Um caso para Sherlock.

*Importante: Depois de conversar com alguns amigos, resolvi mostrar o final do conto aqui mesmo. À quem quiser seguir com a charada, parem de ler após a parte do Legista, tudo bem? Àqueles que continuarem, espero que gostem e divirtam-se.*

O corpo havia sido encontrado na cozinha, a corda amarrada num suporte do telhado estava esticada pelo peso do homem que ali estava dependurado. O chão estava encharcado e, afora isso, o resto da casa parecia em perfeita ordem. Todos os eletrodomésticos estavam ligados; televisão, computador, freezer... a louça estava por lavar e a cama estava arrumada.

Não foi necessária perícia para chegar à conclusão de que a causa da morte fora suicídio, entretanto, os sinais no pescoço e na traqueia da vítima não eram os sinais de um caso de enforcamento usual; na autópsia, foi possível observar que a asfixia fora contínua, sendo que o único choque mais intenso aconteceu próximo ao final.

O mais peculiar, por incrível que possa parecer, ainda era outra coisa; uma informação que não foi vista pelos policiais enquanto o corpo jazia, frio, suspendo pela corda. Era algo que levantava mais perguntas que conclusões. As partes inferiores dos pés estavam queimadas, deformadas, em pele viva, como se hidróxido de sódio - amplamente conhecido como soda caustica - tivesse sido atirada ali.

O primeiro pensamento foi, obviamente, que o líquido encontrado no chão da casa era este ácido em questão, mas antes mesmo desta teoria nascer, já estava morta, pois a poça no chão era apenas água. No sangue do defunto, foram encontrados alguns remédios, calmantes, em doses que fariam um ser humano dormir por algumas horas.

O último dado obtido pela autópsia foi o seguinte: Além da asfixia, o morto havia feito muito esforço físico antes de morrer, provavelmente gritando pela dor nos pés. Os possíveis gritos que ocorreram não foram ouvidos pelos vizinhos, mascarados pelo som da televisão ligada. Foram apenas berros em vão, na noite, perdidos no escuro.

Foram tiradas fotos de todas as partes da casa, para investigação, o que não ajudou muito; a maioria dos lugares pareciam triviais. Na cozinha, um copo e uma xícara estava sobre a pia e uma das quatro cadeiras que acompanhavam a mesa estava levemente afastada; o freezer estava quase vazio, salvo por alguns pedaços de carne congelados e várias garrafas de cerveja. Na área externa da casa foi encontrado um grande recipiente plástico cheio de roupas velhas, a palavra 'doação' estava escrita neste recipiente.

No telefone, algumas chamadas perdidas; amigos, amigas, mãe, namorada. Nada fora do normal, aparentemente.

***

O caso foi arquivado, passadas algumas semanas do acontecimento, e só se voltou a falar nele quando um dos legistas que trabalhou neste caso chegou em casa após um longo dia. Ao adentar sua casa, percebeu que faltava energia elétrica.

A epifania lhe veio, de fato, ao adentrar na cozinha e olhar para o chão...

***

Acordou e se levantou, a despeito da grande quantidade de calmante que havia tomado. Seus tormentos o assombravam mesmo enquanto dormia, o privando de seu sono, suas emoções e conforto. Os surtos psicóticos estavam cada vez piores e, como se não bastasse, mais frequentes.

Por vezes o suicídio lhe passou pela cabeça, mas ele persistiu. Tinha namorada, tinha família, amigos...

Nenhum deles sabia dos surtos e da insônia, entretanto. E nem dos calmantes.

Foi para a cozinha e abriu a geladeira, a luz iluminou o ambiente e irritou lhe os olhos. Outra peça que seu psicológico lhe pregara, um feto abortado apareceu quando ele se virou – não chegou a pegar nada na geladeira – e viu o humano malformado dentro de um recipiente plástico com os dizeres ‘doação’. O feto, ensanguentado e com olhos esbugalhados ficou olhando para ele, sedento, chamando, clamando por ele... Suspirou e saiu dali, sem sequer tremer ou apresentar alguma evidência de medo ou repulsa.

Estava acostumado com aquilo.

Foi para o quintal e olhou em volta; sentia frio, se sentia sozinho, abandonado. Não demorou para que os surtos se apresentassem novamente, desta vez em forma de adulto, uma corda apertada no pescoço... Virou-se para a esquerda, e por toque do destino viu um pedaço de corda sobre uma mesa.

Levou as mãos ao bolso e tomou uma cartela com seis pílulas de calmante.

***

Amarrou a corda num dos suportes do teto e fez um laço na ponta. Logo sua vida chegaria ao fim, mas a morte teria de ser tão dolorosa quanto a vida. Pensou em como fazer, e logo lhe veio a ideia.

Elevou a corda alguns centímetros mais; agora já não conseguiria ficar em pé com o laço no pescoço – precisaria subir em algo para alcança-lo -. Saiu para o quintal e logo em seguida voltou, fez o que tinha que ser feito e esperou.

***

Tirou o recipiente do freezer e retirou dele a pedra de gelo. Deixou-a no chão e levou o recipiente para fora, para o quintal, junto do maldito feto ensanguentado.

Voltou para dentro da casa, tirou sua pantufa e, descalço, subiu na pedra de gelo. Já enfiando a cabeça dentro do laço, e então apertou-o. Logo, sua vida chegaria ao fim e todas as suas alucinações iriam embora. Não tardou e seus pés começaram a queimar. Preso ali, ele gritou, urrou, mas em vão; a pedra de gelo lentamente derreteu, fazendo o nó apertar cada vez mais, sufocando-o lentamente, sem pressa, sem piedade... já não tinha mais voz, ou forças, mas boquiaberto sentia a dor, e o frio.

No entanto, o maior frio que sentia vinha da alma.

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Escrevi este conto dias atrás, com intuito de enviá-lo para o DTRL 16, o tema sendo suicídio. Mas, felizmente (ou não), a ideia para Sonhos - a qual eu já deixava florescer há meses - brilhou, e consegui passá-la para o papel. Por sorte, alguns bons amigos opinaram, e me disseram de que Sonhos era um conto melhor, mais estruturado, interessante e que tinha algo a mais. Dei ouvido a eles, e sou grato por isso.

Não achei que Sonhos fosse agradar os leitores; eu não via em minha obra algo de especial: mas fico incrivelmente feliz pelos meus Queridos Leitores terem encontrado algo especial. Ou talvez, o conto tenha encontrado algo de especial neles; apenas este breve pensamento me deixa satisfeito, feliz e sorridente.

Ganhei de presente da minha namorada um livro do Sir Arthur Conan Doyle, de contos, e fiquei maravilhado com as escritos. O livro 'Gato do Brasil e outros contos' me serviu como inspiração; é claro que meu texto não chega aos pés de Conan Doyle. E, aliás, recomendo a leitura dos contos, pois são ótimos.

Por fim, agradeço a vocês, Queridos Leitores.

Escrever não teria sentido se não fossem por vocês.

Porto Alegre, 22/05.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 22/05/2014
Reeditado em 28/05/2014
Código do texto: T4815832
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