206 - O SÉTIMO FILHO

No vilarejo a história corria à socapa, aos cochichos, de ouvido em ouvido. A localidade era pequena e cheia de mistérios. Coisa dessas antigas vilas, que ficaram à margem do desenvolvimento, impregnadas de fobia ao progresso. Encravada num socavão montanhoso, isolada do mundo, de difícil acesso por uma única estrada de terra, poeira e buracos na estação da seca, lama e encravadouros no tempo das chuvas, o pequeno distrito da Cruz de Ipê não merecia atenção das autoridades municipais ou religiosas. A pequena orada da padroeira erguia-se, isolada, no topo da serra, e só era aberta uma vez por ano, no dia de Santa Cruz, para uma rápida missa, celebrada pelo vigário da paróquia de São Roque da Serra.

A população, envelhecida; os rapazes e as moças ali não permaneciam: assim que podiam se mandavam para a cidade em busca de trabalho. Tão logo terminavam as quatro séries da escolinha rural, mal formados e pior informados, as novas gerações abandonavam o local. Para nunca mais voltar.

O povo aumenta mas não inventa. Os idosos de Santa Cruz do Ipê confabulavam sobre o aparecimento de um estranho animal rondando o povoado.

Às queixas generalizadas daqueles que teimavam em permanecer no povoado, agora se ajuntavam os comentários em surdina dos últimos acontecimentos. A morraria ao derredor se estendia rumo à Serra do Chapadão, local remoto, por onde, diziam, perambulavam assombrações, bruxas e lobisomens. Entidades que permaneciam nos ermos e que só perturbavam o imaginário dos moradores da vila.

Fatos estranhos estavam se verificando nos arredores. Tião Lampa tinha visto, nas suas andanças que o levavam montanha acima, um animal estranho, meio cachorro, meio guará, furtivo, olhos incandescentes mesmo à luz da madrugadinha.

— Guará num é, móde que tem as perna curta e corre que nem um viado campeiro. Mas também num é cachorro. Cum aqueles óios de brasa, mais parece incarnação do demo. Cruz-credo, Ave Maria! — Persigna-se em gestos reduzidos, exorcizando a palavra maldita.

— Óia, cumpadre, já que o sinhor tá falando, deixa eu acrescentá. Também vi essa criatura dos inferno. Mais o que vi foi na sexta-feira passada, a lua cheia tava aparecendo por trás da serra. Primero pensei que era um vurto de homem, mas quando dei fé, a coisa era que nem o sinhor falou aí: um animal grande, muito maior que lobo, mais alto que um guará. Correndo pras quinhenta. Uivando cumu um danado. — Quinca Borborema dá o testemunho, com detalhes, de sua visão do estranho animal.

Os dois conversavam de cócoras num largo entre as casas, picando fumo e fazendo seus pitos de palha. Chega o Nego Zoró, caolho, preto como noite sem lua.

—Adevera qui oceis num viram da notícia lá de São Roque? Acharam uma menina morta atrás do campo de futebol. Diz que tava completamente disfigurada, as roupa rasgada, o corpinho estraçalhado. Coisa afeita por animal muito brabo, mesmo.

—Viche Maria, vai vê que é coisa desse bicho qui anda rondando por aqui. Mas, óia, é mió a gente num ficá contando essas coisa por aí. Vão pensá qui a gente tá maluco.

Quinze anos atrás, Tonico Lima, pai de numerosa família, morador dos mais antigos da vila de Cruz de Ipê, desceu , com a mulher Expedita e a fileira de doze crianças de sua geração, até a cidade, sede do município, a fim de batizar o filho mais novo. Já estava com dois meses, passando da hora de providenciar o batismo,dar um nome à criança. Procurou o Padre Emiliano que atendia na sacristia da Igreja Matriz.

— Vim batizá o nenê, seu padre.

Tonico e a mulher perfilam-se ante o sacerdote. Ao redor, agarrados na saia da mãe, os menores erguem os olhos para o padre. Os maiores se esquivam, escondem-se por trás da porta da sacristia. Todos descalços, andrajosos, faces encovadas, denotando a miséria de suas existências.

— Mais um filho, Tonico? Quantos vocês têm?

— Esse é o numero treze. Sete home e seis menina.

O padre não deixou transparecer a surpresa. Sabia que quanto mais pobre o casal, maior era a prole. Mas não era problema dele nem da Igreja. Ele estava ali para ministrar os sacramentos, celebrar missas e encomendar os defuntos. Que os casais tenham filho é preceito divino que ele mesmo lembrava sempre ao celebrar os casamentos: crescei e multiplicai-vos.

— Bem, vamos lá. Cadê os padrinhos?

— Só escolhemo um. É o Jerônimo, meu filho mais velho. O senhor sabe como é, sendo este mais novo o sétimo filho home, tem que ser batizado pelo irmão mais velho. Se não, vira lobisome.

O sacerdote, surpreso, encara Tonico com severidade.

— Deixa de besteira, homem de Deus. Isso é superstição, não tem nada a ver com a fé cristã.

Tonico se retrai. Sempre acreditou nessas coisas e agora não queria ir contra o que julgava ser uma maldição para quem não cumprisse o preceito popular. Mas o reverendo já está acostumado com essas emergências. Chama o sacristão e passa-lhe a ordem:

— Vai aí na casa de dona Mariquinha, diz pra ela vir aqui bem rapidinho, para ser madrinha de uma criança.

— Mas, seu padre... eu queria que o Leandro fosse o padrinho. Se não for assim, o senhor sabe...

— Ara, seu Tonico. Isso é besteira, chega a ser heresia — será que ele sabe o que é isso? — Deixa comigo: o sacristão e dona Mariquinha servirão de padrinhos.

E foi assim que o sétimo filho de Tonico Lima foi batizado: Luiz Lima, sendo seus padrinhos o sacristão Mario Moreno e dona Maria da Luz Quintela, contrariando o desejo do pai, que desejava afastar de seu filho a terrível maldição do lobisomem.

A família cresceu como sói acontecer entre os menos afortunados: algumas doenças sem gravidade, cachumba em uns, coqueluche em outros, escaparam todos. Luiz foi o último gerado por Tonico e Expedita. Os irmãos e irmãs foram abandonando a casa, assim que atingiam quatorze ou quinze anos. Luiz, o caçula, era tratado com carinho especial por ser a “rapa do tacho”, como dizia a mãe. À medida que crescia, revelava uma índole completamente diferente dos irmãos. Arredio, pouca conversa, não gostava de brincar com os irmãos. Preferia andar pelos grotões e socavões, sempre sozinho. Sem hora de sair nem de voltar à casa.

Não freqüentou a escola. Seus modos arredios, a falta de higiene (ninguém jamais o vira lavando-se, muito menos tomando banho), o mau cheiro que exalava, além de uma dificuldade insuperável de comunicar-se com os colegas o isolavam dos colegas. Envolvera-se em algumas brigas de meninos, e, mesmo sendo coisas de crianças, causara arranhões severos nos outros com suas unhas afiadas e negras de sujeira. Nem chegou a ser expulso. Totalmente incapaz de se integrar ao grupo de alunos, deixou de ir às aulas, simplesmente.

Cresceu sem instrução. Nunca procurou trabalho. O pai bem que tentara levá-lo para capinar a roça de milho e feijão, num pequeno terreno logo atrás da matinha, próximo à vila. O menino, esquivo, abandonava o serviço, se metia no mato, para atirar pedras nos passarinhos. Não tinha amizade com ninguém e parecia mudo, de tão pouco que falava.

Treze, catorze,quinze anos. Entrou na puberdade e sua maneira de ser foi se acentuando. Seus dias eram passados mais nos ermos da região do que em casa. Muitas e muitas noites permanecia fora. Quando voltava, não respondia às indagações da mãe ou do pai sobre onde estivera, o que estava fazendo. Apenas resmungava coisas ininteligíveis.

Dona Expedita, sem compreender o que se passava na cabeça do filho, se conformava. Providenciava roupas, ela mesmo costurando calças e camisas para o rapaz. Quando ele chegava, preparava-lhe algo para comer. Afligia-lhe ver o filho naquela situação, mas não atinava com nada que pudesse fazer para mantê-lo perto de si.

Tonico Lima procurava entender o filho. Se começava a pensar, a memória teimava em levá-lo ao dia do batizado, quando o padre se recusara a fazer do filho mais velho padrinho do caçula, o sétimo filho macho de sua família. Não queria se lembrar do fato, afastava os pensamentos, temeroso da conclusão a que poderia chegar.

Até os quinze anos, o comportamento estranho de Luiz fora suportável aos pais. Porém, de algum tempo para cá, tornara-se violento. Principalmente quando se aproximava a mudança da lua.

— O menino é aluado. Na lua crescente ele vai ficando inquieto, e nas noites que antecedem a lua cheia, ele simplesmente desaparece de casa. — Tonico só se abria com o cunhado, Mané Chispa, homem de senso e juízo, dono da única venda da vila, e que já vivera durante muitos anos em cidades maiores, convivera com gente de experiência.

— Mais, aonde que ele vai nessas noites? — Indaga o vendeiro.

— Sei lá. Sai caminhando por aí, pelas brenhas, matos. Quando chega, vem desgrenhado, as roupas rasgadas, sujo, a camisa molhada de suor ou de baba, sei lá...

— Melhor ocê seguir o rapaz numa noite dessas. Principalmente agora que tem esse animal por aí, atacando criação, matando até bezerrinho. Diz que uma menina foi morta por essa coisa ruim, lá na saída de São Roque. De repente ele pode ser agarrado por esse bicho medonho.

Tonico Lima teve um sobressalto. As palavras do amigo e parente levaram de novo suas lembranças para quinze anos atrás, para o batismo do filho. Saiu sem responder. Mas tomou tento no conselho. Na próxima saída do filho, ia, sim, ver aonde o garoto ia, o que fazia. Tinha de descobrir. Quem sabe, evitar alguma coisa pior.

Luiz manteve-se, como de costume, distante e arredio do convívio social. De nada adiantou o pai lhe perguntar sobre suas saídas prolongadas nas noites de lua cheia. E foi ao anoitecer da sexta-feira, treze de maio, aos primeiros clarões da lua ainda escondida por trás da serra, que Luiz saiu não tão furtivamente, dirigindo-se para o alto do morro.

Tonico seguiu o filho. Esgueirava entre uma árvore e outra, agachando-se por entre touceiras de capim, correndo silenciosamente entre as sombras. O filho não se preocupava em ser visto, ao contrário, parecia procurar os claros na mata, os campos abertos, onde a claridade colocava em destaque sua figura estranha.

O pai seguia o filho, observando-o atentamente.E agora percebia como ele estava crescido, alto. Mas o caminhar era esquisito, encurvava-se constantemente. As pernas dobravam-se num ângulo impossível para pernas humanas. Os braços longos quase tocavam o chão. Os cabelos hirtos pareciam levantar-se e a cabeça assemelhava-se a um ouriço, a um luís-cacheiro.

Tonico ouviu um uivo. Um longo uivo, como um lamento de cão...ou lobo? Temeu pelo filho. Se for um lobo, vai estraçalhar meu filho! Saiu das sombras, dirigindo-se para o centro da clareira, agora iluminada pela lua cheia, onde o filho quedava-se imóvel.

Então, viu. O rapaz não era mais Luiz, seu filho. Ao encará-lo de frente, os olhos brilhavam como duas brasas acesas. As orelhas afiladas apontando para cima, sobressaíam por entre os cabelos eriçados. As mãos eram garras, os pés caprinos dançavam num compasso irregular. A boca exibia dentes aguçados, dentes de cão, a baba brilhante escorrendo-se por entre eles. E Tonico ouviu, saindo da garganta daquela coisa em que se transformara seu filho, ouviu a resposta ao uivo que viera , há pouco, de muito longe.

Paralisado de terror, viu o animal aproximar-se. E essas foram as últimas impressões que Tonico Lima teve, antes de ser abraçado mortalmente pelo filho caçula.

Antonio Roque Gobbo,

Belo Horizonte, 7 de fevereiro de 2003

Conto # 206 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/05/2014
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