Pesadelo
Localidade desconhecida, 19/03/XX
A quem estiver lendo essa carta,
Sinto que em breve vou morrer e a necessidade de livrar outras almas de um terrível mal que me aflige tornou-se o ultimo grande objetivo de minha vida. Peço que leia esse manuscrito até o fim e preste bastante atenção, pois a sua vida depende disso, não somente a sua, mas de tudo que respira sobre a face da terra.
Quando me perguntam por que tenho tanto medo de dormir não podem sequer imaginar o motivo dos meus males. Para muitos, dormir é uma benção e também um descanso das torturas e tristezas do dia a dia. Quando dormem são levadas para locais de incríveis maravilhas e caminham por bosques ricamente decorados lado a lado com seres de extrema sabedoria e compaixão.
Quanto a mim, sou levado a locais de imenso pavor habitados por criaturas tão bestiais que por sorte nosso pobre vocabulário humano não possui formas de descrevê-las. Sempre que vou dormir acabo em uma corrida desesperada para salvar minha alma e não existe em canto algum desses locais tenebrosos um pingo de luz para me trazer alegria e conforto.
Por muitos anos o homem tem se perguntado o que são os sonhos? Seriam pensamentos adormecidos que vem a tona por um motivo qualquer? Talvez, sejam mensagens do nosso subconsciente coletivo ou apenas devaneios de uma mente cansada. Esqueça essas besteiras filosóficas e psicológicas nossos sonhos, ou melhor, os pesadelos não são um estado de espírito ou de mente. O pesadelo é um lugar!
Como explicar isso? Já ouviste falar nas recentes teorias divulgadas sobre universos paralelos e outras realidades que são vizinhas das nossas e que o homem comum ainda não tem ainda poderes para vislumbrar?
Tenho todos os motivos para acreditar que quando temos sonhos ou pesadelos, somos na realidade transportados para esses locais. Uma realidade alternativa de puro terror onde nada cresce e nada vive. Onde delírios ambulantes em suas mais pestilentas formas caminham procurando incansavelmente uma nova vitima para atormentar. Ou poderiam ter planos ainda mais obscuros que levariam toda a humanidade a extinção? Quem sabe.
Oh, como é simplório meu conhecimento sobre essas coisas! Provavelmente deve ter ficado com mais duvidas do que as que tinham quando começou a ler esta carta. Porém, esqueçamos sobre a gênese das realidades paralelas e passemos as coisas e lugares que vi nessa dimensão demoníaca.
Quando disse que o pesadelo é um lugar eu generalizei de uma forma bem simplista. Não é apenas o lugar; é um lugar, vários lugares ou lugar nenhum. Acredito que os senhores abissais desse mundo tem acesso as nossas mais intimas e revoltantes memórias, pois são elas que eles usam para se divertirem conosco! Sim, tudo se resume a uma forma doentia e monstruosa de diversão.
Certa vez durante minhas extensas pesquisas sobre os mundos oníricos descobri um odioso tomo carcomido pelas traças que continham formulas e explicações em um dialeto nunca visto sobre a face da terra. Em vão foram minhas tentativas de decifrar todos aqueles símbolos bizarros, porém Alephir, um estudioso que morreu louco aos berros em um sanatório, inseriu notas de rodapé em algumas paginas que pude decifrar.
Depois de ler com atenção as estranhas notas em inglês arcaico finalmente pude entender que todos os acessos de horror noturno que há alguns anos vinham me atormentando tinham uma origem e eram reais. Houve época em que os homens primitivos temiam essas criaturas e quando se reuniam ao redor de uma fogueira para contar suas historias de caça, sempre evitavam dizer esses nomes que não ouso repetir. Nada me fará repetir isso novamente.
Depois homens insanos em busca de poder aprenderam a negociar com esses seres e com os poderes que lhes eram ofertados pelas criaturas, criaram uma civilização altamente avançada que, ou pela fúria de deus ou graças ao nojo da própria terra, foi varrida de um dia para o outro para sempre.
Naquele tomo odioso que encontrei por acaso, havia ainda mais segredos enterrados que poderia de alguma forma ser a nossa salvação. Por culpa de um infortúnio do destino, o livro me foi tomado em uma de minhas viagens a Grécia e suspeito que quem quer que o tenha levado tenha um interesse macabro pelo livro. Não espero nada de bom quanto a isso.
Em relação a natureza dos pesadelos, darei um exemplo que é particularmente doloroso para mim. Enquanto ainda estava no primário eu era constantemente agredido e humilhado por outros colegas que se achavam superiores a mim, ou por terem mais condição financeira ou por serem mais fortes. Esta época em minha vida foi terrível e dela trago ainda hoje inúmeros traumas que morrerei sem corrigir.
Entre esses colegas que tornavam minha vida difícil, havia um trio em particular que realmente tornavam minha existência miserável e degradante. Eram três valentões cujos nomes já sumiram de minha memória há muito tempo. A principal diversão desses indivíduos era me socar de todas as formas possíveis. Com medo das agressões por vezes eu ficava semanas longe da escola.
Pois bem certa noite após um dia bem difícil me deitei e quando abri os olhos estava na mesma escola que me referi acima. Bem, não exatamente a mesma, pois nos pesadelos todas as nossas memórias assumem um tom doentio como se a realidade de uma hora para a outra estivesse entrando em decomposição.
Eu estava entre paredes semi destruídas com tijolos expostos e um estranho bolor sobre eles que me repugnavam por se assemelharem a rostos humanos em agonia extrema! O som de gritos e risadas infantis deu lugar a gritos desafiadores e sorrisos alucinados como se eu estivesse passeando pelo corredor de um sanatório. Não havia mais o cheiro de giz. O aroma do lanche em preparo também havia desaparecido e tudo que eu podia sentir eram o cheiro de decomposição, morte e medo.
Eu não via onde pisava por que o piso estava encoberto por uma pesada nevoa de coloração verde pulsante. Entretanto tinha a desagradável impressão de que caminhava em uma espécie de pântano nocivo e, vez ou outra, sentia alguma coisa roçar de leve meus pés e me arrepiava do inicio da coluna a base do crânio.
Procurei em vão fugir daquele antro putrefato de horror, mas não encontrei o portão que dava acesso ao pátio exterior e seria minha salvação. Durante um tempo que pareceu uma eternidade vaguei amedrontado naquele labirinto. Experimentando a cada passo uma depressão profunda e sendo atacado de vez em quando por alguma sombra ou criatura absurda impossível de descrever. Coisas aladas voavam na escuridão e eu gritava.
Quando menos esperava fui cercado por três imensas formas monstruosas. Mesmo depois de anos ainda me é difícil relembrar esses series odiosos. Tudo que posso dizer é que elas pareciam com uma caricatura doentia de um cruzamento entre um ser humano e um peixe. O verdadeiro horror nisso tudo estava em saber quem aquelas três aberrações tentavam representar.
Indefeso, fui surrado cruelmente como nos tempos da escola enquanto as bestas gorgolejavam e urravam tentando imitar uma risada humana. Fui arrastado pelos pés enquanto as bestas rosnavam e tentavam se comunicar entre si. Enquanto a minha cara era arrastada no chão, eu via horrorizado sobre o que realmente eu estava caminhando o tempo inteiro. Intestinos e restos humanos disputavam espaço com rostos que conheci durante toda a minha vida.
Nesse momento acordei. Estava em minha cama coberto de suor e lagrimas, porém vivo! As empregadas batiam fortemente na porta do meu quarto, preocupadas com meus gritos que segundo elas eram tão terríveis que todos os cães da vizinhança começaram a uivar em uníssono.
Esta meu amigo foi a primeira vez que tiver o azar de cruzar a barreira entre os mundos e me deparar com um inferno muito mais cruel e blasfemo do que qualquer pobre descrição feita em livros religiosos. Desse dia até aqui nunca mais pude dormir em paz. Sempre assaltado por esse mesmo trio até que por acaso fiquei sabendo sobre um coquetel de drogas que prometia cortar a necessidade do sono de uma vez por todas.
Sim, não durmo há um mês e sinto que meu corpo não resistirá mais por muito tempo. Hoje sou apenas um velho esquelético e louco que um dia ainda tinha esperanças de salvação. Por favor, meu amigo não descarte esta carta como delírios de um anormal ou mesmo uma piada de mal gosto pois saiba que infelizmente não consegui me livrar totalmente das criaturas que, sabendo que não mais me teriam em seu mundo diabólico, estão aos poucos entrando em nosso mundo e julgo que quando tiverem sucesso será o fim de toda a nossa espécie.
Não sei dizer se alucino ou se a realidade foi infectada pela loucura dos pesadelos mais coisas estranhas começaram a ocorrer em minha casa depois que comecei a fazer uso do remédio. Desde o sumiço de empregados fieis a objetos sendo atirados contra as paredes por forças invisíveis. A duas noites atrás pensei ter visto uma criatura desmembrar minha governanta. Desde então nunca mais a vi.
Após um ataque repentino de pavor minha família achou por bem me internar nesta instituição mental degradante e odiosa. Entretanto, para minha sorte as criaturas não puderam me alcançar aqui até este momento. Os médicos continuam insistindo que devo dormir e tentam de todas as formas me impedir de continuar tomando os remédios, porém sou um homem rico e com muitos conhecidos importantes o que me garante ainda uma boa quantidade. Sei que não posso continuar tomando esse remédio para sempre, mas tenho que ter certeza de que o perigo já passou.
Coisa engraçada, não posso deixar de comentar sobre uma estranha ave que costumo ver todas as noites voando alem das grades da minha janela. Essa criatura de aspecto repulsivo me traz estranhos maus presságios.
Obs: Se estas forem minhas ultimas palavras, por favor avise a minha filha que a amo e que fiz o possível para evitar todos esses males que se abateram sobre nossa família. Diga a minha esposa que nunca a quis magoar e que estarei junto com ela seja como for.
Que deus se apiede de nós.
Barão de XX
Recorte de Jornal da data 22/03/XX
Morre no asilo XX o Barão de XX
O Barão XX foi encontrado morto em seu quarto no instituto mental XX. A causa da morte ainda é desconhecida e deixou todos perplexos devido a estranheza do caso. Algumas testemunhas tiveram que ser hospitalizadas devido ao trauma que passaram. Um enfermeiro bastante chocado relatou que foi acordado pelos gritos de pânico do paciente e que quando chegou em frente a sua sela, testemunhou uma imensa ave que arrancava grandes nacos da carne do Barão enquanto este em vão tentava se defender. O rapaz ainda afirma que tentou ajudar, porém quando viu que o rosto da ave se parecia bastante com o rosto de sua sogra, morta a dois anos, desmaiou ali mesmo. Quando acordou não havia mais ave e uma multidão de internos, médicos e pacientes apenas observavam boquiabertos os restos do Barão.
A policia não descarta nenhuma hipótese e o delegado encarregado do caso não consegue explicar de forma alguma como uma ave poderia ter entrado naquele quarto que possui apenas uma janelinha pouco maior que uma cabeça…