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  Cheguei a pequena sede da policia da cidade, vi mais cinco policiais fardados, sentados em suas cadeiras. Estavam todos tristes pelo ocorrido. Um deles tomava depoimento de uma senhora que havia presenciado o acidente. Passei por eles seguindo o delegado. Passamos por um portão de grade e avistei José, sentado, debruçado em seu sofrimento. Estava desolado, no canto da cadeia chorando as mínguas, lamentando pelas prematuras mortes que causara.

 
 - José? – Chamei-o e ele se levantou, revelando os olhos vermelhos e melancólicos. 
 
 - Você precisa salvá-la antes da sexta – feira santa. Depois disso não terá volta, detetive.
 
 - Eu li um livro ontem – O disse – Vocês acreditam mesmo nisso? Não pode ser verdade! – Eu rebati descrente e ao mesmo tempo imerso em dúvidas.
 
 - O diabo existe, detetive, e ele pode ser muito sedutor. Tenha cuidado! Essa é uma lenda proibida por aqui. Joyce não sabe o que está fazendo. Não sei o que minha filha quer com isso! – Contou.
 
 - Qual a novidade que você ia me dizer? – Perguntei.
 
 - Ela deixou um bilhete debaixo da porta, ontem. Disse que volta na sexta. Á impeça, por favor! – Ele pediu, me entregando a carta escrita em folha de caderno comum. 
 
 “Papai, já estou voltando. Logo seremos uma família feliz. Amo vocês!” 
 
 Li o bilhete ainda perplexo. Por que afinal José queria que eu a impedisse? Ele não queria que a filha voltasse?

  O delegado estava ao meu lado. Tentei obter mais alguma resposta de José, porém ele apenas deu as costas para mim e ajoelhou-se no canto da cela, se pondo a resar.

 
  Mas por quê? Eles realmente acreditavam naquela lenda que li à noite? Mas aquilo não poderia ser real. José, ajoelhado no canto da cela começou a orar em línguas. Parecia um cântico. Eu não entendia o que falava, mas podia sentir a perfeita comunhão que exalava de seu espírito, enquanto as lágrimas em fuga corriam ligeiras de seus olhos.
 
  Tudo batia perfeitamente, mas ainda assim não podia crer que a garota fizera um pacto com o demônio. E se era isso, onde ela estaria? A encruzilhada, o ovo que o velho Baltazar entregara a ela, a pena de galo encontrada debaixo da cama, a febre de Joyce, a data em que ela desapareceu, a garrafa de vinho que havia sido roubada conforme o próprio pai havia relatado.
 
  Não conseguia entender o porquê de Joyce querer aquilo. O que ela desejaria tanto a ponto de fazer uma aliança com o diabo.   Foi aí que enfim entendi o porquê do desenho de Roberto. A garota, o diabo, o boi. Ele tentava protegê-la. Por isso havia ficado feliz ao me ver. Ele não queria que ela fizesse isso. Pobre Joyce – Pensava com meus botões.
 
  Saí da delegacia, certo de que ela realmente estava viva, e precisava encontrá-la antes que o pacto fosse selado. O delegado veio em minha companhia. Foram dois dias intensos, procuramos novamente, certos de que a encontraríamos em algum canto. 
 
  Os dias passaram e me deparei com o 39º dia, estava cansado, obcecado. Voltávamos de uma tarde extremamente exaustiva. Percorremos campos, fazendas, casas de moradores, acampamentos, tudo o que se podia imaginar, mas não havia sinal nenhum da garota. Havia me dado por vencido. 
 
  A cidade estava de luto. O que antes era um paraíso, de repente se tornou um inferno. Não bastasse a morte das duas crianças, a primeira notícia que chegou até mim é a de que José amanhecera morto na delegacia, o pobre homem havia se suicidado. Foi encontrado dependurado na grade, enforcado com um cinto. Fui até lá e vi a cena degradante. Uma enorme tragédia. 
 
  Precisava achá-la até meia noite. Minha arma estava na cintura. O delegado tal qual uma sombra, me seguia.
 
 - Pra onde estamos indo? – Perguntou, entrando em meu carro e deixando a viatura à mercê do tempo. As nuvens acinzentadas encobriam o céu, enquanto a lua nos despia de toda sua luz.  
 
 - Pra sua casa – respondi – Preciso de seu filho – Logo lhe contei tudo que o garoto havia me contado, e ele, em resposta, me encarou atônito.
 
 - Eu vou dar uma coça nesse moleque! – Ele ameaçou. 
 
 - Não, não vai. Preciso saber onde ele conseguiu isso. – Respondi, revelando o livro que ensinava sobre aquela lenda.
 
 - Familiá? – Onde conseguiu isso? – Ele voltou a indagar.
 
 - Seu filho deu a ela – Eu revelei.
 
 - Mas, mas onde ele encontrou? – Ele perguntou surpreso.  
 
- Um maldito diabo. Um pacto. Vocês só podem estar loucos! Joyce quer criar um diabo!
 
 - Ela quer? Mas – Ele dizia enquanto o interrompi.
 
 - Joyce precisava de alguém que tivesse a receita. Por isso ela seduziu seu filho. Aí ela ainda precisava de algo mais importante, o ovo de um galo. E quem poderia ter isso? – perguntei, mas eu já sabia a resposta.
 
 - Baltazar, e seus galos de briga – Ele raciocinou.
 
 - Isso mesmo, mas ela não tinha dinheiro, e então pagou o velho de uma maneira menos honrosa. E ainda tem a garrafa de vinho que ela roubara de seu pai. A garrafa para prender o diabo. E também há a encruzilhada. Ela foi até lá e ficou esperando, porém pisou encima de um formigueiro. O pé afundou na terra, e ela mesmo assim agüentou, enquanto a febre chegava afoita. Tirou sua blusa, colocou o ovo debaixo da axila e fez um pacto com o diabo, entretanto o pacto só seria concluído se ela chocasse o ovo por quarenta dias, e isso termina hoje. Seu pai não podia saber, tampouco a mãe. Ela então entrou pra dentro escondida. Mas eles foram vê-la e a mãe percebeu a febre dela. E quando ameaçaram chamar o médico, ela decidiu fugir. Pulou a janela, dava pra ver as pegadas na parede. E pronto, desapareceu. Não foi levada por ninguém. Ela estava se escondendo o tempo todo, protegendo uma lenda idiota. Mas para quê? Seu filho deu o livro de receitas. A pergunta é; quem deu esse livro a ele? Você? 
 
  - Eu?? Eu não fiz um pacto com o diabo, se é o que está insinuando! – Respondeu, rispidamente.
 
 - Pois é, então só há uma pessoa em sua casa que pode ter feito. Só não imaginava que tão bela assim, sua esposa fosse capaz disso – O homem me olhou ironicamente e sorriu.
 
 - Bela? Mas de quem está falando. Aquela velha? Judith é horrorosa. Não precisa mentir pra mim, eu mesmo não transo com ela há anos, se é o que quer saber. – A principio não entendi, mas logo entenderia.
 
  Chegamos até a casa e entramos. Joaquim estava sentado na sala, e pude ver a foto de Judith, ela era horrorosa mesmo, magra, raquítica, os dentes podres e os olhos não emanavam vida alguma. Os seios antes suculentos estavam caídos, despencados parecendo estar presos por um sutiã enorme. Ela então saiu do banho usando uma toalha e sorriu para mim, estava na minha frente, e eu pude vê-la como ela era.
 
 - Olá, detetive! – Ela me cumprimentou, enquanto sorria desgraçadamente.
 
 - Então é isso. É isso que pediu para ele? Você tem um familiá? Você o usa para camuflar-se, para ludibriar homens que deseja? – Eu perguntei, enquanto o delegado a fitava, mascando seu fumo.
 
 - Por que acha que gosto tanto desse fumo. Prefiro isso a ter que beijar a boca dessa desgraçada! – Revelou cuspindo uma saraivada de tabaco.
 
 - Quem pegou meu livro? – Ela perguntou com a voz irritante de uma mulher mesquinha.
 
 - O seu pai disse que você havia roubado dele. Que você queria meu pai há muito tempo. E foi por sua culpa que mamãe morreu.  – Revelou Joaquim.
 
 - Baltazar é seu pai? – Perguntei, completamente confuso.
 
 - Sim, ele é – Disse o delegado – Era um homem bom, mas sua mulher o traia e ele não suportava isso.  Antigamente ganhava uns trocados com suas brigas de galo, mas ele teve os olhos arrancados pelos próprios galos. Dizem, que fez um pacto com o Diabo e criou essa daí, sua filha, após sua mulher ter morrido. Casei-me com ela há alguns anos, mas ainda me pergunto por que fiz essa loucura – O delegado disse cuspindo seu mascavo como se amaldiçoasse a própria vida.
 
    - Você usa seu familiá pra nos seduzir. É isso? – Naquele momento tive certeza que sim, mesmo que ela não me respondesse. Olhei para o rosto da mulher e senti a total repugnância de meu ser. Eu havia sido enganado, e o que mais me incomodava nisso tudo é que ainda assim eu não podia odiá-la. Naquele exato momento entendi o porquê do delegado não abandoná-la.
 
 - Não foram os galos. Ele mentiu para todos. Meu pai furou os próprios olhos quando minha mãe morreu. Ele não queria mais olhar para o diabo. Não queria pedi-lo mais riqueza, mais nada. Tudo que havia feito até então foi pela minha mãe e ainda assim ela o havia traído. O diabo nos leva algumas coisas detetive. Como minha mãe. Mas ele te da qualquer coisa. O que você quer detetive? – Olhei-a confuso, ela parecia ler meus pensamentos e eu temi não ceder ao impulso de querer possuí-la outra vez. Aquilo não era um feitiço, e sim uma maldição.
 
  - Vocês são um bando de loucos! Tenho que sair daqui – Eu disse, exausto, enquanto me perguntava o real motivo de Joyce fazer aquela loucura. Olhei para Joaquim, e vi que ele não podia realmente me ajudar. E perguntas me atormentavam: Se ela estava sumida há quarenta dias, como ela estava comendo? Alguém devia a estar ajudando, mas quem?
 
  O tempo não parava. Podia ouvir os ponteiros sorrateiros, e ao mesmo tempo inquietantes de meu relógio, a cada segundo se deslocarem num estalo quase inaudível, entretanto permanecia compenetrado em meus pensamentos. Raciocinava, esforçando-me para chegar a alguma conclusão. Eu precisava achá-la. Foi aí que algo veio à cabeça.
 
 - Delegado, precisamos ir agora! – Eu o disse. O homem apenas assentiu com a cabeça e me seguiu. Entramos no carro e dei partida. Ele, confuso me olhava, enquanto o cheiro da poeira já não  incomodava tanto. Por onde passamos não havia fogueira sequer, estava tudo tão escuro. Os postes de madeira sustentavam as luzes fracas que iluminavam nosso caminho. Os faróis do Opala batiam contra a terra batida e o cascalho solto. As ruas estavam esburacadas e os primeiros pingos de chuva começaram a bater contra o pára-brisa do carro. 
 
 - Para onde estamos indo? – Ele perguntou.
 
 - Para casa de Joyce – Respondi, com tamanha certeza. Olhei de relance para meu coldre e me perguntei se realmente algum dia puxaria aquele gatilho. Dirigi por mais alguns minutos, desbravamos a noite e lá estava a casa. Uma luz acesa chamava a atenção, e nos guiava para o local. Descemos do carro, e bati  porta, chamando por Tereza a mãe de Joyce.
 
 - Não deve ter ninguém aqui – Sugeri, e então o delegado sussurrou para mim.
 
 - Ouviu isso! – Observou, com o hálito fedorento, e ouvi algo se mover dentro da casa, como fosse algo se arrastando.
 
 - Quem está aí?  Tereza deve estar no velório de José – Ele disse.
 
 - Suponho que não. Vamos entrar, agora – Ameacei, empunhando a arma. Vasculhamos ao redor da casa, e encontramos um pé de cabra. Arrombamos a porta, e entramos seguindo o som do choro abafado, e de algo arranhando o piso. Chegando ao quarto, lá estava. 
 
 - Não é possível – Gritou, o delegado, correndo na direção da cadeira que estava caída à nossa frente – Quem fez isso?
 
 - A mãe é claro. Tudo está se encaixando agora. Ele estava tentando me avisar. Roberto fez aquele desenho para que eu a impedisse – Eu olhava para a cadeira batendo contra o piso, Roberto estava amordaçado e amarrado à ela. A testa sangrava, pois havia batido a cabeça contra o chão na tentativa de escapar dali. Ele babava e parecia furioso. Eu corri até ele.
 
 - Roberto, cadê sua mãe? – Eu perguntei.
 
 - Mãe... Diabo... Pacto... Joyce... Joyce... Não... não cura! Não cura! Diabo quer Joyce! Não! Não! Eu salva ela! – Ele disse, parecendo não estar nada bem. Roberto estava alterado.
 
 - Onde sua mãe está? – Perguntei novamente.
 
 - Alto da arvore, brincar antes do acidente. Casa! – Respondeu, apontando para uma foto sobre a cômoda. Olhei para foto preto e branco. Andei até ela, fixei meus olhos e vi do que ele falava.
 
 - A casa da arvore que vocês brincavam. É lá que Joyce e sua mãe estão? Precisamos ir! – Disse, enquanto que o delegado me olhava, pasmado. Antes dei outra vasculhada na casa, enquanto o delegado libertava Roberto. 
 
 - O que você entendeu do que ele disse? – Me perguntou quando regressei.
 
 - É óbvio demais, delegado. A mãe dele é a culpada. Joyce e a mãe tramaram tudo escondidas de José. Ele não sabia de nada. Roberto não aceitou, soube da morte do pai e se revoltou ainda mais. Ele disse que a mãe e Joyce estão envolvidas com o diabo, fazendo um pacto. Decerto ele deve ter tentado detê-la. Ela é quem estava levando comida para Joyce. 
 
 - Vamos para o carro. Sei onde fica essa casa, cacei muito por lá – O delegado propôs. Ajudamos Roberto a se levantar.
Dirigi por cerca de quarenta minutos, havíamos procurado naquela antiga fazenda, mas não tínhamos visto sinal algum da garota. Passamos pelo local do acidente e Roberto se mostrou agitado. Logo vi o trilho que entrava pela mata fechada. 
 
 - É por aqui – Afirmou, o delegado. Eu encostava o carro. Roberto olhava para todos os lados como se estivesse com medo de um possível estouro de bois. Ele não voltava ali há tempos.
 
 - Calma, rapaz, não há mais bois por aqui! – Seguimos pelo trilho cerca de dez minutos de caminhada. A noite caia e a chuva parecia querer surgir há qualquer momento. Andávamos em fila indiana, ouvindo os sussurros da noite, os animais, pássaros, e o quebrar dos galhos. O vento soprava, e agitava as árvores que nos cercavam.  Mais á frente vimos uma luz cerca de trinta metros do nosso alcance. A velha casa de madeira jazia no alto de uma árvore. Pude ouvir murmúrios, e tive a impressão que era a voz da mãe de Joyce e de outra pessoa, uma garota cuja voz ainda não havia ouvido.
 
 - Joyce! – Gritou Roberto. Em resposta, espantadas, as duas apareceram na pequena janela da casinha, e pude vislumbrar o semblante preocupado de ambas que se entreolharam receosas.
 
 - Desçam daí, agora! – Ordenou o delegado. As duas olharam para Roberto e desceram. Roberto estava confuso, e então correu para abraçar Joyce. Tentei impedir, mas não pude.
 
 Joyce era uma garota ainda mais bonita de perto, tinha um olhar sedutor, mas parecia bem mais magra que na foto. Mais próximo delas vi o ódio que a mulher emanava em minha direção.
 
 - Por que isso? Onde está o ovo? – Perguntei apontando a arma para as duas.
 
 - O que você tem com isso detetive? – A mãe perguntou – Não vai nos atrapalhar, volte para sua cidade grande. É lá que você pertence! – Tereza me disse, provávelmente amaldiçoando-me. O delegado a encarou e me aproximei dela. Senti algo tocar minha nuca. Um empurrão, e caí no chão.  
 
 
 - Minha cidade enfim tem algo mais chamativo. Um caso de verdade. E se eu solucionar isso poderei fazer esse lugar crescer. Pense no slogan, “São João do Paraíso, a cidade das lendas malditas”, ou melhor, “A casa do Diabo”. Ironia não? O paraíso ser a casa do Diabo – Ele me disse apontando a arma em minha direção – E não é um detetive que vive as sombras do velho pai que vai se intrometer. 
 
 - O ovo está se quebrando mamãe. Ele está nascendo! – Joyce disse esperançosa, enquanto segurava o pequeno e raro ovo em suas mãos. A casca estava sendo rompida por minúsculas garras escamosas, e um mísero choro maléfico, rouco e amaldiçoado já começava a ser ouvido enquanto os olhos do pequeno diabo vislumbravam o mundo a sua volta. 
 
  A garota, a mãe e Roberto estavam lado a lado. A mãe segurava a garrafa de vidro nas mãos, enquanto o delegado mascava o fumo e sorria mirando minha cabeça. Ele preparou-se para apertar o gatilho, quando repentimamente veio o estouro.

Uma forte luz iluminou a mata. A cerca de 30 metros as árvores desgarravam-se da terra e caiam, como efeito dominó.

 
  O delegado surpreso virou-se para tentar entender o que era aquilo, e num súbito abracei a oportunidade. Apontei minha arma para ele. O homem não satisfeito com a situação, e obstinado virou-se novamente para mim e como a primeira vez sua barriga enorme queria saltar para fora da roupa. Ele cuspiu pela ultima vez o maldito fumo, e antes que puxasse o gatilho, disparei. 
 
  A bala ligeiramente adentrou pelo pescoço do delegado e varou na nuca, e o porco caiu se engasgando com o próprio sangue. A última coisa que viu foi o diabo, que com a pele visguenta e amaldiçoada era colocado dentro da garrafa. À nossa frente o Veraneio foi barrado por uma enorme arvore, e silenciou-se abruptamente. A fumaça escapava do motor, antes barulhento, enquanto os faróis ainda nos iluminavam. De dentro do carro, Joaquim saiu vindo em nossa direção.
 
 - Joyce! Não faça isso! – Ele implorou, enquanto que ela e a mãe já estavam sob minha mira.
 
 - Larguem isso agora! – Eu disse apontando a arma para as duas. 

– E você, garoto, fique onde está! – Ordenei. Para minha surpresa,Tereza sacou uma faca e disse que não iria permitir que eu a atrapalhasse a recuperar o filho.

Disse ainda que somente ela e Joyce entendiam aquela dor, nem mesmo José as compreendia e por isso não puderam lhe contar nada. Eu queria que ela recuasse, mas ela avançou. Atirar em uma mulher era algo ainda mais difícil entretanto não tive escolha.

 
  Disparei no momento em que ela corria com a faca içada, e bradava feito uma lunática endemoniada.

O impacto fez com que ela fosse lançada para trás. A bala acertou o peito em cheio, e ela caiu, morta. Joyce e Roberto gritaram desesperados pela vida da mãe. 

 
  A filha ainda me amaldiçoou, segurou a garrafa pronta para possivelmente pedir que eu morresse naquele exato momento, enquanto Joaquim abraçava o pai que jazia caído ao chão.
 
 - Não faça isso, Joyce! - Pedi. Apontei a arma, e vi Roberto se projetar na frente dela. Ele balançou a cabeça negativamente, e chorou, tirando a garrafa das mãos da irmã, que a principio relutou, porém ele era mais forte e a arrancou dela. 
 
 - Eu bom assim, Joyce. Não arrepender de salvar você, não querer te perder sempre – Joyce chorou. As lágrimas surgiram feito cascata dos olhos, e  eu sabia o que devia fazer. Apontei a arma na direção deles. Fiz sinal para Roberto, e o garoto entendeu. Lançou a garrafa para o alto, e abraçou a irmã, um abraço afetuoso, fraternal. Viraram os olhos para o chão e recostaram as cabeças, se protegendo do que viria do alto. 
 
 Mirei e disparei contra o vidro, ouvimos apenas o som arranhado de um grito de despedida, um grunhido demoníaco, mas quase mudo. Os cacos caíram chamuscados de sangue, e se perderam pelo negrume da noite. O diabo estava morto, assim como o delegado e Tereza. Joyce caminhou até Joaquim e abraçou-o. Ele se mostrou feliz por vê-la bem, e juntos saímos dali. 
 
  No outro dia de manhã, preparei-me para sair daquela cidade. Despedi-me de todos, deixei que Judith continuasse com seu familiá, mas fiz isso porque acho que ainda estava enfeitiçado por ela, mesmo após saber que tudo não passava de mera ilusão.

  Joyce e Roberto foram morar com os tios em uma cidade vizinha, uma cidadezinha pacata como a própria São João do Paraíso. Antes de partirem, Joyce veio até mim.

 
 - Obrigado por me salvar das garras do diabo – Agradeceu com um leve sorriso. Eu a olhei, surpreso. Ela era uma garota aparentemente inteligente, sensível, que enfim estava livre da culpa que sentia pelo que havia acontecido com o irmão. Lembrei-me de cada pista, de cada uma delas. Olhei-a nos olhos e lhe disse:
 
 - Tome cuidado, garota.
 
 - Você também, detetive. E... – Ela dizia.
 
 - E o que? – Perguntei curioso.
 
 - Cuidado com o que vai desejar – respondeu-me, sorrindo. Entendi prontamente a sagacidade dela.

Rumei para minha cidade, deixando para traz a poeira de um caso solucionado. Encontrei tudo como antes, o cheiro da poluição, o transito intenso, o rebuliço da cidade grande e todos os prazeres daquele mundo que eu tanto sentia falta. 

 
  Entrei na delegacia certo de que minha promoção estaria sobre a mesa. Caminhei pelo corredor sob os olhares de todos. Pareciam sérios e surpresos. Na metade do caminho, vi a primeira caricatura desenhada em papel oficio. Era um diabo abraçado a mim. E pelo restante do corredor haviam várias outras, xerocadas. Todos vendo minha total frustração começaram a rir e cochichar.  Continuei firme até a sala de meu superior que me aguardava à porta. 
 
 - Bom dia, detetive – Ele me cumprimentou.
 
 - Bom dia, senhor – O respondi enquanto as mãos dele pousaram em meu ombro.
 
 - Me responda uma coisa. Que diabos você bebeu ou usou naquela cidade para me escrever um relatório tão idiota como esse – Vi-me acuado, entramos na sala e ele aumentou o tom de voz – Acha que isso é uma piada? Te dei uma oportunidade em consideração a seu pai e esse relatório absurdo é a resposta que me dá?
 
 - Mas – Eu tentava falar.
 
 - Mas nada! Você não pegará caso algum aqui rapaz, e nem em nenhuma unidade. Foram cinco mortes enquanto você esteve na cidade. E o pior é que não havia sido nem um seqüestro. Sabe o que isso está refletindo sobre esse departamento? – Ele me perguntou apontando o dedo para minha cara.
 
  Não houve conversa, ao menos não para mim . Saí da sala e fui em direção a minha mesa pegar meus pertences. No caminho as lágrimas teimavam em rolar. Um misto de duvida e certeza tomava meu ser. Pensei se realmente estava disposto a fazer aquilo. E olhei de relance para minha maleta. 
 
 Lembrei-me do que Joyce havia me dito; “cuidado com o que vai desejar”. Naquele momento decidi que era hora de virar o jogo. Não me restava mais alternativa alguma. Eu teria o que eu sempre quis.
 
  Dobrei o corredor mudando meu rumo, e segui até o banheiro. Não havia ninguém. Todos na verdade me esperavam ansiosos em ver minha desgraça, mas eu tinha um trunfo.
 
  Abri a maleta como quem abre um bombom que tem um desejo surpresa. Ou quem esfrega uma lâmpada mágica, irrequieto, tenso. O que faria a seguir mudaria toda minha vida. Enquanto a brecha da maleta se abria, e revelava meu talismã, meu ídolo, me lembrei de como eu havia o pegado.
 
  O delegado estava desamarrando Roberto, e eu ainda tentava entender as pistas, todas se amarravam até então. Porém o que realmente me estranhava era a maldita pena debaixo da cama. Depois que havia lido o livro de receitas, tive a certeza que havia algo de errado. Caminhei seguro que encontraria a resposta. Ao chegar no quarto de Joyce destrocei o travesseiro, rasguei-o em pedaços sobre a cama e então ele caiu... Quente, vivo... Pronto para sair da casca. Um segundo ovo estava escondido ali, como uma apólice de seguros. Sendo chocado dentro do travesseiro por todos aqueles dias. Apanhei-o e coloquei no bolso indo de encontro ao delegado e a Roberto. Mas não tinha certeza se teria coragem de usá-lo.
 
 
 Olhando agora para a garrafa e vendo o pequeno diabo através do vidro, sinto que posso ter tudo o que quero. O olho nos olhos nesse momento e ele parece-me sedutor. Suas orelhas pontiagudas, a pequena calda escamosa e o corpo visguento já não me assustam. É como se ele fosse um animal de estimação ou uma criança com poderes especiais, capaz de realizar todos meus desejos.Um santo, um demônio, um deus... E o melhor de tudo é que ele é só meu.
 
  E agora o que fazer? Bem, vou fazer meu primeiro pedido, e selar logo esse pacto.
 
 - Portanto, eu desejo...


 
 
Fim!

  Esse texto trata-se de uma republicação que anteriormente foi postado como "Lendas Malditas"

  Se tratava de uma série de contos sobre lendas adaptadas para o terror, e decidi usar esse texto nessa edição devido a falta de tempo para investir em uma estória nova. Peço desculpas por isso. Poucas adaptações foram necessárias e o tema principal é...

 
"Ídolos"
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 15/05/2014
Reeditado em 23/05/2014
Código do texto: T4807809
Classificação de conteúdo: seguro
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