O Encadernador de Livros
— Bom dia. O senhor é o seu Lobato? — Perguntou Antônio, estudante de Medicina do segundo período da Universidade Federal de Sergipe. Um jovem alto, com grandes olhos azuis e cabelo loiro pixaim, com longos dreadlocks escondidos embaixo de uma touca com as cores da bandeira jamaicana. Um observador menos atento não suspeitaria minimamente do tamanho de suas madeixas. Trazia consigo, com muita dificuldade, os três volumes da última edição do Sobotta.
— Sim, sou eu mesmo. Quem é você, filho? — Falou o velho, esticando seu rosto macilento, por entre a janela, a qual o parapeito servia de mesa de trabalho, em direção ao jovem que acabara de chegar, e apertando os olhos, por de trás de duas grossas lentes de grau, rodeadas por uma medonha armação, na tentativa de enxergar melhor seu interlocutor. O velhusco se assemelhava a uma fuinha usando óculos “fundo de garrafa”. Essa imagem fez com que Antônio sufocasse uma gargalhada.
— Sou filho do doutor Porfírio. Ele me mandou aqui para deixar estes livros para o senhor encapar. — Respondeu Antônio, quase bufando, após pousar as “bíblias” no resguardo.
— Ah, sim, que honra. O seu pai é meu cliente há muitos anos. Não só ele, mas também seu avô, seu bisavô, seu... Enfim, toda a sua nobre família, meu caro. Uma linhagem de médicos respeitados em todo país. Não é mesmo?
— É. — Respondeu Antônio sem empolgação.
Justamente por causa dessa “linhagem de médicos respeitados em todo país” que Antônio estava sendo obrigado a cursar Medicina. Logo ele que não suportava ver sangue e morria de medo e asco dos cadáveres que tinha de manipular nas aulas de anatomia. Detestava biologia, detestava a medicina, detestava seu pai por interferir em suas escolhas e, principalmente, odiava a si mesmo por ser um poltrão e não enfrentar o tirano e dizer que seu sonho não era aquele. Ele sonhava em estar em cima de um palco cantando reggae. E realmente era bom nisso, verdadeiramente muito bom. Possuía todos os predicados de um líder de banda de sucesso. Tinha carisma, era bem apessoado, e dominava o público como poucos, além de ser dono de uma voz poderosa, voz de “negão”. Não obstante a sua pele alva, ele sabia que havia genes da mãe África correndo em seu sangue. Seu cabelo provava isso. E se sentia orgulhoso. No entanto, o doutor Porfírio não podia ouvir falar em reggae, muito menos imaginar que seu único filho não haveria de seguir seus passos. O cabelo à moda Rastafári foi engolido muito a contragosto, engasgadamente. Antônio teve que prometer ao pai que cortaria assim que iniciasse as disciplinas profissionalizantes.
— Então você é o Antônio. Conheci você quando ainda era um nenenzinho que apenas engatinhava e chorava. — Falou e sorriu, mostrando seus dentes enegrecidos e soltando um bafo pútrido, com odor de sangue e pus. Antônio não conteve um calafrio de repugnância. Percebeu também que não só o hálito do velho era fétido, e sim todo ele. Seu Lobato parecia estar envolto por uma redoma mal cheirosa. O jovem sentiu-se mal. Precisou respirar profundamente para controlar uma ânsia de vômito que o arrebatou.
— Sim, sou eu mesmo. — Falou apressadamente, prendendo a respiração. Desejava sair de perto daquele sujeito o quanto antes. — Meu pai pediu que o senhor o avisasse por telefone quando os livros estivessem prontos. Ele vem buscá-los pessoalmente.
— Sim, sim, está muito bem. Eu ligarei para o doutor. Ele não disse mais nada? — O velho interrogou.
— Ah, também disse que os livros deveriam ser encadernados com o material especial, e desta vez gostaria de uma cor clara.
— Pois está muito bem. Cor clara. — Concluiu encarando Antônio com uma feição de curiosidade, e emendou:
— O doutorzinho ainda não sabe de nada, não é mesmo? — Seu rosto abriu-se numa carranca esquálida e grotesca. Antônio suspeitou que aquilo fosse um tipo de risada, e não conteve outra tremedeira, desta vez de medo.
— Não sei do que o senhor está falando, seu Lobato.
— Pois muito bem, sim, sim, está tudo certo. Em breve o doutorzinho saberá. Todos de sua família sabem. Sim, sim, todos eles sabem, sabem sim... Sabem sim... —Continuou a repetir as últimas palavras como num mantra, parecendo ter entrado em transe e esquecido completamente a presença do pretenso pop star, que aproveitou para dar o fora dali o mais rápido que pôde.
Seu Lobato, ainda falando só, dirigiu-se aos fundos de sua casa, saindo da exígua sala onde trabalhava encadernando livros. Ele exercia esta profissão há muitos anos, incontáveis anos, sempre na expectativa de pedidos como aquele, que valessem a pena. Um trabalho com o material especial equivale a quase três meses de trabalho com os forros comuns. Três volumes salvariam o ano inteiro. O velhinho com cara de mamífero mustelídeo encontrava-se radiante quando abriu o alçapão ao rés do chão da cozinha e gritou, ajoelhado, olhando para baixo:
— THALES, OH THALES! — Desceu alguns degraus e chamou novamente. — THAAAALES. — Silêncio absoluto. — Não é possível que você esteja dormindo de novo, seu indolente de uma figa. — Ralhou o velho. — THALES, SEU CRETINO! APAREÇA! De repente, surge em meio às trevas do porão um sujeito muito alto, muito gordo e possuidor de uma imensa cabeça, vestido apenas com um fraldão geriátrico. Era Thales. O gigantesco homem, com mais de dois metros de altura, era portador de retardo mental, que o transformara numa criança hipercrescida. Sua idade cronológica era quarenta anos enquanto a mental não passava dos sete.
— Oi mestre. — Disse Thales, levantando uma de suas mãos rechonchudas e acenando para o homenzinho enrugado. — Depois ergueu a perna direita, virou-se de lado, apontando suas nádegas na direção de seu Lobato, fez uma cara de esforço e... “Bruuuuuu bru bru bruuuu”, soltou um sonoro gás pelo seu vaso traseiro. — Ops, desculpe mestre. — Gargalhou.
— Seu moleque malcriado. — Esbravejou o mestre encapador.
O Porão era um misto de curtume e matadouro. Peles, couros e peças de carne incomuns num açougue estavam pendurados por todos os lados. Seu Lobato encaminhou-se para a gaveta onde guardava as peles prontas para uso.
— Maldição. — Exclamou.
— O que aconteceu mestre? Perguntou Thales.
— Não temos mais peles brancas, só pardas e negras. Thales, hoje de madrugada nós sairemos para caçar. — O rosto do gigante iluminou-se.
O porão era na verdade um túnel, com vários corredores e com muitas passagens secretas para superfície. Estendia-se, em baixo do assoalho da cidade, por vários quilômetros quadrados. A antiga casa, situada na colina do Bairro Santo Antônio, próximo à igreja, era da família de seu Lobato há cento e cinquenta anos. Há um século e meio aqueles túneis eram usados em benefício da nobre e milenar arte de encadernar livros com pele humana.
Escolheram para caçada noturna um túnel que conduzia ao centro da cidade, que se exteriorizava dentro de uma casa abandonada a trezentos metros da Rua da Cultura. Aquele era o local predileto de seu Lobato para a espreita de suas vítimas. Na verdade eles estavam numa ruela, quase um beco, cercada por construções antigas em decrepitude e terrenos baldios, que cortava caminho em direção ao terminal rodoviário. Pelo o dia o atalho era muito usado, todavia, durante a noite o lugar se tornava deserto, silencioso e lúgubre. A quietude somente era cortada, aqui e acolá, pela algazarra de grupos de amigos que passavam no entorno. Contudo, sempre acontecia de alguém apressado e corajoso, ou mesmo um desavisado boêmio acabar entrando naquela sinistra passagem, vindo das festas que aconteciam nas proximidades.
Thales estava eufórico, aqueles passeios eram uma grande diversão para ele. Correr atrás das pessoas, vestido e pintado como um palhaço, segurando um enorme porrete, e assustá-las, trazia uma excitação extraordinária a sua limitada mente.
Após uma hora de espera, uma potencial presa aproximou-se. Vinha cambaleante e segurava em um das mãos uma garrafa de bebida. Parecia estar falando sozinho, com um interlocutor invisível. Ele gritava apontando o dedo para as paredes e imprecava cheio de fúria para um ouvinte imaginário. Seus longos cabelos sararás balançavam ao ritmo de sua indignação.
— É isso mesmo que o senhor ouviu, eu vou largar este maldito curso e vou fazer o que eu amo, está me ouvindo, hã? Está me ouvindo, papai? Eu vou largar aquela maldita faculdade.
Enquanto falava também dançava, dando pulinhos de um lado para o outro, jogando os braços para o alto, seguindo uma melodia que só cantava em sua cabeça, ao mesmo tempo em que vertia o líquido da garrafa em caudalosas goladas.
Logo depois da visualização da vítima, Thales saiu furtivamente do esconderijo e levou silenciosamente seu corpanzil para o fim da rua, na outra esquina. O relógio da catedral acabara de anunciar três horas da manhã. Seu coração batia descompassado de emoção. Finalmente, depois de muitos dias, ele iria brincar. Pena que durava tão pouco.
Seu Lobato ficou onde estava aguardando ansiosamente o momento oportuno. Ao ver o jovem bêbado aproximar-se de onde Thales estava, levou a boca um apito e três curtos silvos singraram no ar da madrugada: “Pii, pii, pii.”. Era a deixa que Thales esperava.
Um enorme palhaço segurando um porrete de ferro saiu das sombras e caminhou lentamente para a saída da rua, fechando a estreita passagem com seu imenso corpo, sorriu macabramente e arrastou seu bastão metálico no chão de paralelepípedos.
O homem que dançava parou. Tentou acertar seu corpo entorpecido na direção do colosso bizarro a sua frente. Apertou os olhos, balançou para frente e para trás desequilibradamente e falou:
— Mas que “cabrunco” é isso!
Thales começou a andar vagarosamente de encontro a seu novo amiguinho. O pique-e-pega iria começar. A velocidade da aproximação foi aumentando gradualmente, até chegar ao ponto de uma corrida alucinada, com o porrete acima de sua cabeça, firmemente agarrado por suas enormes mãos, enquanto expelia de sua boca um som assustadoramente gutural.
Essa cena “estifenquinguiana” fez com que o ébrio despertasse. Todo o álcool que circulava por seu corpo sublimou como num passe de mágica, dissipando-se, sendo substituída por uma torrencial descarga de adrenalina. Sentiu o gosto metálico na boca, e correu em disparada sem olhar para trás. Quase no mesmo instante avistou uma pequena silhueta, escondida num terreno abandonando, cercada por madeirites, que acenava chamando-o para lá. Não pensou duas vezes e seguiu na direção da mão que balançava. Passou a toda velocidade por uma pequena porta de madeira apodrecida que foi imediatamente fechada atrás de si. Quando se virou, resfolegando, e olhou para o velhinho que lhe encarava, espantou-se e disse:
— Hei, eu conheço... “Plof”. Sua frase foi interrompida por uma machadada, habilidosamente desferida, e com uma potência incrível para um velhinho de aparência tão frágil, que dividiu seu crânio em duas partes como a uma melancia. Minutos depois Thales chegou esbaforido.
— Thales pegue o corpo. — Mandou seu Lobato.
O grandalhão agachou-se e colocou o homem morto embaixo do seu braço direito, como um menino que carrega displicentemente seu brinquedo quebrado. Thales não esboçava nenhum tipo de emoção em suas feições, talvez, apenas, um mínimo de frustração por sua diversão evanescer tão rapidamente.
O corpo foi esfolado, toda a pele retirada delicadamente e com uma precisão cirúrgica, e jogada numa bacia de zinco contendo sal é um pouco de água. Pedaços da traseira também foram salgados e penduradas num varal. Ossos, vísceras e o restante da carne do humano abatido foram jogados para serem corroídos num tonel repleto de ácido fosfórico em altíssima concentração. Todo o sangue foi congelado. O sangue das vítimas era o segredo da longevidade e da vitalidade assombrosas daquele homenzinho espetacular e de seu gigante de estimação.
A curtição de pele humana segue os mesmo passos da convencional de couro animal. No entanto, o tempo levado da pele crua humana até o ponto ideal para a arte da encadernação é muito menor.
Em apenas dois dias a pele do jovem de cabelos rastafári foi usada para encapar os livros de doutor Porfírio, que acabara de chegar de um congresso de Reumatologia na França, e embora estivesse com muita saudade de casa e de seu filho, resolveu passar no “ateliê” de seu Lobato para pegar seus livros. Ele sempre ficava excitado quando via aquela arte. Sua família, oriunda da Europa, mantinha esta tradição desde o século XVII, e ele não via a hora de contar seus segredos para Antônio.
Já com os volumes de anatomia na mão, e se despedindo do velho Lobato, disse empolgadamente:
— Ah, seu Lobato, o senhor é mesmo um artista. — Elogiou doutor Porfírio, ao passo que acarinhava seus dedos pela extensão dos volumes, sem imaginar, que sua pele roçava a pele de seu próprio filho.