do doutor Albert. Pude ver, com nitidez, iluminada pela luz azulada do círculo mágico, quando ela se levantou, já com o pavor estampado no rosto. Não havia se lavado antes de deitar, e o rosto ainda mostrava as marcas de sangue. Os olhos eram duas brasas nas profundas e negras olheiras. Ao abrir a boca, num grito pavoroso, pude ver seus dentes transformados em presas afiadíssimas. Tentou levantar-se e abraçar o doutor Albert, agora ao seu lado. Mas foi detida por alguma coisa que não vi: caiu de volta sobre os travesseiros, onde permaneceu imobilizada por uma força invisível, enquanto exalava gritos agudíssimos.
Impassível e consciente plenamente do que fazia, o doutor, em gestos precisos e estudados, cravou a estaca de madeira no peito de Laura. Com o martelo, aprofundou a estaca de tal forma que Laura ficou praticamente presa aos lençóis e ao colchão. Durante toda a ação, não parou, um só instante, de gritar, enquanto o padre levantava a cruz, exibindo-a ostensivamente à mulher que esperneava e tentava libertar-se da estacada fatal. E o doutor continuava gritando palavras ritualísticas.
Não durou mais que alguns segundos o ato de “exorcismo” — para usar a expressão do reverendo. Logo o corpo da vampira aquietou-se. Só então me dei conta da sangüeira que cobria a roupa da infeliz moça, os lençóis, travesseiros, e escorria pelo solo. Quando se afastou da cama, também vi as mãos, o rosto e a camisa do doutor Albert tintos de sangue.
Jamais me esquecerei daquela cena macabra. O círculo de luz esvaiu-se lentamente, acompanhando o estertor de Laura. O padre chegou perto da mulher cujo corpo parecia encolher-se, murchando, como se esvaziado de toda a sua vitalidade. Por mais que a sessão de exorcismo tenha sido acompanhada de gritos e berros, gemidos e sons indescritíveis, parece que nada havia ultrapassado o ambiente do próprio quarto. Fui o primeiro a deixar a alcova de Laura, pensando encontrar, no corredor, o pai e os serviçais.
Não encontrei ninguém. Pesava sobre a escuridão do corredor o mais lúgubre silêncio. Se alguém fora acordado pelo barulho, não se atrevera a aparecer. Dirigi-me ao quarto de Herr Mizilldorf. Silêncio profundo e sinistro. Bati de leve na porta. Nenhum ruído. Girei a maçaneta. A porta estava destrancada. Entrei. No leito, Herr Mizildorf dormia profundamente. Aproximei-me. Um raio de luz incidia diretamente sobre sua cabeça, pescoço e peito, desnudo. Notei marcas de sangue em sua roupa de dormir. Acurando a vista, pude notar no seu pescoço, duas marcas evidentes de um ataque de vampiro. Passei, de leve, os dedos pelas marcas: as feridas eram recentes, o sangue ainda semicoagulado, evidenciavam que o castelão tinha sido mordido, havia poucos minutos, por um vampiro.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BRLO HORIZONTE – 06.MAIO.2004
CONTO # 221 DA SÉRIE MILISTÓRIAS