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A Noite do Cão Vermelho
(Revisado)


A aldeia

O jovem sioux havia completado dezesseis anos de idade e estava na hora de subir as montanhas para ter a sua revelação. Por esse motivo, naquela noite, em especial, ele partira ciente dos rumores de ataques que deixavam aqueles iguais a si sobressaltados. Entretanto, para aqueles sioux as tradições eram bem mais importantes e não deveriam ser interrompidas por qualquer motivo.
 
Sendo assim, o rapaz de pele parda, traços grossos e bem marcados, ascendeu à grande montanha com a rapidez e o vigor que sua idade lhe proporcionava, chegando ao cume em algumas horas e permanecendo assentado em profunda concentração; enquanto evocava as divindades ancestrais de sua tribo, pois seria ali que ganharia um nome próprio. 
 
O brilho da lua banhava seu corpo e a leve brisa constante carregava grãos de areia e odores desagradáveis dos confins da cidade (cada vez mais próxima daquela região). Não tardou para que o jovem visualizasse um grande cão vermelho se aproximando na cerração que se formava. A aparição tinha olhos rubros e mordazes e as imagens que se constituíam dançavam sobre sua cabeça o enchendo de contentamento.
 
- O Grande Cão Vermelho! – dizia de si para si em seu idioma, explodindo em júbilo e erguendo os braços para os céus.
 
Ao longe, um bramido perdido começava a incomodá-lo, no entanto, aquele era seu momento, e dessa forma, o sioux que a partir daquela noite passaria a ser chamado de Cão Vermelho, tentava permanecer alheio ao resto do mundo. 
 
******
 
Quando o brilho nos céus ganhou uma tonalidade alaranjada que indicava a chegada de um novo dia, Cão Vermelho começou a descer a montanha apressado, louco para contar aos demais o que vira ali. A caminho, sentia o peito pulsar de um modo estranho, como prelúdio de algo, mas preferia pensar que aquilo era devido às emoções que sentira no topo daquele morro. A aldeia ficava ao pé da elevação e não tardou muito para que seus olhos avistassem o que sobrara dela. 
 
O jovem correu sentindo as lágrimas chegarem constatando os escombros do lugar onde crescera, observou o fogo e a desolação estampados em tudo e viu os seus, caídos, mortos e banhados em sangue. Alguns tinham ferimentos na cabeça, abdômen... E jaziam sobre os membros em grotesca imagem. Cão Vermelho corria de lá para cá balbuciando a esmo, e assim que avistou o pai diante das ruínas de sua morada, se ajoelhou tocando naquele corpo inerte. Seu grito ecoou longe afastando as aves e animais que se chegavam em busca de alimento. O sioux se culpou e desejou estar ali e não ter subido a montanha naquela noite para poder defender os seus. 
 
Trêmulo de dor e ódio sussurrou algumas palavras ancestrais e pôde visualizar a barbárie ocorrida. Suas mãos tocavam o falecido pai e as visões da noite anterior que este presenciara, explodiram na mente em grande fluxo. Via o poder bélico destroçando as carnes daqueles que lutavam com lanças e armas cortantes... A ira gratuita dos homens brancos tomando posse e ampliando seus domínios como se aquilo fosse o correto... 
 
O coração rasgado de Cão Vermelho não lhe deixava ter outra reação a não ser chorar alto batendo no próprio peito contaminado pela mágoa. 
 
Por breves momentos sua visão ficou vermelha e o jovem não viu de imediato quem disparou o projétil, não sentiu a dor do ferimento e quando a boca se encheu de sangue, a certeza da morte iminente o cobriu de súbito como as nuvens cobrem o brilho do sol. Caído sobre o corpo de seu genitor, viu as botas do oficial de uniforme azul se chegarem e sentiu as mãos do algoz virando seu corpo ferido para observá-lo nos olhos. Depois veio a cusparada despejada no rosto e aquilo o deixou mais revoltado e obscurecido que antes. 
 
Não houve nenhuma ação, os espasmos da dor o dominavam, o oficial se afastou observando o entorno e subiu em um cavalo abandonando a região em seguida e levantando poeira no horizonte. 
 
Sobre o solo, Cão Vermelho clamava baixinho, sentindo as forças lentamente se esvaírem.
 
- Manitu... Oh, Grande Manitu! 
 
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 O Confronto
 
Momentos depois, na cidade instalada não muito distante, o conhecido oficial Carson Ford (que gostava de bradar a todos, ser o dono de suas próprias leis), adentrava em um prostíbulo com o intuito de se divertir e beber, afinal, a noite fora movimentada para ele, que, satisfeito, não via a hora de gabar-se dos “peles vermelhas” massacrados. Sua menina preferida corria ávida para recebê-lo assim que o via cruzar a soleira e ambos corriam para o andar superior daquele estabelecimento dentre risos e gracejos diversos. 
 
Na antiga aldeia, acontecimentos místicos ocorriam em proporções grandiosas enquanto que no outro extremo dois corpos “brincavam” voluptuosamente sobre um leito empoeirado, e cavaleiros e diligências iam e vinham no calor do ambiente árido daquela cidade. O oficial adormecia satisfeito e tinha sonhos entrecortados que mesclavam homem e besta, via centelhas de fogo dançando sobre um corpo moreno e em seguida, escutava grunhidos de fera ecoando em seus ouvidos tão reais que o despertava e o deixava assustado.
 
 Ao cair da noite, o Saloon Chave do Sol não podia mais albergar a ninguém e enquanto os tragos, jogos e danças sucediam deixando a atmosfera descontraída, uma fera de pelagem vermelha farejava o rastro que a levaria brevemente até ali. 

...

- Mirei e atirei na cabeça do miserável, Ned. Passei a noite vendo aqueles condenados morrer e aquele era só mais um. Bang! E ele caiu, virei o infeliz e ele ainda me olhou estranho sabe... parecia um bicho... – exclamava o oficial sorvendo a cerveja e cuspindo em seguida no chão de madeira do Saloon.
 
- Selvagens! Ford. Selvagens... – exclamava outro levando o fumo até os lábios.
 
- Adoro esse serviço, sabe Ned? Quem esses miseráveis pensam que são? Donos da terra? - Os dois riam e observavam uma pequena confusão em um jogo de cartas logo à frente. 
 
Então... Subitamente um garoto de calças curtas e franzino, cruzou a portinhola e bradou assustado:
 
- Há uma fera sobre o telhado do prostíbulo, olhem!
 
As atenções se voltaram imediatamente para as janelas, e logo, alguns exclamaram ao observar um monstro canino com olhos encarnados ressoando seus grunhidos de fera enquanto caminhava de lá para cá tendo uma lua amarela e redonda estampada nos céus.  
 
Um reboliço principiou e rapidamente muitos já estavam do lado de fora do Saloon observando um cão vermelho caminhar sobre o telhado da construção próxima.
 
- Mas... que diabos é isso! – exclamou o oficial pondo o rifle em riste na direção do ser.
 
O barulho que a multidão fazia era ensurdecedor, mas ninguém tomava qualquer atitude a não ser a de se esconder aos montões detrás de Carson Ford. O tiro disparado não atingiu o alvo, pois o cão, ágil, pulou sobre uma carroça de feno ali próximo, e depois, tocou o solo se erguendo e expondo uma imagem já conhecida por Ford. 
 
Após pular uma pequena cerca, Cão Vermelho era novamente um jovem indígena e caminhava proferindo palavras que ninguém entendia tendo ainda seus olhos muito encarnados e coléricos. As pessoas se desesperavam ao ver aquela transformação e passaram a correr de um lado para o outro.
 
O oficial se adiantava erguendo uma das mãos e falava alto para todos escutarem espumando de ódio e desejo de ferir aquele que se chegava próximo de si desprovido vestes ou armas. Ford não o temia, o breve entorpecimento do álcool e a ira o guiava.
 
- Aquele que atirar vai se haver comigo. Deixem... é assunto meu!
 
O sioux continuava falando alto com sua voz rouca, tinha lágrimas nos olhos e apontava para o outro a sua frente, porém, não havia ninguém ali capaz de traduzir para os demais o ele que dizia, muito menos de entender as suas agruras. 

O oficial lançou uma enorme faca sobre o solo e segurou outra meneando a cabeça enquanto dizia:
 
- Éh! É vingança que você quer, é isso? Vem, vem então. Vamos acertar os pontos, maldito!
 
Ao ouvir aquelas palavras as pessoas tomaram seus lugares formando uma grande roda no meio da rua de chão batido, temiam a fera que haviam visto, mas a vontade de presenciar um duelo como aquele era maior e isso as mantinha ali coladas umas nas outras. Até o xerife se chegou empunhando uma winchester, mas bastou o oficial fitá-lo, para que este baixasse a arma e se colocasse como espectador junto aos demais.
 
Cão Vermelho tomou a faca e se atirou em um só ímpeto gritando e erguendo a guarda; deixando que Ford o acertasse próximo a pelve. Com aquele movimento alguém atirou para o alto entusiasmando outros a fazer o mesmo. O índio sentia a força do ódio que pairava e grunhia de raiva e dor ao ver Ford o chamando e rindo com satisfação diante da plateia. Coxeava após o golpe recebido mantendo os olhos cravados em seu adversário, e a certeza de não haver mais um lar o fazia investir novamente.

Os gumes se chocavam retirando faíscas que faziam as pessoas murmurarem em uníssono:

“Uhhh!!!”  “Ahhhh!!!”

Ford suava e batizava o outro com um amplo repertório de insultos enquanto se defendia e investia fazendo daqueles movimentos, uma dança sincronizada. Cão Vermelho novamente foi golpeado e
as palavras de ordem passaram a ecoar  fazendo o peito de Ford explodir de excitação:

 
“Fura ele, Ford!” [...] “Vai! Mata esse desgraçado!”                        
 
Ódio... O ódio era a mola propulsora de todos ali. Ford ousava mais usando também os punhos para tentar derrubar o outro. A lembrança das caçadas aos búfalos nas pradarias e o respeito que havia naquela disputa entre homem e animal, era uma comparação absurda que insistia em passear na mente de Cão Vermelho.
 
O reluzir de facas permaneciam e o cansaço aliado ao torpor ébrio fazia as botas do oficial derraparem sobre os pedregulhos vez e outra. O sioux percebia o esgotamento gradativo do combatente e o estudava para arremeter contra em definitivo. Os dois homens arqueavam os corpos dando um meio giro e soerguendo as armas mantendo o olhar firme de espreita. Ford adiantou-se e foi ferido no rosto, chutando em seguida uma grossa quantia de terra na direção do adversário.

O desnorteio fez o índio
levar as mãos aos olhos e cambalear ao passo que Ford atacava adiantando na mente  a vitória e os aplausos que ouviria.

 
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O ato foi rápido e preciso, a faca tingiu de vermelho o peito empapando a camisa azul, o homem franziu o cenho enquanto a poeira assentava no chão, o golpe profundo o fez levar as mãos para pressionar o ferimento e conter o sangue que caia em grossas gotas. Com passos pesados, o oponente se afastou e o corpo desabou sobre o chão provocando surpresa nos expectadores. O sioux, em pé, observou a queda de Ford e impulsionou o braço para desferir o golpe final percebendo o relutar em aceitar a derrota estampados nos olhos do outro.
 
Em uma fração de segundos, a faca caiu longe após o tiro certeiro no braço, em seguida, uma saraivada de disparos recaiu sobre o corpo do indígena e uma poeira ascendeu provocando uma nuvem que encobria seu corpo e deixava aqueles que puxavam os gatilhos perdidos, cegos. 
 
Quando os sons dos tiros cessaram, os presentes pasmaram em ver somente o corpo de Carson Ford sobre chão e estremeceram observando a besta peluda grunhir e desaparecer nas colinas que ladeavam a cidade. 

 
Fim
 
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Estreia no Desafio do Blog Entre Contos (abril/maio) Tema = Faroeste. O texto ficou em 13º lugar, e pecou pela fragilidade da revisão e pelos altos e baixos na narrativa. Porém, a experiência é sempre válida para aqueles que buscam se esmerar na escrita. Eu gostei e recomendo. 


 
Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 28/05/2014
Reeditado em 01/06/2014
Código do texto: T4823619
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