Não Brinque com Estranhos!


 
            Chegou em nossa casa, completamente coberto por uma fita adesiva, um enorme caixote de madeira. Dois homenzarrões, com seus macacões cinzentos, coturnos negros, subiram-na ao sótão, obedecendo ordem da minha mãe. Zangada, como quase sempre, ordenou-me que ficasse sentado no sofá, tornozelos cruzados, olhos ávidos por saber o que continha, tendo meus 11 anos, fiquei ansioso pela novidade.
            Quando eles desceram pisando alto, vi-os olhando para todo lado, como quem procura saber da vida alheia. Do lado de fora, ouvi que minha mãe ralhava, não querendo aceitar a encomenda imprevista, mas completamente sem jeito para poder recusá-la. Voltou nervosa, praguejando, e foi diretamente para o telefone de parede da cozinha começar a discar.
            Ouvi que tentava falar com meu tio Artur. Não entendi direito o assunto, mas sabia que era sobre a caixa. Esquivou-se o resto do dia das minhas perguntas e, à hora do jantar, enquanto sorvia meu caldo de galinha, foi enfática:
            - Se você entrar no sótão... Se você tocar naquela caixa...
            Não completou a frase. Não precisava completar. Era sempre assim. Ameaçava-me balançando a colher no ar como se fosse uma espada e seus olhos tornaram-se gigantescos, feito olhos de dragão.
            Fui dormir completamente frustrado. Sem poder perguntar, sem poder mexer naquela novidade, sem poder fazer nada! Vida de menino era assim: obedecer, obedecer e nada de diversão!
            Durante a madrugada, fui acordado com um barulho estranho. Era como se batessem no teto. Logo lembrei da caixa no sótão. O ruído aumentava assustadoramente. Minha mãe, sob o efeito dos remédios que tomava para dormir, sonava feito pedra. Fui ao seu quarto e tentei fazer com que acordasse. Tentativa inútil. Nem mesmo um incêndio a despertaria.
            Sem alternativa, subi a íngreme escada tremendo. Abri a porta que fez o típico ruído de ranger e notei que os barulhos cessavam. Acendi a luz. Mal andei poucos passos e vi a caixa. Parecia-me enorme. Estranhamente, no entanto, a fita adesiva que a recobria havia sido quase que totalmente removida. Aproximei-me. Era um caixote de madeira de engradado lacrada por pregos. Sabia que havia outro volume dentro e, quando aproximei-me sentindo com a ponta dos dedos a sua textura, a caixa deu um salto.
            Apavorado, descia as escadas em pressa de morte enfiando-me sob as cobertas tremendo até ser vencido pelo peso do sono.
            No dia seguinte, quando mamãe saiu dizendo que iria fazer compras na cidade, deixou-me sozinho com a criada, Dona Marta, que cuidadosamente arrumava a cozinha, sendo que, depois, partiria para uma limpeza na casa.
            Fazendo jeito de inocente, brincava disfarçadamente no meu quarto. Lembrando-me do ocorrido, subi os degraus tendo o cuidado de certificar-me que a criada não me vira.
            Abri a porta do sótão. Lá estava a caixa, sem a fita que se espalhava pelo chão. Aproximando-me, vi que alguns dos pregos que prendiam o volume no seu interior estavam projetados, como se alguém os estivesse, lentamente e com grande habilidade, removendo-os. Procurei por um martelo e tratei de concluir o trabalho.
            Sendo dia, via-me cheio de maior coragem. Os pregos da parte superior estavam quase que totalmente saltados para fora. Fazendo uso de uma cadeira, removi-os com cuidado para não ser ouvido. Eram dezenas. Ao final, percebi que o peso da tampa era muito para minhas forças infantis. O tempo correra e minha mãe retornara gritando-me. Tive que correr para fora dali.
            Somente de noite, quando ela voltou a dormir, pude voltar ao meu trabalho. Fui surpreendido, ao subir as escadas, por um forte e seco baque vindo do interior do aposento. Meu coração disparou. Fiquei um tempo parado para ver se aquilo a despertara. Sentindo-me seguro, entrei para a minha aventura.
            Não foi surpresa ver a tampa no assoalho. Em verdade, já esperava por aquilo. Subi na cadeira que por ali havia deixado e, para minha surpresa, vi que se tratava de um enorme e lindo baú de viagem. Haviam etiquetas de aeroportos e portos de quase todo o planeta recobrindo-o. Passei a ler cada um, lentamente. Meu tio Artur era um homem misterioso do qual minha mãe quase não falava. Soube apenas que saíra de casa muito cedo e que aprendera coisas fantásticas. Certa vez passou o Natal conosco, quando papai ainda não havia morrido, uns 2 anos atrás, e fez ótimos truques de mágica.
            Antes de ir embora, despediu-se de mim dando-me um beijo na testa e falando palavras que nunca esqueci:
            - Acredite na mágica do mundo que nos cerca!
            Não entendi nada. Minha mãe sempre dizia que ele era louco e cheio de fazer graça. Curioso, dei duas batidas na tampa. Para minha surpresa, ouvi duas batidas secas vindo do interior. Passado meu susto inicial, perguntei sussurrando:
            - Tem alguém aí?
            A caixa respondeu com duas batidas. Pude, então, observar uma luminosidade saindo pela sua fechadura. Um pequeno facho, como se fosse vivo, moveu-se até chegar ao fundo de uma das laterais. Pude observar que havia uma chave grudada com fita adesiva. Tratei de removê-la, mas tive um certo trabalho.
            Havia pouco espaço para introduzir a chave, habilmente, graças aos meus dedos miúdos, consegui fazê-lo. Como se algo ganhasse vida, uma vibração intensa tomou conta do baú. Desci da cadeira e afastei-me andando de costas até batê-las contra uma parede e assim fiquei observando.
            Como por encanto, as madeiras do caixote que ainda envolviam o baú, foram sendo removidas por mãos invisíveis. Majestoso, coberto por um veludo vermelho tendo detalhes dourados nas bordas, sua tampa abriu-se e um clarão fabuloso tomou conta do ambiente inteiro.
            Uma luminescência esverdeada propagava-se. De modo inusitado, passei a ouvir uma música circense, doce e encantadora. Do interior, vi emergir uma forma esfumaçada que foi ganhando vulto sobre o assoalho até se transformar em um majestoso unicórnio. O gracioso animal corria pelo espaço, livre e solto, sendo que a cada uma das suas pisadas brotavam luzes multicores que tingiam o assoalho e as paredes. Em seguida, emergiram pequenas criaturas, fadas, com seus sorrisos graciosos invadindo e transmudando as paredes em espaços infinitos, jardins, colinas, lagos e paragens exibindo casas em formatos engraçados a perder de vista.
            Chamaram-me a dançar e a correr por todo aquele mundo fantástico que se abriu. Não sei quanto tempo passei por ali, mas não tinha mais nenhuma pressa de voltar para casa, ou para minha vida anterior. Brincava sem cessar, bebia líquidos e sucos maravilhosos que me serviam diretamente das frutas coloridas e engraçadas daquele mundo incrível. Vieram depois os anões, os centauros, os gnomos, os magos e gigantes. Todos dóceis e amorosos.
            Um dia, quando lembrei de minha mãe, senti como se transportado dali, vendo-a chorando em nossa sala, cercada por policiais e quase tive vontade de correr para abraça-la. Nisso alguém segurou no meu ombro. Era uma linda menina loira, com olhos de um azul profundo que me perguntava:
            - Vamos brincar?
            Deixei aquela tristeza passar e voltei, alegre e livre, a correr pelo meu paraíso...