Ian

"E quando longe de casa

Ferido e com frio

O inimigo você espera

Ele estará com outros velhos

Inventando

Novos jogos de guerra..."

 

Canção do senhor da guerra - Legião Urbana

 

A explosão havia sido potente demais. Agora que recuperei a consciência, posso observar o estrago ao meu redor. Tento me mover e... Ai! Sou invadido por uma dor intensa. Até mesmo pra respirar está difícil. Parece que a cada movimento minhas costelas se movem dentro de mim. Com esforço, me sento e olho minha perna; a coxa está perfurada por um pedaço de ferro e sei que não poderei me mover dessa forma. Levo alguns minutos pra tomar coragem.

-Aaahhh...!

Com um único puxão, retiro o objeto estranho do meu corpo. A dor é lancinante. Mas, não posso parar. Assim é a guerra, preciso resistir. Aparentemente minha tropa toda está morta, o forte destruído. Nossos inimigos aproveitaram a madrugada e nos surpreenderam com um ataque aéreo. E agora estou aqui, tentando amarrar a manga do meu uniforme com força suficiente para não morrer com a perda de sangue.

-Ian...

Tenho a impressão de ouvir um sussurro em meio aquele silêncio mórbido. Mas, não é possível. Não vejo qualquer movimento entre os escombros. Fico atento na esperança de ouvir novamente. talvez não tenha sido o único sobrevivente, afinal.

-Ian...

Dessa vez, consigo identificar a voz. Graças a deus! Não estou só. Com um esforço que nunca achei que precisaria fazer um dia, me levanto e arrisco alguns passos na direção em que há um corpo se movendo debilmente. Enquanto caminho, observo os corpos dos outros. Da forma como estão, me considero com sorte por ter sobrevivido e por não ter tido ferimentos mais graves. Posso ver quem me chamou agora; é o general Walger. Está com as pernas imprensadas sob pedaços de concreto, seu rosto está coberto de sangue vindo de um corte profundo na cabeça. Ele tenta erguer uma mão em minha direção, mas não consegue. Está fraco demais.

-Não se esforce, general.

Enquanto sento ao seu lado, vejo-o mover os lábios com esforço, mas não sai som algum. Suas mãos trêmulas retiram o revólver do coldre com dificuldade, mas não consegue erguê-lo. Arrasta-o sobre o peito em minha direção e eu olho sem me mover. Não é preciso palavras. Seus olhos começam a revirar nas órbitas e sua respiração acelera enquanto ele luta tossindo sangue. Sei o que tenho que fazer. E não é hora de hesitar. Pego o revólver de suas mãos e verifico a munição. Há apenas uma bala para meu azar. Posiciono o cano em sua cabeça e puxo o cão.

-Boa sorte, general. Foi bom servir contigo.

O estampido do disparo ecoa pelas ruínas do forte. Agora, mais uma vez estou sozinho. Sei que não posso ficar parado, pois logo os inimigos aparecerão. Falta pouco para amanhecer. Com a mão esquerda sobre as costelas, me levanto novamente. Caminhando entre os corpos de meus companheiros, procuro por alguma arma que não tenha sido destruída. A cena é aterradora; membros separados dos corpos, alguns queimados ou perfurados por pedras e pedaços de metal. Todos que um dia foram meus amigos, que lutaram comigo em muitas batalhas estão mortos. O que faço? Não resta mais esperança, estou fraco... Consigo ir até o lado oposto do forte, onde o bombardeio não atingiu tanto. No caminho, encontro algumas armas, mas preciso que apenas uma funcione. Não preciso de rifles, nem granadas ou coisas do tipo. Não estou em condições de lutar, a lealdade ao meu país deixou de fazer sentido agora.

Pego uma pistola e retiro o pente para verificar a munição. Perfeito. Está carregada. Devolvendo-o ao lugar, levo-a comigo. Olhando para uma resistente e única escada de pé, me preparo para subir até a cabine do forte. Ai! A dor me envolve, levo mais tempo e mais esforço do que imaginei. Mas, finalmente consigo. Agora posso ver o horizonte; desejo que essa seja minha última visão. Faz com que eu me lembre da vida que deixei para trás. Meus pais... Uma bela mulher e um filho que jamais conhecerei. Ela estava grávida quando fui convocado. A abracei quando começou a chorar. Entre os soluços, ela dizia:

-Por favor, Ian, não vá...

-Não posso e você sabe. Por mais que eu deseje ficar, não posso ignorar isso.

-Mas, e nosso bebê? Estou no meio da gravidez e preciso que esteja comigo.

-Vai dar tudo certo, querida. Farei o possível para estar de volta a tempo.

-Promete?

-Por você e por nosso filho. Meus pais a acolherão enquanto eu estiver fora.

-Mas, e se acontecer alguma coisa? Eu não posso te perder, Ian. Não conseguiria.

-E não vai. Prometo a você que voltarei como herói de guerra e não vou sair do seu lado nunca mais.

E eu a beijei. Naquela noite Danika e eu fizemos amor intensamente e eu jurei várias vezes que nunca a abandonaria. Na manhã seguinte, quando nos despedimos, olhei em seus belos olhos pela última vez e desejei não ter que partir. De meus pais, a lembrança que trago é de nosso último abraço. Minha mãe, chorando, tinha a face avermelhada e a expressão triste e cansada. Meu coração doeu.

-Eu te amo, meu filho. E estarei intercedendo por você todos os dias.

-Obrigado, mãe. Eu também te amo.

Ela me entregou uma lata, onde havia biscoitos ainda quentes. Eu comia apenas um a cada noite para me lembrar sempre da minha casa. De meu pai tive a promessa de que sempre cuidaria de minha família. Sei que hoje, tendo se passado quase um ano, todos ainda esperam por mim e me sinto um covarde por deixá-los dessa forma. Mas, não há outra saída. Sem desviar os olhos do horizonte, vejo os primeiros raios de sol. Com eles, o motor dos veículos inimigos. Por mais que eu queira viver, que queira voltar para casa, sei que não é mais possível. Se me pegarem não me matarão rapidamente. Vão me torturar, me fazer desejar a morte a cada segundo. Lágrimas escorrem dos meus olhos enquanto lembro-me dos olhos de Danika. Eles são a única coisa que desejo agora. Encosto o cano da pistola em minha fronte. Soluço uma vez e a coragem me falha. O som dos motores fica mais próximo. Fecho os olhos e aponto para o meu peito.

-Não é possível!

Estou começando a ficar mais nervoso, irritado. Puxar o gatilho deveria ser algo fácil, afinal, já fiz isso muitas vezes e matei vários homens durante essa guerra. Olho para o horizonte mais uma vez. A bandeira inimiga surge entre as árvores e vejo o primeiro veiculo. Estão próximos. Começo a suar, as lágrimas correm mais intensas agora.

Tento controlar minha respiração. Olho a pistola mais uma vez. Os carros estão muito perto agora e param há poucos metros. De onde estou, não podem me ver e isso me dá uma pequena vantagem. Fecho os olhos novamente e sussurro:

-Eu te amo, Danika.

Tento pensar apenas nela enquanto abro a boca e sinto o gosto metálico do cano da pistola. Concentro-me na linda visão de seus olhos azuis e seu sorriso sincero. Nesse momento, puxo o gatilho.

 

Fim.

Aureus Mortem
Enviado por Aureus Mortem em 17/05/2014
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