A Caçada (nº 4)

Thain parou sua busca quando chegou à estalagem destruída.

O lugar estava em escombros. As janelas estavam quebradas e parte do telhado havia cedido para dentro do estabelecimento, parecia-lhe que uma enorme explosão aconteceu ali, pois metade do lugar havia sido destruído e carbonizado, deixando destroços para todos os lados.

Thain era um paladino, um guerreiro que serve a vontade de um deus, sendo um exemplo do que a divindade representa e realizando raras missões para ela e que, em troca de seus serviços e devoção, recebe poderes divinos. Ele buscava a criança bastarda, uma missão expressamente concedida a ele através de uma visão, o paladino deveria encontrar a criança, pois as forças das trevas estavam em movimento e o bastardo teria um papel chave nos eventos que seguiriam.

A tênue luz da manhã refletia na armadura do paladino, um exemplar completo de armadura de placas, extremamente pesada e feita para a guerra, fazendo com que ele se tornasse ainda mais imponente nos seus quase dois metros de altura. Uma brisa vinda da direção da cidade de Portos soprava em seu rosto e passava entre seus curtos cabelos castanhos, aparados no estilo militar. A brisa trazia com si o cheiro de madeira e carne queimada que emanava da estalagem, Thain pegou um pedaço de madeira do chão e observou-o brevemente, o fogo que causou aquilo não era natural e sim produto arcano. O paladino esperava encontrar um conhecido naquela estalagem e continuar sua busca pela criança com ele.

“Não importa, o que está feito está feito, já sei onde encontrar a criança, vou continuar meu caminho sozinho.” Pensou ele, deixando a madeira chamuscada que segurava cair na terra batida.

Thain resumiu sua jornada, seu cavalo, um animal musculoso e negro como a noite, galopava em um ritmo acelerado. O paladino não seguiria para Portos, seu destino era para o leste, ele encontraria o bastardo que procurava em um vilarejo escondido nas florestas de El-galath, a terra dos elfos.

Ele não parava ou diminuía o ritmo de sua viagem e, conforme os dias e as noites passavam, a paisagem que antes era uma enorme planície começava a dar lugar para algumas arvores e no extremo horizonte já era possível ver a imensidão de florestas que se estendiam por toda El-galath. O paladino seguia por uma estrada secundaria, nada mais que um caminho precário usado raramente, que passava pela vegetação alta das planícies, cortando-as e entrando na floresta que se iniciava em Yalor, porém se estendia pelas terras élficas e era largo o suficiente para duas pessoas cavalgarem lado a lado. A vegetação da planície que, devido às frequentes chuvas da estação, passava da cintura de um homem adulto balançava com o forte vento da tarde de outono. “O lugar perfeito para uma emboscada”, pensou o paladino.

Ele sentiu o cheiro dos gnolls um segundo antes da lança atingir-lhe pelas costas.

O projétil havia sido arremessado por trás do paladino, perfurando-lhe a omoplata e despontando no ombro, a força do impacto arremessando-o para o chão, enquanto sua montaria continuou o galope sem diminuir seu ímpeto e por fim sumiu no horizonte.

Thain, que havia caído com força na terra úmida, havia reconhecido as criaturas que o atacavam pelo fedor que exalavam. Eram gnolls, seres com a anatomia idêntica à humana, porém consideravelmente mais fortes e no lugar de um crânio comum eles possuem uma cabeça de hiena, além de, assim como o animal, terem o corpo coberto de uma pelagem rala. Tais criaturas, apesar de serem dotadas de inteligência, são tratadas como inferiores por outras raças por terem uma aparência bestial e uma cultura de caráter tribal, o que os leva a viver em pequenas comunidades escondidas em cavernas e florestas. Devido às situações precárias que vivem, muitos gnolls passam a adotar o crime como meio de sobrevivência, não contribuindo para a reputação da raça e levando muitas autoridades a dar recompensas para aventureiros que matem gnolls, uma vez que criou-se a crença popular que todos são ladrões ou saqueadores.

O paladino sabia que estaria em desvantagem numérica, pois essas criaturas só atacam quando estão em maior numero. Ao olhar para trás ele podia ver os humanoides, ao menos quinze deles, erguendo-se entre a vegetação e vindo em sua direção com diversos tipos de armas, improvisadas ou não, em punho. Thain se levantou de imediato, quebrou a ponta da lança que estava alojada próximo ao seu ombro esquerdo, retirou o cabo do projetil de si e jogou-o aos pés de uma arvore que beirava a estrada. Ele levou a mão direita às costas e desembainhou a arma que carregava, um grande machado de guerra, de lamina única, feito de aço negro como uma noite sem lua, e preparou-se para a investida dos inimigos que já caiam sobre ele.

Thain desferiu um poderoso soco no primeiro gnoll que entrou em seu alcance, quebrando-lhe a mandíbula e mandando-o para o chão. Antes do primeiro inimigo tocar o solo o paladino fez uma rápida prece ao seu deus e, de imediato, seu machado irrompeu em chamas negras como o mais profundo abismo. Um segundo oponente chegou ao alcance do paladino e desferiu-lhe uma estocada com a lança tosca que carregava, Thain deu um passo para a direita desviando do golpe inimigo que acabou apenas sendo aparado por sua armadura e, com uma força incrível, o paladino agarrou a haste da lança e puxou o gnoll para si, ao mesmo tempo em que desferia um golpe horizontal com seu machado, cortando seu inimigo de um ombro ao outro como alguém que corta manteiga com uma faca quente. Nesse momento Thain girou seu corpo, desprendendo a lança dos punhos agora inertes de seu oponente, e com o impulso gerado ele arremessou a arma em um gnoll que estava a não mais que cinco passos de si, acertando-o em cheio no peito, sendo possível ouvir estalo da caixa torácica se quebrando seguido do baque molhado de carne sendo perfurada, e, tamanha a força do arremesso, fazendo com que a criatura fosse arremessada alguns metros para trás, caindo inerte com um baque seco no chão.

-Menos três! – Bradou o paladino – É só isso que tem?

Não era. E Thain se deu conta disso quando viu mais das criaturas saltar para o grupo, agora em uma formação compacta, que avançava em sua direção. Ele havia errado, havia mais de quinze gnolls ali. “Devem ser um grupo de saqueadores que atacam vilarejos por essas terras” pensou o paladino.

Começara a entardecer, o céu ficava em tons de vermelho e laranja, a temperatura começava a cair rapidamente para dar lugar às frias noites de outono, brisas varriam a vegetação, fazendo suaves ondulações na mesma. Porém duas coisas cortavam esse cenário pitoresco, quase hipnótico: Os sons animalescos, parecidos com ganidos de hienas, que os gnolls faziam e os estalos das chamas negras que encobriam o enorme machado de Thain. Foi nesse momento que o paladino, para a surpresa de seus oponentes, investiu contra a massa de inimigos que se formara a sua frente.

Thain se chocou contra os gnolls como um touro. O paladino se viu em uma situação difícil, ele aparava golpes com o seu machado, desviava quando podia ou então deixava sua pesada armadura absorver os impactos menos potentes. Ele abatia os saqueadores de todas as formas possíveis: desmembrando-os com golpes poderosos de seu machado, utilizando o próprio cabo de sua arma como ferramenta de concussão, utilizando com a mão livre as armas dos inimigos abatidos. Em pouco tempo a terra onde da estrada estava encharcada com o sangue dos gnolls e os barulhos da batalha eram interrompidos vez ou outra por ganidos de agonia dos que ainda não haviam morrido. Mas não parecia ser suficiente, mesmo após abater três, cinco ,dez gnolls. Havia muitos deles.

“Se continuar dessa forma vou levar a noite toda para acabar com eles” pensou calmamente o paladino, enquanto aparava uma estocada com o seu machado e, ao mesmo tempo, quebrava o pescoço de um gnoll descuidado com sua mão livre.

Então Thain ouviu um zumbido e em seguida um gnoll caiu morto ao seu lado, com uma flecha alojada no centro sua testa. Logo parecia que havia um enxame de abelhas percorrendo os campos, varias flechas cortavam o gélido ar do crepúsculo, refletindo o esplendor vermelho do sol poente em suas pontas metálicas para, logo em seguida, ficarem rubras com o sangue dos seus alvos. O paladino percebeu que não era um dos alvos do atirador misterioso, portanto continuou a matar os gnolls que não eram abatidos pelas flechas. Thain retirava seu machado do peito do ultimo inimigo caído quando se deu conta de que um outro saqueador fugia correndo através da vegetação alta.

“Longe demais, não vou conseguir alcança-lo.” pensou ele.

O gnoll corria como se houvesse um chicote a rasgar-lhe as costas, já estava a quase duzentos metros do local onde havia acontecido a batalha quando um brilho prateado cortou as ultimas luzes do ocaso e foi se alojar na nuca do fugitivo, que caiu em silencio no horizonte.

Thain olhou na direção de uma arvore que beirava a estrada, talvez a vinte metros de onde havia ocorrido todo o combate, ele sabia que era de lá que as flechas haviam partido.

-Pode descer dai elfo – ele disse com uma voz clara como cristal – Depois da ajuda que me deu eu não lhe farei mal algum.

Os galhos da arvore se mexeram com o movimento súbito do atirador que antes estava imóvel, e então uma figura saltou por entre as folhagens e caiu em pé no meio da estrada a bons vinte metros do paladino.

-Como sabia quem eu era? – perguntou a elfa

-Apenas um dos seus consegue atirar com tamanha maestria. – respondeu Thain

-Suas habilidades também não são de se jogar fora. – disse a elfa

A elfa era linda até mesmo para os padrões de sua raça, tinha traços delicados, seus olhos amendoados eram da cor do azul do mais profundo oceano. Seus cabelos, de um loiro tão claro e puro que pareciam brancos ao olhar desatento, estavam amarrados em uma trança que chegava um pouco abaixo dos ombros. Era impossível dizer sua idade, já que elfos não aparentam ter mais de vinte ou trinta anos, mesmo quando morrem de velhice após os mil anos que costumam viver. Ela vestia uma armadura leve de couro fervido, com partes de cor mesclada de verde escuro e preto, para melhor camuflagem na densa floresta.

-Agora, gostaria de saber o que um humano faz aqui, tão próximo às terras de meu povo. – disse ela, ainda claramente com desconfiança.

-Olhe, meu nome é Thain. Sou um paladino e venho à El-galath em uma missão divina. – disse Thain, percebendo que a elfa, mesmo estando com seu arco curto abaixado, estava com a mão livre próxima a aljava que carregava perto de sua coxa – E se eu quisesse lhe fazer algum mal eu já teria tentado ao invés de conversar não acha?

-Talvez você tenha razão forasteiro – disse a elfa relaxando sua posição e prendendo o arco em suas costas – Meu nome é Araniel, sou uma patrulheira de um vilarejo próximo daqui. Se quiser pode vir comigo até o vilarejo, talvez lá você consiga informações que te ajudem nessa missão.

-Ora, não tem medo que eu destrua seu vilarejo? – ironizou o paladino.

-Apesar de lutar melhor que qualquer outro humano que já vi, você seria morto por nós patrulheiros antes mesmo de desembainhar esse machado de suas costas. – ela respondeu com seriedade – Veja isso como um favor em troca da ajuda com os gnolls. Agora vamos, quero achar um bom lugar para acampar antes de anoitecer de vez.

Ambos seguiram em um passo acelerado pela floresta adentro, com a elfa em frente guiando o paladino pela vegetação fechada. A patrulheira percorria a floresta como quem a conhece como uma extensão do próprio corpo, mesmo após o anoitecer, quando apenas alguns feixes puros da luz do luar passavam pela copa das arvores e perfuravam o véu de escuridão da noite. A mata era fechada e a vegetação era majestosa e exuberante, seria muito fácil se perder ali sem um guia experiente, porém não muito tempo se passou até que eles chegassem a um lugar onde duas árvores enormes, até mesmo para as dimensões da vegetação de El-galath, formavam uma espécie de cabana natural no ponto onde suas grandes raízes se encontravam.

Araniel entrou na cabana e acenou para que o paladino entrasse também. A caçadora sacou sua faca e cortou um pequeno feixe de madeira da raiz da arvore e, em pouco tempo, fez uma fogueira.

-Você acha que é realmente uma boa ideia fazer uma fogueira assim no meio da noite? – perguntou Thain – Já que acabamos de enfrentar gnolls não muito longe daqui.

-Não há problema algum, veja – e apontou para o que seria o teto da formação natural onde se encontravam – As raízes formam um obstáculo natural, dificulta muito alguém ver o fogo a distancia.

Thain assentiu e observou com um ar perplexo as chamas da fogueira, que eram azuis como o céu da manhã e não produziam fumaça alguma.

-A madeira dessas árvores é magica. - disse Araniel, percebendo a expressão do paladino - Nós a chamamos de Elthedral, Árvores do céu. Não existem muitas delas em nosso continente, dizem que cada uma delas foi um herói do nosso povo que, devido aos seus grandes feitos, tiveram seus corpos transformados nessas majestosas arvores depois que morreram, para que nos abençoassem mesmo depois de padecerem. Acreditamos que esta seja a maior honra que Gnor’ril, A grande mãe, possa dar a um elfo.

-E qual é a história por trás dessas duas arvores em que estamos nos abrigando? – indagou Thain.

-Diz a lenda que esses são os irmãos Vindral e Andral. Apesar de terem nascido gêmeos um era um elfo, já o outro era um drow. Eles viveram há mais de dez mil anos atrás, quando o império élfico dominava todo o continente de Edrod, nessa época os anões e os humanos eram escravos do império e ainda demorariam muito para se rebelar e fundar seus reinos como conhecemos hoje.

“Há muito tempo não vejo um drow” pensou o paladino enquanto sentava em uma pedra, as chamas bruxuleantes da fogueira iluminando seus olhos cinzentos e refletindo em sua armadura de mesma cor, criando formas majestosas em seu reflexo. Ele havia enfrentado alguns drows há décadas atrás, os desgraçados eram tão habilidosos quantos seus primos elfos e tinham uma habilidade incrível com magia negra. O que os diferencia dos elfos é que os drows tem a pele escura, com tons entre o azul-marinho e o negro, e todos nascem com cabelos brancos como o luar.

-Vindral, o elfo, se tornou o maior druida de seu tempo – continuou Araniel – Sua ligação com a grande mãe e as forças da natureza era extremamente poderosa. Já Andral, o drow, era o melhor espadachim do império desde quando era apenas um adolescente. Diz a lenda que esse lugar onde estamos agora foi onde ambos enfrentaram e derrotaram um exército de demônios. Nos últimos momentos da batalha Andral fora morto pelo comandante dos demônios e Vindral, utilizando sua ultima força vital, destruíra o demônio e padeceu ao lado de seu irmão. Claro, isso era na época em que os drows não haviam caído. Mas enfim – disse ela enquanto tirava um cantil do cinto e tomava um gole farto do liquido contido ali – Isso não passa de uma lenda para entreter as crianças, se demônios houvessem invadido o império nós teríamos mais registros do que uma história de ninar, não acha?

-Caído? - indagou Thain.

-Vou explicar de um jeito bem simples - disse a elfa – Para as outras raças os elfos e os drows são o mesmo povo, raças “primas” se quiser entender assim, e realmente somos. Porém, dois mil anos atrás, os drows deixaram de seguir os ensinamentos da grande mãe e passaram a cultuar uma entidade chamada Dryzes, que, de acordo com eles, é a deusa da magia negra, noite e necromancia. Foi a partir desse ponto que eles passaram a praticar necromancia, que é uma espécie de magia negra que lida com os mortos. E os desgraçados são realmente bons nisso. Para encurtar a história aconteceu uma guerra civil entre nós, matamos quase dois terços deles e exilamos os sobreviventes que passaram a viver em comunidades isoladas ou em cavernas enormes, que são bem comuns no nosso reino. Isso enfraqueceu o império e contribuiu para a revolta dos escravos alguns anos depois. Não estamos mais em guerra agora, eles sabem que acabaríamos com eles em um piscar de olhos. Às vezes encontro alguns quando patrulho a floresta, mas nunca houve nenhum combate entre os patrulheiros e os drows. Acho que eles devem ter uma comunidade por aqui, mas, contanto que não nos ameacem, nós mantemos a paz.

-E você acha correto matar tantos apenas por seguirem outro caminho?

-Eles passaram a trazer mortos de volta à vida, zumbis se preferir, para trabalhar, para estuda-los e, quando entramos em guerra, para nos combater. Isso é contra tudo que consideramos mais sagrado, pois Gnor’ril é o próprio infinito ciclo da vida, ela nos concede a vida e a pega de volta quando morremos, para dar a outro ser que esta por vir, não cabe a nós ou a ninguém atrapalhar esse ciclo. E escravizar um de seu próprio povo, ainda mais depois de morto, é motivo mais do que suficiente para termos exterminado esse lixo que ousou profanar a própria grande mãe. Isso sem nem falar que magia negra é algo errado. Ou você mata de vez seu inimigo ou não o enfrenta. Já faze-lo sofrer com maldições ou conseguir poderes fazendo pactos com entidades das trevas simplesmente não se faz.

-Respeito seu ponto de vista, apesar de discordar dele – disse Thain – Bom, acho que você deveria dormir um pouco.

-Não vai acontecer. Me desculpe, mas não confio em você ainda. Estou te ajudando apenas como um pagamento, nada mais. Na verdade eu só parei para acampar porque achei que você precisaria descansar depois de levar um arremesso daqueles no ombro. Mas parece que você nem sangrou.

-A, isso? – indagou o paladino olhando para seu ombro esquerdo e o buraco em sua armadura – Eu... Me curei logo que levantei do chão. E já que nenhum de nós vai dormir – disse ele se levantando da pedra onde sentara – Acho melhor seguirmos viagem.

-Então vamos – disse a elfa se levantando e apagando a fogueira – Se nos apressarmos chegaremos a Thalinto pouco após o amanhecer.

“Thalinto” – pensou Thain – “Esse é o lugar onde vou achar o bastardo”.

Luiz F R Caravelo
Enviado por Luiz F R Caravelo em 13/05/2014
Reeditado em 13/05/2014
Código do texto: T4804521
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