O Morto do Everest - DTRL16

”Sou filho do rei, herdeiro de suas promessas” [...]

[...] Diziam as letras negras pintadas no vidro da caneca inútil depositada sobre a cara mesa de mogno reluzente, mas as palavras não poderiam ser mais profundas, duras e densas naquele momento.

Observou em silêncio por alguns minutos a foto de Lorena, a mulher mais linda que um homem poderia ter. Olhou a sua volta os documentos importantes assinados com sua letra bem desenhada, o contraste de seu nome de poder sobre o papel branco, puro. Folhas sobre o móvel, folhas a voar além da janela translúcida que ocupava toda a parede. Vista privilegiada do parque municipal, projetado minuciosamente para parecer o que se parecia. Um amontoado de obras humanas.

De repente uma rajada de vento acometeu seus devaneios no silêncio branco da manhã, lembrou-se de uma passagem de um conto de Jack London que leu na adolescência, dizia que o silêncio da noite era reconfortante, lhe cobria como um manto negro e protetor, mas o silêncio branco era como uma faca lhe perfurando a alma, frio e cortante.

O escritório ficava quase no último andar, abriu a janela e sentiu a brisa fria lhe açoitar a face, olhou para baixo... Seria uma queda mortal.

O primeiro dia no acampamento foi o mais difícil, dúvidas vieram assombrar seus pensamentos e seus sonhos. Lembrou-se do pai como se estivesse ao seu lado a contar velhas histórias de guerra, de desejos que lhe foram arrancados. Viu seu velho no leito de morte novamente, seus olhos opacos arrependidos e a promessa que fizera ecoava como um sino a bater em sua memória.

Naquela semana, não viveu, andou de um lado para o outro, de uma reunião a outra, de um compromisso a outro, como se estivesse ligado no piloto automático... Sentia que não estava onde deveria estar, onde queria estar.

A subida se seguiu impiedosa, o vento era cortante, o frio congelante e a neve fofa, difícil de caminhar. Toda sua vida de riqueza não servia para nada no deserto de gelo. Mas a promessa o fazia seguir a despeito da dor e das lesões avermelhadas que começavam a surgir em suas mãos e rosto.

Sobre à mesa a ultrassonografia de seu primeiro filho, seria um menino. Há algum tempo sentia que se distanciava de Lorena, a convenceu da gravidez que ela repudiava. Não queria que o esquecesse. Mas continuavam se distanciando, como opostos magnéticos. Decidiu não contar a ela seus planos, apenas mergulhar, sem pensar, em seu destino.

Quando viu o primeiro morto seu coração disparou, metade do corpo enterrado da neve, sozinho, congelado, o vento cortando seu rosto cadavérico, vestido com um casaco vermelho próprio para o frio que de nada adiantava para uma múmia de gelo... Calada, eterna, aonde os mortos nunca se vão, abandonados no Everest. Era só o primeiro cadáver dos muitos que veria na subida.

“Não houve nada no meu treinamento que pudesse me preparar para passar pelo cemitério aberto que me esperava acima”. (David Brashears, que já chegou ao topo do Everest cinco vezes).

Eles nunca foram apaixonados, tampouco foram amigos, casaram-se em um sábado qualquer, uma grande festa para mostrar a sociedade algo que eles não eram. Lorena estava linda... Ela era linda, só isso.

Enquanto fazia um esforço sobre humano para aguentar a brutalidade da temida montanha, tentava encher seus pensamentos de vida... Sua vida, seus momentos mais relevantes. Mas a cabeça doía a cada passo e sentia-se extremamente cansado, cansado demais para pensar... Cansado demais para viver. A zona da morte era a mais cruel e ainda estava por vir.

Lorena... Lorena, havia um medo inconsciente no ar gelado, medo de não viver como deveria, medo de esquecer-se de sua própria existência. A morte é dolorosa para todos, mas muitos nunca estiveram no topo do mundo.

O último acampamento retirou as luvas para ver os dedos novamente. Negros como a noite. A amputação seria inevitável. Na barraca sentia a angústia dominar seu ser, as paredes rodavam e se esticavam até tornar-se uma catedral com suas estátuas de ouro a sorrir... rir… gargalhar…

Era apenas um monte de neve, um pequeno morro branco no fim da subida, o cadáver estava quase todo coberto pelo gelo, apenas uma bandeira em trapos congelada apontava do cume daquela pequena protuberância e um vestígio do que seria uma vida... Uma touca azul coberta pelo tempo impiedoso. Queria ver a paisagem, mas nada havia para ser visto a não ser um retrato de seu destino... O fim. Cavou com as próprias mãos ao redor do corpo estranhamente conservado, como fosse um boneco de cera, podia ver o rosto e jurou conseguir decifrar sua expressão... Era de dor.

Uma vez o pai lhe disse o que consumia um homem ao ponto dele não poder mais viver... Eram as promessas jogadas fora. Ensinou-lhe o quanto a vida podia ser dura e exaustiva e naquele dia lhe contou uma história que não sairia de sua mente. Relato de uma promessa não cumprida.

E no topo do Everest um amigo lhe esperaria eternamente para cumpri-la. Ninguém notaria sua presença ali, a mais de 8.500 metros não há espaço para moralidade, estão todos preocupados com sua própria sobrevivência.

A pressão sobre seu corpo era tão grande que parou para respirar várias vezes enquanto se afastava alguns metros para enxergar, na imensidão branca, o morto de joelhos a encarar o horizonte, parecia fazer parte da montanha agora. Uma das mãos abertas sobre a perna como se esperasse que alguém a segurasse, olhos arregalados e cabelos escassos sobre a face cândida. Aproximou-se, ajoelhou-se ao lado, estendeu a bandeira e segurou sua mão de gelo... Olhou o horizonte e sentiu o leve toque da morte em sua alma, já não sentia frio ou dor, apenas cansaço. Apertou a mão do velho amigo, se parecia tanto consigo mesmo, sem saber por que esperou que sua vida e sua morte fizessem sentido. E esperou para todo o sempre.

O oxigênio lhe fazia falta e suas células morriam em sincronia, seu sangue estava congelando, um formigamento subia por sua coluna e o torpor dominava seu cérebro. Pode ver Lorena lhe condenando... Seus olhos azuis cristalinos lhe condenando. Em poucos segundos já não teria consciência disso. Enfim, cumprira a promessa do pai.

“No silêncio branco é trágica a solidão que povoam dolorosos pensamentos. O silêncio da sombra é misericordioso, amortalha-nos com um sudário protetor, respira um milhar de compassivas simpatias; mas o fulgurante silêncio branco é implacável, tão claro e frio sob o céu de aço...” (Jack London).

Tema: Suicídio

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 14/05/2014
Reeditado em 29/05/2014
Código do texto: T4806671
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