Nostalgia
Na primeira vez que postei este conto, foi na categoria 'Amor', mas creio que a obra se enquadre também no terror ou, ao menos, no suspense. Boa leitura, Querido Leitor, espero que se divirta.
"Quem é mais tolo: a criança que tem medo da escuridão ou o homem que tem medo da luz?" - Maurice Freehill
Deitado sob a sombra de uma árvore, Mauricio dormia. Já estava chegando nos cinquenta anos de idade – faltava para isso apenas seis dias –, e especialmente nos últimos dias vinha sentindo suas energias abandona-lo aos poucos, como o fio de uma camiseta que se desfia pouco a pouco, deixando de ser inteiro e se tornando esticado, gasto, frouxo... Sonhava com sua infância, com os tempos que passou correndo rua abaixo ou brincando com os colegas da vizinhança (naquele tempo as casas tinham muros baixos, e podia-se sentar na rua, mesmo depois do escuro tomar conta sem se preocupar com nada além de um resfriado) de pique-esconde ou pega-pega. Seus três netos pescavam a alguns metros abaixo de onde ele estava deitado com seus sonhos.
No sonho, estava sentado na frente de casa comendo uma maça. Estava sozinho ali, isso se não considerar-se os pássaros e as formigas, observando o céu noturno. Ele havia lido em algum lugar que alguns povos antigos se orientavam apenas observando o céu noturno e poderiam dizer as horas apenas olhando a posição do sol, e ele tentava descobrir como. Porém, na cena, ele não era ele: era um observador incorpóreo, imperceptível, que olhava seu eu-criança. Não pode deixar de sorrir, não pode deixar de sentir-se nostálgico, num misto de tristeza e felicidade. O sorriso – isso Mauricio não chegou a saber – lhe ornou o rosto coberto pela sombra da árvore sob a qual estava. Seus netos viram o sorriso, assim como suas duas filhas e seu genro (marido da filha mais velha), e viram também o que aconteceu a seguir.
O menino terminou de comer a maça, e continuou a contemplar o céu. Sua imensidão vazia, sua beleza não convencional. Sentia o ar bater em sua face
(embora, ali, ele não tivesse face, ora)
e tirar-lhe o sorriso. Agora sua expressão não demonstravam absolutamente nada. Ficou assim por um tempo, embora não soubesse dizer quanto tempo, até que se iniciou o som de um tambor, ao longe...
BUM BUM bum BUM bum BUM BUM BUM BUM bum BUM BUM BUM BUM BUM...
Sua sensação foi de estar sendo beijado, e seu peito estar sendo surrado. No sonho, seu eu-criança lhe olhou nos olhos, com pena no olhar. Com culpa. Como alguém que tinha que lhe dar uma notícia desagradável e não sabia como.
(o que era verdade)
O garoto abriu a boca para falar, mas calou-se... ponderou sobre falar ou não, o que quer que fosse. Boquiaberto, ele esperou, e por fim disse:
- O vovô não vai morrer, vai? Não vai, vai? Mãe, que é isso, mãe? Porque ele não consegue respirar, mãe? Porque, mãe?
Na realidade, quem disse isso foi um de seus netos. Ele não chegou a ver isso também. O sonho adaptava-se à realidade tão bem quanto um camaleão se adaptava ao ambiente, qualquer que fosse. O som do tambor continuou soando, enquanto o que quer que fosse Mauricio naquele sonho começou a subir. Subir... O céu envolveu-o, e ele já não via mais nada. Sentiu-se leve, sentiu-se feliz, sentiu-se bem. Nunca havia sentido nada igual, e nunca sentiria novamente: pois havia deixado de ser. A verdade chegou tão repentina quanto uma chuva de verão, mas não foi embora, do contrário, ficou agarrada à ele. Depois do segundo que pareceram-lhe horas, ele não sentiu mais nada. Ele deixou de ser, deixou de sentir ou de existir.
O corpo que dois minutos antes estava dormindo sob a árvore agora havia embarcado no barco que o levaria ao seu sono eterno. As pessoas em volta dele choravam, não todas, mas a maioria. Incapazes de reagir, apenas ficaram paralisadas pelo terror daquela situação.
***
Mauricio estava morto, resultado de uma parada cardiorrespiratória. Nessa existência, estava nu, imóvel e gelado. E em outra existência era nulo, era tudo e era nada; era belo, e nem sequer se fazia notar. Ele era apenas o frio, ou então quem sabe, o calor. A questão principal de sua vida, descobriu ele, era a mesma que Shakespeare propôs, era simples, objetiva, era direta.
Ser ou não ser? Ele percebeu que a pergunta era a mesma para todos.
Se ele era, então, era; e se não fosse, não haveria mais de se importar com isso, afinal: já não era mais. E se um dia ele foi, logo deixaria de ser
***
Forever Young, I wanna be forever Young...
A música tocou no rádio, mas ninguém a ouviu... Maurício tinha o costume de deixar seu pequeno rádio de pilhas ligado ao sair de casa. Ele acreditava que isso espantava possíveis intrusos. A música que traduzia a vida do dono do pequeno aparelho continuou tocando. Apenas ecos pela casa vazia...