O menino, o velho e os mortos no céu.
Sob a sombra da varanda de um velho saloon, um menino mantinha a atenção no romance barato sobre os heróis da fronteira que lia. Índios, pistoleiros, foras da lei e patrulheiros povoavam sua mente enquanto acompanhava os insólitos relatos que segundo os escritores eram reais e com testemunhas que os afiançavam. Sorria abobalhado ante as aventuras de homens bravios que em nome da honra, ganância e coragem, pulavam de peito aberto contra as balas disparadas por selvagens e bandidos. Imerso em suas fantasias, permitiu que um pensamento lhe fugisse dos lábios:
-Um dia, serei um pistoleiro e ninguém vai me vencer.
Ainda perdido em seu mundo de sonhos, o pequeno leitor não notou a sombra que o encobriu, e só quando uma voz grave e muito idosa o chamou que o distraído se deu conta da figura que o observava atentamente.
-Gosta de estórias da fronteira, rapaz?
O garoto, após um pequeno susto, percebeu que um estranho velho o mirava por trás de uma espessa barba grisalha. Uma aura de escuridão parecia cercar o homem, como um ser que escapara de algum recanto profano do deserto. Novamente o idoso perguntou:
-Você gosta de estórias da fronteira?
Receoso, o pequeno apenas acenou afirmativamente com a cabeça. Sua expressão era de medo e dúvida. A figura incomum encarou o jovem por alguns segundos, seus olhos pareciam faiscar. O ódio fluía como um regato.
-Criança tola. Você não tem ideia de quão horrível é a fronteira. Idiota!
E dando as costas para a criança assustada, o velho caminhou em direção ao prédio, fazendo a madeira gasta por inúmeras botas ranger sob seu peso. Algo caiu das roupas do vaqueiro grosseiro e quicando acabou por se exibir indefesa sobre o assoalho aos olhos da criança que rapidamente apanhou o objeto, um livro. Ainda sem entender muito bem o que ocorreu o garotinho passou a examinar aquele pequeno volume, a coisa era muito antiga e recendia a whiskey e mofo, sua encadernação de couro estava gasta e riscada. O papel, sujo e amarelado havia sido costurado com um barbante nitidamente prestes a se partir.
Ao abrir o livro encontrou uma elaborada caligrafia e desenhos de cânions, animais e homens, pontuavam algumas páginas. Estudando a primeira folha, percebeu que o tomo tratava das memórias de um homem chamado Obedhia Smith.
Movido pela curiosidade, folheou o objeto por alguns instantes e se deteve ao ver uma detalhada ilustração de um cavaleiro envolto por nuvens.
Dando vazão a sua paixão por estórias da fronteira e esquecendo-se do susto que levou, o jovem sonhador começou a ler.
***
13 de janeiro de 1876.
Agora que a idade chegou e vendo o meu crepúsculo cada vez mais próximo, decidi escrever sobre o dia onde tive a certeza de o inferno ser algo real. Apesar de saber que ninguém acreditará em minhas palavras, penso ser meu dever deixar esse relato para trás.
Tudo aconteceu quando eu tinha por volta de uns dezoito anos. Eu era um garoto pobre de fazenda, que vivia sonhando com aventuras e moças. A vida era fatigante e monótona, acordávamos antes do sol e dormíamos quase na mesma hora que ele se punha. Minhas amizades eram poucas, resumiam-se a dois patifes: Joe e Rick Caolho.
Joe era um rapaz atarracado, de sorriso idiota, ideias estúpidas e influenciáveis, mas no fundo, de bom coração. Rick Caolho por sua vez, era um verdadeiro pilantra, um projeto de fora da lei. O danado era alto para sua idade, magrelo, beberão e metido a valente. Segundo as pessoas diziam, ele havia perdido o olho ao espiar uma fechadura em um bordel ainda quando vestia calças curtas. Era fácil gostar dele.
Por um bom tempo, os dois tentaram me convencer a roubar alguns dos cavalos de meu pai e ganhar o mundo ao lado deles.
“Vamos lá Smith, seu covarde cretino! Sele três cavalos e vamos farrear pelo mundo! Podemos ir até Carlson City e encher a cara no Jethro!”
Os dois, noite após noite, sempre diziam a mesma coisa. Eu recusei por várias vezes, pois temia o braço de meu pai mais do que o próprio Diabo, mas após uma discussão, onde ele além de ter me roído o couro todo me proibira de sair da fazenda para conhecer a capital do estado, eu finalmente cedi aos pedidos dos dois e junto deles fugi para viver uma vida de aventuras. Ledo engano, um estúpido engano.
A mais negra das horas a que decidi fugir com aquela dupla e mil vezes maldito o momento de minha participação no roubo de uma diligência.
Joe e Rick não gostavam de mim, só precisavam dos cavalos e por isso agiam como bons camaradas, mas isso mudou assim que passamos a viver pelo campo. Eu sempre ficava com a menor e pior parte do que comíamos e os dois tratavam-me com desprezo e grosseria. Diziam que só quando eu roubasse a diligência que teria o respeito deles, não vendo uma outra alternativa, aceitei cometer o crime e juntos ficamos atocaiados em uma ravina, esperando a passagem do carro do meio dia da linha entre Silver Ore Hill e Luistown.
Assim que o veículo entrou na área erodida da velha estrada da mina, nós amarramos em nossos rostos lenços rotos para ocultarmos nossas faces e saímos do esconderijo. Usando das armas que Caolho conseguiu, duas pistolas Colt enferrujadas e um rifle Winchester de mira ruim, assaltamos o pesado transporte que durante aquela sufocante tarde de verão levantava nuvens de pó vermelho, nos fazendo engasgar e turvando a nossa visão, dificultando nossa mira. Os malditos condutores eram obstinados e mandaram uns bons disparos em nós. Por duas vezes, ouvi o zunido das balas ao passarem rentes à minha cabeça. Durante um bom par de horas nós cavalgamos, perseguindo o transporte ao mesmo tempo em que desviávamos do chumbo quente, mas no fim das contas rendemos os cocheiros e os passageiros. Rick foi o primeiro a apear e usando de uma desnecessária violência, tomou alguns dos valores dos passageiros. Joe estupidamente seguindo seu exemplo jogou os dois condutores do alto de seus lugares e os ocupando, ficou a revirar as bagagens em busca de algo de valor.
Por um motivo que nunca soube determinar, fiquei sobre minha montaria. Algo me dizia que a coisa não ia bem, eu suava em profusão, ao ponto de empapar a camisa e mesmo com os olhares seguros que meus dois comparsas trocavam entre si, tremia sobre a sela cheio de temor de algo dar errado. Para nosso azar, assim o foi. Como poderíamos saber que um grupo de patrulheiros estaria tão perto? Mal paramos o veículo e eles caíram sobre nós atirando chumbo fervendo e gritando como selvagens. Pegos de surpresa, nós disparamos às cegas contra os homens da lei. Eu tentei ser valente e lutar, mas ao ouvir o grito de dor de Joe, soube que havíamos perdido aquela parada. O desespero tomou conta de mim quando o vi cair da diligência, após ter sua cabeça estourada. A visão do corpo estirado no chão, envolvido por uma pequena nuvem de pó, os olhos vidrados, perdendo lentamente seu brilho e ficando eternamente baços, fizeram-me disparar em fuga sem olhar para trás. Sim, fui um covarde, mas diabos, eu estou vivo e não apostaria um centavo que aquele caolho safado dos infernos esteja também.
Devido ao medo que sentia e aos sons dos gritos e tiros de meus perseguidores, corri sem perceber em direção ao deserto e nele acabei por me perder. Durante boa parte daquele dia e durante toda a noite, eu fustiguei meu cavalo, forçando o pobre animal a correr o máximo que podia e na manhã seguinte o suor corria por meu rosto queimado pelo forte sol e unido ao pó criava crostas de sal e sujeira em minhas roupas. O vento do deserto rachava meus lábios ressecados e brincava com a crina de meu cavalo e minha barba rala, enquanto o trotar da besta ecoava pela vastidão quebrando o silêncio.
Por três dias permaneci perdido no grande vazio. Meu cavalo estava perto de cair de exaustão e sede, assim como eu. Não sabia por quanto tempo ainda estaria vivo vagando pelo ominoso lar de cactos e coiotes.
A noite começou a cair, desci do cavalo e acendi uma fogueira. Não temia mais, que ainda estivessem em minha cola, na verdade, até gostaria, pois seria melhor mofar na prisão que virar o almoço de um abutre desgraçado.
Deitei por sobre a sela e durante algumas horas tive um sono ruim, cheio de pesadelos. O estampido dos tiros e o zunido das balas eram tão vividos que me tiravam a paz. Acordei ao ouvir o som de cavalos. Saltei em pé, desejando ter uma arma em punho. Uma voz, profunda e tranquila rompeu a escuridão tentando me acalmar.
-Calma rapaz! Não queremos problemas. Vimos a fogueira e gostaríamos de dividir sua luz e calor. Podemos nos aproximar?
Acenei positivamente com a cabeça e então um grupo de seis homens saiu da escuridão. Vestiam-se como vaqueiros e suas roupas estavam imundas. Todos pareciam muito cansados.
O vaqueiro dono da profunda voz aproximou-se com a mão estendida para me cumprimentar. Apertei a mão do homem e percebi que ela estava estranhamente gelada.
-Boa noite peregrino. O que um rapaz tão moço faz sozinho no deserto?
Receoso, forjei uma estória. Menti para o homem ao dizer que estava viajando para casa e que acabei por perder-me no caminho. Outro tangedor de gado, um sexagenário pela aparência, jogou sua sela próximo ao lume da fogueira e pousou o corpo alquebrado pelos anos sobre o couro gasto. Depois esticou as mãos espalmadas em direção das chamas tentando as aquecer.
-Má coisa garoto, o deserto é muito ruim. Há coisas aqui bem piores que cascavéis e escorpiões.
Um outro vaqueiro, ainda imberbe e sem muitas marcas de sol e cortes no rosto, ao que parecia o mais jovem do grupo, seguiu o exemplo do idoso ao usar sua própria sela como banqueta e enquanto enrolava um cigarro argumentou em minha defesa.
-Deixe o rapaz McRead, ele é muito menino ainda. Não o perturbe com suas histórias de fantasma. Deixe ele.
Os outros três sentaram-se ao redor do fogo usando o mesmo expediente dos demais e desempacotaram dos alforjes vários itens. Puseram-se a preparar o rancho da noite. Meus olhos quase saltaram ao ver a comida. O vaqueiro de mãos frias estendeu um cantil em minha direção.
-Beba garoto, pelo jeito a sede e a fome estão te maltratando.
Esgotei o líquido em poucos goles.
Um dos homens que estava preparando o jantar deu uma risada. Ele era um índio e a grande faixa de tecido vermelho amarrada em sua cabeça servia como sinal de que se tratava de um apache.
-Esse aí não se perdeu Temple. O garoto está fugindo, deve ter feito alguma besteira.
Sem saber como agir perante a situação, balbuciei palavras inteligíveis e passei a suar e tremer.
Outro dos vaqueiros, um negro alto e com uma enorme cicatriz no rosto, entrou na conversa.
-Deixe o garoto em paz. Não é problema nosso o que ele fez ou deixou de fazer.
O ultimo a falar era um homem alto, com olhos selvagens e cruéis.
-Calem as malditas bocas! Hoje é dia de descanso! George, toque alguma coisa.
Da escuridão, a melodia de um violão surgiu. Fiquei surpreso e o índio me explicou.
-Esse tocando é o George. Ele não gosta de estranhos. O desgraçado tem uma boa voz e toca muito bem a viola. Mas ele não irá cantar hoje rapaz, está com a garganta doendo.
Todos os vaqueiros começaram a rir desbragadamente. Fiquei sem entender o motivo das risadas.
Um prato de feijão quente e uma caneca de café preto me foram oferecidos. Devorei tudo esfaimado.
O vaqueiro mais idoso jogou sua velha sela perto de mim e enquanto deitava sobre ela, perguntou:
-Qual o seu nome garoto?
Respondi sem pensar e disse meu nome verdadeiro. Deveria ter mentido, afinal, não sabia quem realmente eram.
-Bill? Muito bem Bill. Eu me chamo Cody McRead, o índio ali é o Chefe Black Cloud, o negro é o Bob Freeman, o moço educado que falou com você primeiro é o Loyd Temple, o mais novo ali é o Phil Noggs, o com cara de poucos amigos é o Cod Boyd e o violeiro se chama George Landy.
Sorri ante os nomes, pois só poderia ser uma piada. Conhecia todos eles. Eram nomes que muitos garotos iguais a mim, leram em brochuras baratas de dois centavos ou ouviram em narrativas de rancheiros ébrios e bravateiros.
Cody McRead ou Cody “Oldman” McRead: pistoleiro, assassino, ladrão de gado e estuprador.
Chefe Black Cloud: bandoleiro, assassino e conhecido por ter uma coleção de mais de cem escalpos.
Bob Freeman ou Bob “Raper” Freeman: estuprador e assassino confesso de mais de quarenta meninas abaixo dos dez anos de idade.
Loyd Temple ou Loyd “Nice Guy” Temple: ladrão, assassino e jogador inveterado.
Phil Noggs ou Phil “Knife” Noggs: assassino, necrófilo e suposto canibal.
Cod Boyd ou Cod “Mad Dog” Boyd: assassino e ladrão. Matou mais de vinte oficiais da lei e um número incontável de inocentes civis, entre eles, crianças recém-nascidas.
George Landy ou George “Death Song” Landy: assassino, ladrão e contrabandista. Cantava hinos de igreja para as vítimas antes das execuções.
Sorri e disse ao velho que a piada era ruim. Todos esses homens estavam mortos e inclusive presenciei o enforcamento de George Landy quando eu ainda era um menino.
Os vaqueiros novamente riram e a música cessou. Uma voz rouca, arrastada e gorgolejante escapou da escuridão com dificuldade. Ela fez com que eu sentisse frio na espinha.
-Sim menino... Todos... Todos mortos... Cada um de nós... E você estava lá quando... Quando a corda me foi colocada no pescoço e... A vida foi espremida para fora de minha carcaça!
George “Death Song” Landy mostrou-se sob a luz bruxuleante da fogueira. Seu pescoço estava inchado e em uma posição impossível, uma posição antinatural e profana. Senti verdadeiro horror.
-Todos mortos... E por nossos crimes... Fomos condenados... Punidos... Não conhecemos ou conheceremos... A paz da morte... Somos escravos do próprio Diabo... Seus vaqueiros... Condenados a passar a eternidade... Tangendo sua boiada!...
A voz da coisa acabou por tornar-se um gorgolejar doentio e o corpo do violeiro morto-vivo começou a convulsionar.
Temple achegou-se da abominação em pé na minha frente e colocando a mão sobre seu ombro explanou.
-Calma Landy, deixe que eu termine. São verdades garoto, todos mortos e condenados. Somos os vaqueiros do Diabo e um dia a cada dez anos, recebemos uma noite de “folga” para vagar pelo deserto. E essa é a tal noite.
Fiquei atônito de tanto pavor e ele prosseguiu.
-Veja bem garoto, não temos mais salvação, mas você... Você ainda tem chance. Volte para casa e tenha uma vida tranquila e longa. Não siga por essa seara que começou a trilhar. A única recompensa ao fim é tanger o gado do Diabo pela eternidade.
A manhã começou a raiar e todos os mortos olharam para a aurora na distancia, cheios de tristeza. Temple então ordenou.
-Agora parta garoto! O patrão está vindo e você não quer conhecê-lo. Suma daqui!
Ao longe, ecoou um som, como o de uma tempestade, que a cada segundo ficava mais forte e então a terra tremeu. Os mugidos e passadas da boiada demoníaca soaram como o prelúdio de algo e os olhos sinistros das feras, com seus brilhos vermelhos, já eram visíveis.
Horrorizado, subi em meu cavalo, sem me preocupar em selá-lo, fustiguei-o com todas as minhas forças. O medo era tanto que perdi os sentidos agarrado ao animal. Sem saber como, após um tempo impreciso, me vi ao lado do meu cavalo morto. Nuvens de tempestade cobriam o deserto e mesmo exausto, continuei a caminhar sem direção julgando que quilômetros passaram-se por baixo da minha bota.
Em certo momento, ouvi o estalar de chicotes, que mais se pareciam com o retumbar de trovões, o som de uma boiada rompendo os campos em disparada e os gritos dos vaqueiros tangendo o gado.
Procurei a origem dos sons e para meu horror a encontrei. Entre as nuvens de tempestade, tangendo a boiada do Diabo, os mortos cavalgavam. Entre eles pude ver meus amigos, Rick e Joe, condenados pela eternidade a cavalgar pelos céus como cavaleiros fantasmas.
***
Os olhos do menino brilharam de entusiasmo ao termino da leitura e correndo, entrou no saloon. Todos os presentes o observaram surpresos. O garoto procurou com o olhar a figura que perdera o diário, mas esta não estava em nenhuma mesa ou em pé no balcão. O barman, de maneira jocosa perguntou:
-E então rapaz? Um copo de leite?
Todos os clientes riram e cheio de vergonha o pequeno saiu do estabelecimento com ar de derrotado. Por horas esperou na varanda que o vaqueiro deixasse o saloon, mas o sol se pôs e o homem não apareceu. Triste, caminhou em direção de sua casa. Um vento frio varreu a rua da pequena cidade, levantando uma cortina de pó e na distância, o céu começava a se encapelar prenunciando um temporal.
Assim que entrou em casa, seu pai o admoestou por vagabundar o dia todo pela rua e o mandou dormir de estômago vazio. A tempestade começou e a pesada chuva tamborilou o telhado de tábuas irregulares. O som de uma goteira invadiu o quarto do menino que pensativo, olhava pela janela os raios que por instantes traziam a luz do dia para desafiar as sombras da noite. Mas algo estava errado, havia um som que intercalado ao do raio atraiu a curiosidade da criança. O garoto se aproximou da janela e atônito observou uma visão de horror e loucura. No céu, correndo entre as pesadas nuvens de tormenta e iluminados pela luz das descargas elétricas, espíritos cavalgavam enquanto gritavam:
- Yippie-I-a, yippie-I-o!
Dominado pelo medo, o pequeno correu para se esconder sob os lençóis e a noite demorou a passar, pois o horror da imagem dos mortos retirou todo o verniz mágico que revestiam seus sonhos. Assim que a aurora despontou no horizonte, ele recolheu todas as suas brochuras e o diário. Tentando não fazer barulho como um gato ladino, foi até a cozinha e jogou tudo entre as brasas do fogão. O fogo ressurgiu e consumiu com avidez as várias folhas de papel recheadas de aventuras e mortes. O menino já não queria mais ser um pistoleiro, pois temia um dia cavalgar com os fantasmas dos vaqueiros pelos céus.
Novamente tomando para si os silenciosos passos de felino, retornou ao quarto e a porta lentamente foi guardada no caixilho por suas pequenas mãos. Tudo parecia resolvido, mas ao olhar para a janela, a criança estancou congelada e uma pequena poça se formou no chão pelo líquido quente que fugia do meio de suas pernas.
Do lado de fora, o velho vaqueiro dono do diário o encarava com ódio em seus olhos baços. A face do idoso transformara-se em uma lívida e macilenta máscara fantasmagórica. Vermes escapavam por um buraco de bala em seu peito e uma legião de moscas recobriam os carcomidos tecidos da indumentária de trabalho. Ele estendeu as mãos, exigindo o livro devorado pelo fogo. Tomada pelo pavor a criança apenas acenou negativamente com a cabeça enquanto tremia como um filhote acuado.
***
A demora do menino foi vista pela mãe como pura preguiça e desrespeito. Já sem paciência, ela entrou furiosa no quarto do garoto e estranhou a diminuta poça de odor acre que recobria o piso e a janela escancarada, no entanto, nada lhe causou mais assombro do que a falta do filho. Em desespero o procurou em todos os cantos, mas não logrou sucesso na busca. Preocupada, colocou seu tronco para fora da janela aberta e gritou o nome do rapazote. Como resposta, recebeu um mero sussurro perdido na distância:
-Yippie-I-a, yippie-I-o.
Nunca mais se teve notícias daquele menino, mas nas noites de chuva, vez por outra, um velho soturno é visto andando pela cidade falando palavras indecifráveis que mais parecem com uma cantilena para tanger o gado.