Ambição e usurpação

"Ninguém sabe como é

Ser o homem mau

Ser o homem triste

Atrás dos olhos azuis"

 

Behind Blue Eyes - Limp Bizkit

 

 

Noite de terça-feira. Osvaldo Muniz janta em sua casa, acompanhado por sua esposa e filhos.

-Então, amor. –a esposa comenta- Parece preocupado. Algum problema?

 

-Algum não, todos. Parece que a firma está caindo em minha cabeça. Acabou de sair o último modelo dos carros da CFA com as janelas em aço revestido sem cegonhas suficientes pra entregar e estou cheio de problemas com alguns empregados. É muita coisa pra um só resolver.

-Mas, o que houve, amor?

-É uma secretária que está dando o maior trabalho. A mulher é maluca, entende? Já estou pensando em... Em... Sei lá. Despedi-la. Mandá-la embora.

 

-Mas, será que é tão ruim assim, amor? Será que conversando não...

-A mulher é maluca, amor. Ela entrou na minha sala, discutiu comigo e olha só. Olha o que ela fez!

 

Ele fica um pouco alterado e levanta a manga da blusa, mostrando um arranhão em seu antebraço. A esposa observa por alguns segundos. Ele está visivelmente nervoso.

-Ela é louca, eu estou dizendo. Ela fica me assediando por que sou o presidente da empresa. Está achando que vou promovê-la.

Osvaldo afirma que foi seduzido pela secretária. Mas... Será que foi

mesmo assim que aconteceu?

 

Horas antes.

Empresa General Corp. 15h25m

Sala da presidência.

-Pois não, senhor Muniz. Me chamou?

-Sim, entre.

Carly entrou na sala e encostou a porta. Osvaldo a esperava sentado em sua cadeira. Olhava fixamente seu corpo sem disfarçar. Ela estava desconfortável, mas não disse nada.

-Sabe, Carly, eu vejo potencial em você. Vejo que pode crescer e

conquistar um ótimo lugar aqui na empresa. –ele ergueu a mão, chamando-a para mais perto- Venha cá.

Receosa, ela se aproximou alguns passos, ficando mais próxima da mesa. Osvaldo, então se levantou e caminhou em sua direção, passando a mão sobre a mesa, enquanto dizia:

-Pra isso, você não precisa fazer quase nada. –disfarçando, tocou sua mão e a puxou com força, dizendo- Apenas me faça um agrado.

 

-Me larga!

Carly puxou o braço com rispidez e Osvaldo se enfureceu, falando firme e em um tom ameaçador:

-Você ficou maluca? Você sabe quem eu sou? Posso acabar com sua vida aqui na empresa.

Sem dizer uma palavra, ela correu para fora da sala com lágrimas

descendo copiosamente de seus olhos. Nem ao menos se importou com quem a visse naquele estado, pois estava muito abalada. Enquanto isso, Osvaldo observava o arranhão profundo em seu antebraço.

Agora, voltemos ao presente...

Osvaldo continua seu jantar despreocupadamente, escutando a longa história de seu filho caçula sobre como foi o passeio da escola. Ao ouvi-lo pigarrear, sua esposa o olha e pergunta:

-Está tudo bem, querido?

-Sim. Só estou com sede.

Ela serve a ele um copo com água, que é bebido com ferocidade. Em seguida, outro e mais outro. A sede parece não ter fim. Então, sentindo-se mal, Osvaldo se levanta e vai para o banheiro. Molha o rosto, bebe água e começa a escutar coisas estranhas que parecem vir de dentro de sua cabeça:

“Osvaldo, eu bebo sua alma... Osvaldo eu bebo seu sangue... Osvaldo, eu bebo sua vida...”

Depois de lavar o rosto mais uma vez, ele olha as mãos e vê suas veias altas, como se a pressão da circulação aumentasse bruscamente. Olha-se no espelho. Os olhos começam a ficar fundos, o rosto, que era arredondado pelos quilos a mais, afilava a cada segundo até fazer o contorno do crânio. Os lábios racham de tão ressecados, os dedos se movem com dificuldade. Já começa a ficar difícil manter-se de pé. Então, um grito, e ele cai ao chão sem vida. E tudo que sua família encontra é um cadáver mumificado, coberto pelas largas peças de roupa de Osvaldo.

Carly

-E aí, como ele é? –perguntei para Joana, que saía da sala do presidente substituto que ocupava o lugar que era de Osvaldo.

-Ah, ele é lindo! E, a propósito, perguntou por você. Quer vê-la agora.

Joana se afastou pelo corredor e eu olhei para a porta. Respirando

fundo, entrei. Aquela parecia outra sala. Estava organizada como nunca vi, tudo estava na mais perfeita ordem. E, sentado à mesa, o novo presidente. Ele era loiro, com um belo par de olhos azuis, se vestia muito bem e a postura era perfeita. Parecia que eu estava olhando um manequim executivo.

-Senhorita Carly Harrison?

-Sim, senhor...?

-Andrew. Andrew Theodore Schmidt. Sente-se, por favor. –enquanto me aproximava, ele prosseguia olhando um papel- Aqui em minhas mãos, tenho uma ficha sua. E o que vejo aqui não é nada bom. Aqui diz que você não é uma das melhores empregadas.

-Senhor...

-Shh... Espera. Já conheço todos os tipos de desculpas que você possa imaginar. E digo à senhorita: sabe a responsabilidade que tem em mãos? Sabe o que o nome dessa firma move?

 

Ele me olhou pela primeira vez e se levantou. Pôs as mãos para trás e começou a caminhar pela sala, novamente sem me olhar, enquanto continuava:

-Ela auxilia em muito mais coisas do que você pode imaginar. E eu estou ansioso pra voltar ao meu cargo antigo, mas antes disso, pretendo colocar funcionários assim como a senhorita no eixo.

-Mas, como...! Como você pode afirmar que tudo isso é verdade?! O senhor me conhece, por acaso?!

-Aufiro sua personalidade e valorizo cada ponto e vírgula daquela ficha simplesmente por seu presente tom de voz. Por ele, eu posso imaginar com que tipo de profissional estou lidando.

-Posso me retirar agora?

-Por hora é o bastante.

Me levantei e olhei para a porta. Eu não podia sair daquela forma. Não depois de tudo que aconteceu com o Osvaldo. Me apressei até ele, peguei em seu pulso com força, cravando minhas unhas em sua pele e, vendo seu olhar de indiferença, falei:

-Você não sabe de nada! Não sabe o que aconteceu! Por isso não tem direito de me julgar!

 

O soltei bruscamente, deixando as costas de sua mão arranhada e saí. Já tinha o que precisava. Na mesma noite, estava eu em meu quarto começando todo trabalho novamente. Em minha frente, um espelho. Cobri o altar com uma toalha negra, deixando no centro um pequeno recipiente com algodão e, em cima, o que consegui de Andrew. Ao redor, quatro velas negras e, em minha mão direita, um cálice com vinho. Na esquerda, uma faca de ponta apontando para o espelho. Comecei a oração:

-Nesta noite, eu, Carly Harrison, me torno um vampiro. Predadora de

vidas, soberana da noite. E minha maldição recai sobre você, Andrew Theodore Schmidt. Andrew, eu bebo sua alma... Andrew, eu bebo seu sangue... Andrew, eu...

No ápice do ritual, fui surpreendida por uma voz que me arrepiou toda, fazendo-me voltar à realidade ao meu redor.

-Então, você é a criança que gosta de brincar de vampiros?

Me virei bruscamente, derrubando o cálice e o vi. Andrew estava lá,

sentado confortavelmente na beira da minha cama. Fiquei paralisada com o susto. Ele se levantou e falou:

-Deixe eu lhe mostrar uma coisa real.

Aquilo foi a última coisa que imaginei ver em minha vida. Como um passe de mágica, seu rosto mudou. Seus olhos não eram mais tão belos, mas sim assustadores. O azul era intenso, inebriante. Contornava a pupila com um tom bem escuro, se fortificava no meio até quase desaparecer próximo à pupila. De seus lábios entreabertos brotavam presas grandes e pontiagudas que despertaram em mim o medo mais profundo que um dia imaginei sentir.

Não pensei duas vezes; joguei a faca em sua direção e corri. Abri a

porta com um misto de pânico e fúria. Desesperada estava pelos corredores. Escutava as portas dos outros cômodos se batendo sozinhas. Fui em direção às escadas, descendo-as. Segurei com força a maçaneta da porta de saída. Por mais que tentava não conseguia abrir. Parece que havia algo sobrenatural a segurando.

-Me deixa em paz!! O que você quer de mim?! Me deixa em paz!!

 

Comecei a chorar. Corri e me tranquei no banheiro. Não sabia o que fazer. Sentei no chão atrás da porta fechada.

-Você acha que não sei o que aconteceu? –eu escutava a voz daquele monstro, parecia estar dentro da minha cabeça- Conheço o modo que Osvaldo lhe ofereceu a promoção e, acredite, era o único modo de uma criatura tão incompetente e preguiçosa conseguir tal cargo.

-O que você quer de mim?!

-Você sabe o que me dá mais nojo em você? Sua prepotência. Se achava a pior criatura do mundo com esses seus truquezinhos de magia. Achava mesmo que não existia nada mais perigoso se escondendo nas sombras? Achava mesmo que podia ter todo mundo em suas mãos com seus feitiços baratos? Agora olha só pra você. Se esvaindo em pavor e lágrimas sentada no chão do banheiro.

Abri os olhos com pavor. Como ele sabia? Olhei para todos os lados; não o vi. Levantei tremendo.

-Sai de mim!! Sai da minha cabeça!!

Fixei os olhos em minha imagem refletida no espelho da pia. Havia alguma coisa diferente. O reflexo lentamente ia se alterando. Aquele ser não era mais eu. A minha imagem estava se transformando em Andrew. Seus olhos pareciam estar segurando os meus em sua direção. Eu não conseguia fugir. Meu corpo parecia estático e, com aquele olhar penetrante, ele começou a falar:

-Carly Harrison. Você vai sair daqui agora e vai trabalhar. Vai trabalhar como nunca em sua vida. Vai trabalhar como se hoje fosse o último dia da sua vida. Você vai trabalhar sem tolerância de erros, disposta a dar cabo da sua própria vida no primeiro erro que cometer.

A voz dele parecia lançar ondas elétricas dentro de mim. Parecia que meu corpo havia criado vida própria. Eu andava em direção à porta. Peguei as chaves da empresa, mesmo contra a minha vontade, e me retirei.

Empresa General Corp. 07h30m

Departamento Pessoal

Caminhando em meio a empresa agitada, um agente entra em uma sala. Observa por um segundo a cena em sua frente. Uma mulher está morta diante de um computador, com um cortador de papel perfurando seu pescoço. Está usando pijama e há sangue sobre toda a mesa e o chão. Aproximando-se do legista, se apresenta:

-Agente Fynn, CFA. O que houve aqui?

-Pelo que encontramos, garanto que foi suicídio. –o legista responde- Ela se chamava Carly Harrison e entrou aqui de madrugada. Pelo que vimos nas câmeras, sentou-se diante do computador e não saiu mais. Morreu há cerca de duas horas. Ela simplesmente pegou o cortador de papel e perfurou o próprio pescoço, rasgando a carótida externa. A morte foi instantânea.

-E qual seria a razão desse suicídio? As câmeras não mostram nada?

-Não. O senhor pode até conferir se quiser. Pelo que mostra no computador, ela surtou devido a uma mensagem de erro do sistema. Acho que foi pressão demais, pelas horas que estava trabalhando. Só saberemos mais detalhes com a investigação adicional dos peritos.

-Ok. Obrigado.

O agente se afastou, pegando seu celular.

-Alô.

-Senhor, o problema está sanado. Tudo corre como o planejado. Seu substituto foi escolhido e a funcionária problema está fora do caminho.

-Obrigado, agente Fynn. Você está liberado.

 

Fim.

Aureus Mortem
Enviado por Aureus Mortem em 15/05/2014
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