Lírios - Reenvio de 'A Jornada'

A Jornada

Para Ariel Gonçalves Borges, que esteve comigo mesmo durante meus piores pesadelos.

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(A flor, a boneca e a menina)

Quando completou dez anos de idade, a menina ganhou de seus pais uma grande casa de boneca. Grande, espaçosa, colorida. Ela lamentou, no ano anterior, por fazer aniversário na véspera de natal, o que fazia com que ela ganhasse apenas um presente para as duas datas - e não um de aniversário e um de natal, como a maioria das crianças-. Esse ano, a pequena menina de cabelos louros não lamentou: ela não somente ganhou uma linda boneca (O que naquela época era raro), mas também um casa para a bonecas (o que era mais raro ainda).

Uma grande casa de bonecas!, pensou a menina, agitada, enquanto voltavam para casa. Faltavam apenas três dias para o natal, e os presentes vieram adiantados.

Ao passarem pelo centro da cidade, pararam num restaurante. Era simples, modesto, barato e bom. Comeram strogonoff, junto de arroz e saladas como acompanhamento. Todos tomaram suco de laranja. As mesas, cobertas com toalhas de mesa de cor branca, eram simples, e todas tinham vasos com flores brancas dentro: seis ou sete em cada vaso (embora na mesa da menina, fossem quatro delas). As flores eram lindas, e a menina adorou-as. Ela perguntou a mãe se poderia levar uma para casa. Compreensivo, o pai pediu ao dono do restaurante -um senhor já com cabelo branco- uma das flores, apontando a filha enquanto explicava a situação. O senhor, encantando com a pureza do pedido, gentilmente deu-lhe as flores e seus mais sinceros parabéns.

Ela agradeceu, cheirando a flor e contemplando-a, riu. Um riso doce, sincero. Naquele momento, ela era a criança mais feliz do mundo.

A família então pagou a conta, agradeceu novamente, voltou ao carro, e partiram no rumo de casa. A mãe havia perguntado a filha o que ela faria com a flor, e foi bem perto de casa que uma ideia - genial - passou pela cabeça de lindo e colorido cabelo louro, escorrido, liso.

- Vou deixar a flor com a Dani! - disse ela (na verdade, exclamou), colocando a flor no bolso de Dani, a boneca. - Ela vai adorar!

Os pais adoraram. Mais tarde naquele dia, quando o sol já tinha se posto, os três já haviam terminado de montar a casa de Dani, a boneca. A menina brincou até a hora de dormir, e então se despediu da nova amiga, deixando-a em sua cama (a de miniatura) e indo para sua cama (a real). A flor branca ficou na escrivaninha, dentro de uma jarra transparente cheia d'água.

'O nome da flor é lírio', pensou ela antes de se cobrir. Sua mãe havia lhe contado. 'Lírio, que nome lindo!'.

Pouco depois, a menina dormiu.

A boneca, não. A boneca ficou acordada, e acompanhou a menina durante seus sonhos.

Quando a menina acordou no outro dia, a boneca estava ao seu lado. 'Mamãe deve ter colocado ao meu lado quando acordou', concluiu e se levantou: o café da manhã estava pronto.

A mãe, porém, não tinha sequer encostado na boneca. Pouco antes de fazer o café, a mãe tinha entrando no quarto e visto a boneca ao lado da filha.

'Ela deve ter dormido com a boneca', concluiu a mamãe, e foi para a cozinha.

1

Estou sentado sozinho, no frio de uma noite de outono, esplêndida, formosa. O céu, já escuro e sem estrelas, é como um longo tapete que paira sobre o mundo. Nas casas, nas ruas, nas cidades, tudo. O céu engloba tudo. Contemplo, com um sorriso, a calmaria imensa acima. Estou sentado no quintal de casa, onde há um pequeno jardim, simples, mas magnífico, a seu jeito. Balanço na cadeira de balanço, que pertenceu a minha bisavó: uma cadeira grande e branca, confortável. Dentro de casa todos dormem, devem estar sonhando, embalados por lembranças e desejos, por medos e antigos fantasmas. O que me deixa acordado, aliás, é um fantasma. Não consigo dormir, não consigo por mais que eu tente, meu fantasma continua a me atormentar. Não quero voltar pra casa, pode estar lá. Mas aqui fora, no frio da noite, estou livre. Sem fantasmas, só frio e ausência de luz.

2

Finalmente consegui dormir, e sonho enquanto meu corpo está na cadeira de balanço -agora sem balançar. Viajo, afinal, por terras já conhecidas. Meu fantasma, infelizmente, me persegue. Nunca parou de me perseguir. Trajando um jeans surrado e um Allstar preto, uma camiseta de uma banda de heavy metal cujo nome é King Diamond e com os cabelos despenteados, me persegue com uma foice na mão e uma camisa de força na outra.

Não sou louco, não sou.

E, é claro, esses eram dois de meus medos. A morte e a loucura, porque não? Mas entregar-se a um era livrar-se do outro. Salvação e maldição em uma espada de dois gumes. Cruel. Corro com toda força e velocidade que consigo, por uma estrada deserta, onde os únicos sons os passos e minha respiração. A figura, pálida e incrivelmente magra, não respira. Corro, corro, corro... Vejo, alguns metros a frente, uma linha de trem. Ouço, como uma sirene que alerta um incêndio, um apito de trem.

O trem aparece a frente, cortando a estrada. Sinto que o que de fato está sendo cortado é meu pulso. Fim da linha? Continuo correndo, a figura incansável atrás de mim. Agora ela traz consigo um estilete, onde estava a foice.

3

Ouço alguém chamando meu nome, uma voz feminina. Um sussurro, um grito, um sussurro, um grito. Mistura-se na estrada, com o apito do trem. Ora apito, ora voz. Oscilando, como as pulsações irregulares que tomam conta de mim. Falta ar, sinto-me ofegante e suado. O homem pálido ri. Está mais próximo, mais próximo... O trem ainda está passando, e não vejo alternativa senão tentar entrar no trem em movimento. Preparo o pulo... sei que sofrerei o impacto ao encostar nele, por isso terei que me segurar firme. Espero um lugar mais acessível para realizar a manobra, o homem pálido muito perto agora, rindo como o vento frio que corta a noite.

Pulo.

Sinto minha mão ser puxada, e ouço um barulho. A dor toma conta de meu pulso esquerdo, o direito felizmente está bom, e estou me segurando a grade do trem... Como se fosse subir numa bicicleta, subo na grade e fico ali por um tempo. Mesmo com a dor no pulso, o alívio de poder respirar parado me inunda, assim como a água faz a alguém que passou horas sem sequer uma gota do precioso líquido.

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Abro a janela da pequena plataforma externa onde estou, entro cuidadosamente, e a fecho após estar dentro do trem. Se esse trem era uma faca que corta meu pulso, agora sou a faca? Sou suicida?

Estou num banheiro, mas não sinto vontade alguma de usá-lo. Lavo o rosto, a água fria funciona como uma dose de cafeína, e me sinto mais acordado. Olho no espelho, e vejo meus olhos... negros como breu. Mas meus olhos são azuis! O que é isso? Fecho os olhos, como quem nega um fato inegável, e os abro novamente. Vejo olhos azuis, os meus olhos.

Confuso, tento entender o que aconteceu. Estou ficando louco? Não pode ser... tudo estava perfeitamente normal, mas o olhos realmente não eram meus. Olho no espelho novamente, para confirmar que meus olhos ainda estão lá. Estão. Abro então a porta do banheiro, entro no corredor central do trem. Luzes apagadas, claro, mas certa luminosidade vem de fora. Relâmpagos, talvez. O único som presente agora vem do movimento das rodas no trilho. Contínuo e cortante. Na minha frente está uma porta, e é evidente que há uma placa ali, mas não consigo ler. Viro a direita, outra porta. A esquerda estão localizadas algumas cadeiras, divididas em duas fileiras. Na primeira fileira está o maior urso de pelúcia que já vi. Um sorriso orna-lhe o rosto peludo. Um pelo bem claro, quase branco... E olhos totalmente negros.

Ouço o apito do trem e corro pra porta mais próxima, seguro a maçaneta e a empurro, mas a porta se abre ao puxar. Puxo a maçaneta, que sai na minha mão.

5

Sobra a porta que está a minha esquerda. Essa, felizmente, abre. Infelizmente, é outra cabine cheia de assentos. O urso não está mais ali, respiro aliviado. Olho pra trás, para me certificar de que o urso está parado onde deveria estar. Vejo, soltando um grito de horror, apenas a linha do trem atrás. Como se o vagão anterior tivesse sido cortado fora, e o trem agora parece muito devagar, um lobo albino vem correndo atrás do trem. O que mais espanta não é isso, porém, mas sim o lugar onde o trem está. É uma floresta, evidentemente, e está nevando. Pinheiros cobertos de neve.

E o lobo correndo.

O tempo parece desacelerar, e sinto o frio se fortalecendo, a ponto de me deixar tremendo e arrepiado. Ouço o maldito apito novamente, e em resposta o uivo do lobo. Viro de volta pra cabine, e ela ainda está lá. Olho pro chão, um peludo tapete vermelho, e as poltronas nessa cabine estão mais afastadas uma da outra. Primeira classe.

Coloco-me a andar em frente, em direção a próxima cabine. Corro por minha vida, e como que num passe de mágica, percebo que estou indo na direção da cabine do maquinista. À medida que me aproximo da porta, ela parece se esquivar para longe, se distanciando. Não importa o quanto rápido eu corra, a porta foge, e foge novamente, e mais uma vez. As luzes começam piscar, ora apagadas ora não. E o uivo do lobo novamente toma conta do que outrora era o silêncio... O frio passa de súbito, e então olho pra trás. A porta está lá novamente, e a curiosidade que possuo fez com que eu voltasse para olha-la: meu erro. Ouço a risada demoníaca novamente, vinda de trás, e o som de uma serra elétrica sendo acionada. O sujeito pálido, de cabelos e olhos negros, anda lentamente até mim, rindo. Abro a porta, e vejo uma sala de cirurgia.

Não tenho escolha senão entrar na sala.

6

Ao adentrar a sala de cirurgia meu primeiro instinto é olhar para trás, e como se esperasse isso, vejo somente a outra parte da sala de cirurgia. Nada de trem, nada de serra elétrica. Ainda bem. As luzes estão apagadas, mas o lugar parece calmo e pacífico. Não vejo nenhuma porta na sala, apenas um amplo conjunto de poltronas alguns metros acima, como se a sala fosse o palco de um grande show. De repente, o medo de que eu faça parte desse show bate em mim: nesse instante eu apenas desconfiava do que se faria certeza em poucos segundos. Ando pela sala, que aparentemente é muito bem equipada:

Desfibriladores, agulhas, aparelhos respiratórios e monitores, e o que parece ser um carrinho-mesa com alguns apetrechos médicos. Bisturis, tesouras, luvas... De súbito lembro da figura pálida me perseguindo, e pego um dos bisturis. Agora, como sair daquela porcaria de sala? Como que em resposta, um dos monitores liga, e começa a emitir um barulho agudo. Aquele tipo de barulho que é padrão em cenas onde um paciente está com o número de batimentos cardíacos abaixo do normal.

Pip. Pip. Pip. Pip. Pip.

Estimulado pelo irritante som de fundo, começo a andar pela sala. Deve existir alguma saída. Numa das paredes da sala está um painel usado para se ver os negativos dos raios-x. Nenhuma saída.

Nem na parede ao lado dessa, que está repleta de equipamentos. A parede ao lado dessa está limpa, nada ali. A porta deveria estar ali. Li em algum lugar que a porta de qualquer sala da cirurgia não pode estar obstruída por nada. Mas ali havia apenas paredes brancas. Me aproximo mesmo assim, quem sabe depois de tantas ilusões ou situações sem sentido, a parede seja apenas mais um truque?

Mas tudo parecia tão real...

Aquela havia sido, definitivamente, a pior escolha que fiz naquela noite. O Pip. Pip. Pip. Pip. Pip. cessou, dando lugar a um piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip....

7

As luzes se apagam, e dois holofotes acendem acima. Ouço gritos e urros de uma plateia invisível. Será tudo obra da minha cabeça?

8

Os urros continuam, agora ouço palmas também, que vão ficando cada vez mais fortes. Até que param. Um holofote foca em mim, o outro na parede. Do branco cru da parede começam a surgir duas mãos, braços, cotovelos... um joelho, coxa, pé... abdome, peito, cabeça, outra coxa, outro pé. Trajando roupa anti radiação completa, estava a mesma figura pálida que me perseguia na estrada. O cabelo oleoso jogado pra trás, os olhos negros e mortos. Segurava -para meu espanto total - a serra elétrica. Recuo na sala, o máximo possível, o holofote me acompanhando o piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip ainda soando ao fundo.

Bato minhas costas numa outra mesa de metal. Desconfio que aquela mesa seja usada para autópsias. Era quase irônico eu estar encostado ali, com um sujeito que não precisava respirar vindo atrás de mim com uma serra elétrica.

VRUUUUUUUUUUUM

Ao som da serra elétrica, desperto de uma espécie de transe e subo na mesa. O sujeito se aproxima lentamente, e essa espera se torna tão torturante quanto a situação em si. Ele levanta serra elétrica acima do ombro e vem se aproximando. Olho o monitor, que ilustra uma linha reta, sem oscilações. Sem pulso. Pulo da mesa, no momento em que meu atacante aplica um golpe que corta parcialmente a mesa. Penso comigo 'O que faço agora?'.

Acenda a luz. Acenda-a. Diz uma voz masculina dentro de minha cabeça. Ilumine-se. Acenda a luz. Agora!

- MAS COMO VOU ACENDER A LUZ?

Os urros da plateia invisível voltam. As palmas também, e o traje de radiação se curva, nova espécie de reverência malfeita.

Faça o monitor marcar pulsações. Forneça-o vida. Diz a voz, dessa vez parecendo mais distante. O monitor, por sorte, está na parede que fica as minhas costas. No fim de um cabo está uma espécie de prendedor, que deve ser colocado no dedo. E o faço. O Pip. Pip. Pip. Pip. Pip. inicial retorna, e o barulho da serra elétrica vai indo pra longe, se distanciando. Um túnel imaterial surge, como um buraco no plano no qual a sala se encontra, e suga a figura pálida. E o leva junto. O plano de fundo dessa falha no espaço é, indiscutivelmente, outra cabine de trem.

A plateia invisível não faz mais som algum. As luzes da sala acendem, e os holofotes apagam. Na parede branca -a mesma da qual o homem saiu- surge uma porta.

9

Entro pela porta, que é a única saída dali, e o medo de que o 'figura-pálida' volte é maior que o medo do desconhecido. Ao atravessar, sinto-me pesado. Estou num corredor imenso com algumas bifurcações em certos pontos, várias janelas estão espalhadas por toda sua extensão. Estou no lugar onde meu avô ficou internado durante minha infância. Em uma daquelas salas, preso numa camisa de força, gritando e pedindo ajuda a Deus. A família não ligava muito pra ele, então sua prisão acabou sendo seu túmulo. Ele morreu com 78 anos, com pneumonia.

Coloco-me a andar pelo corredor.

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Meu pai parou o carro e saiu, e eu o segui. Estendeu sua mão e eu a agarrei. Juntos, atravessamos aquela rua que dava no Hospital Estadual. Duas ambulâncias haviam acabado de parar, com as sirenes ligadas e com as luzes fazendo com que tudo na rua parecesse vermelho. E azul. E vermelho. Após cinco degraus de escada, entramos no hospital e aguardamos um tempo na recepção. Fiquei lendo um livro com gravuras - Alice no País das Maravilhas - enquanto meu pai falava com uma mulher vestida de branco. Passados alguns minutos meu pai me chamou, e a mulher -uma enfermeira- nos guiou até a ala Psiquiátrica do hospital.

Eram longos corredores, repletos de salas. Na primeira ala estavam apenas camas, com salas não muito equipadas, e algumas pessoas -todos em branco- circulavam. Algumas pessoas que não estavam vestidas de branco andavam por ali também. Principalmente mulheres que pareciam ter comido demais, e algumas salas a frente estavam vários bebês. Deitados em pequenos berços, uma outra enfermeira olhava os bebês e empurrava um carrinho cheio de ursos e brinquedos. Dentro do carrinho, destacavam-se as costas de um urso de pelo branco. Continuamos andando.

Mais a frente ouço o grito de uma mulher. É um grito agudo, mas nem meu pai e nem a outra moça pareceram espantados com isso. Chegamos no fim do corredor, a base de uma escada. Subimos e chegamos ao nosso destino. Nenhum objeto pontudo é permitido ali, por isso meu pai deixa as chaves do carro na com outra enfermeira.

O que vejo ali me aterroriza. Pessoas vagando com os braços amarrados com um tipo de camiseta especial, e algumas ainda jogadas em cantos de salas. As portas trancadas, e o suor escorrendo em suas faces, o ar que encontra dificuldade de chegar aos pulmões. Paralisado pelo pânico, só volto a andar quando meu braço é puxado (não com força).

- Estamos quase chegando. - anunciou a enfermeira. - Por favor, não façam barulho.

Meu pai fez que sim com a cabeça, e chegamos à cela. Sala 213. Ali está...

- Vovô? Que ele tá fazendo ali? Porque vovô tá com aquela camisa estranha? -falo, e meu pai me olha com um misto de repreensão e pena, mas não ligo. Estou olhando vovô, que não parece bem. Muito magro e aparentemente fraco, começa a tossir e tremer (mesmo com o suor, aquela roupa deve mesmo ser quente).

- Seu avô está doente, filho. Ele veio aqui para descansar. Logo ele vai fazer uma viagem. Todos nós fazemos essa viagem um dia, e você o verá novamente... - senti carinhos em meu cabelo, que eu não sentia fazia tempo. - Não se preocupe. Ele vai pra um lugar melhor, e não vai mais sentir dor.

Isso me confortou um pouco. Mas a visão daquela sala nunca iria me deixar. Na volta pro carro, escorrego no chão molhado, felizmente longe da escada. A dor, na hora da queda, não se fez presente, mas mesmo assim me levaram pra uma máquina estranha.

- Não respire agora. -Disse um homem vestido de branco. Uma enfermeira-homem. E eu não respirei.

Meu pai me pegou no colo, depois que eu pude respirar novamente, e me levaram pra um dos quartos. Duas camas e uma televisão, duas mesas, duas cômodas e um ventilador de teto. Minha cama dava vista da janela, que infelizmente era uma parede de tijolos. Ao lado da minha cama estava uma criança magricela, uma menina loira de olhos claros. Deveria ter a minha idade. Estava coberta e adormecida, e na cômoda ao lado da cama estava uma boneca -também loira, feita de pano, sentada em um ângulo estranho, como se as pernas estivessem quebradas.

Tempo depois aquela enfermeira-homem -que meu pai chamava de Doutor- chegou com um papel preto nas mãos. Era uma perna! E o colocou sobre um quadro branco, e ao apertar uma tecla o quadro se acendeu, revelando o que era a foto de ossos. De prontidão entendi que aquela era a minha perna, e Doutor disse que um osso havia saído um pouco do lugar quando escorreguei.

-Deve repousar por enquanto, e logo voltarei para dar um jeito na perna de seu filho. Teve sorte, o menino, -disse, sorrindo- por não ter quebrado nada. Descanse agora.

Foi o que eu fiz naquela noite, até que meu pai e Doutor voltassem. Ele disse, como quem pede desculpa, que iria doer. E aconselhou que prendesse a respiração. Eu o fiz, e senti a uma mão no meu ombro. Estranho era que meu pai e Doutor estavam na minha frente, e antes que pudesse olhar para trás e ver de quem era a mão, gritei.

Quando eu acordei, já era noite, e mamãe estava ali também.

11

Era noite. O homem pálido, a coisa que não respirava, fitou o garotinho enquanto dormia. Atrás dele estava um estetoscópio, um cobertor azul claro cobria sua perna machucada. Fitou o menino, em seu sono... e decidiu plantar a semente. Deixou, aos pés do menino, um lírio. A garotinha ao lado da cama do menino tinha seu lírio quase seco, quase morto. A boneca estava fazendo um bom trabalho. Bom trabalho. Ouviu um som chegando no corredor. A mãe do menino. Ao amanhecer daquele dia, ela foi encontrada caída no chão por uma enfermeira, com o pescoço roxo. O laudo da autópsia foi indiscutível: asfixia. Mas o homem pálido sabia que não fora asfixia. Ele sempre sabia. Três dias depois, o lírio da menina loura estaria num cesto de lixo. Seu corpinho estaria num caixão, abaixo da terra.

12

O corredor, apesar de longe e frio, me parece familiar. Já estive aqui, mas o lugar está diferente. Desértico, abandonado e terrivelmente calmo. O silencio chega a ensurdecer, engolir tudo em sua simplicidade. Uma brisa refrescante, que aparentemente não tem origem, que me acompanha pelo caminho. Isso não me assusta, porém...

O medo vem, incrivelmente agonizante, do Homem Pálido que vem me perseguindo desde aquela estrada maluca. E o trem...

Cuidado com o que imagina, menino.

Cuidado com o que imagina? Uma voz dentro de minha cabeça, a mesma voz que me ajudou na sala de cirurgia, começa a trocar pensamentos contínuos comigo. Alguns desconexos, sem sentido. Continuo a andar, mas não por muito tempo. Uma sala me chama a atenção. O número, embora apagado e mascarado pelo tempo, se torna legível pra mim.

213.

Duzentos e treze.

Ali dentro estão algumas caixas, uma cama bagunçada e suja, e alguns ossos.

Pare.

Não paro. Preciso saber o que aconteceu ali.

É forte demais para você, menino.

- Eu já não sou mais um menino. - digo em voz alta. -Eu me lembro daqui. Anos atrás... De fora da sala posso ver a escada que leva pra baixo. Vejo dois espectros passando no corredor. Um sujeito alto, de terno, e um menino com um exemplar de Alice no país das maravilhas debaixo do braço. Estão vindo em minha direção.

Desista, menino. Não faça isso, tens somente a perder.

Ignoro a voz, que outrora me salvou. Atravesso a porta da sala, e o que vejo me faz cair de joelhos e chorar.

13

O Homem Pálido está no trem, perguntando-se como foi que o Menino havia prolongado sua vida. Aquele buraco que o sugou o surpreendeu. De onde o menino teve a ideia de fazer com que o coração batesse novamente? Isso o enfraqueceu. Mas ele ainda estava forte, e tinha que buscar o menino. Sem mais serras, sem mais foices ou estiletes. Agora iria sozinho, sem nada.

Com as mãos fez um hexágono no ar, abrindo um caminho. Viu o menino no corredor do hospital. O mesmo lugar onde matei duas pessoas de sua família, menino. Pensou consigo mesmo. O menino estava a ponto de entrar na sala 213, onde uma das mortes tinha acontecido, quando de repente parou. Uma oscilação na imagem aconteceu, o que espantou novamente o Homem Pálido. Nesse momento, ele estendeu a mão direita e agitou-a por um tempo. Na imagem, apareceram dois vultos, como fantasmas: Um pai e seu filho.

Mexendo seus fantoches, o outro vulto -o que estava no trem- decidiu testar o menino. Será que ele se lembrava de seu passado?

No momento seguinte, ele teve certeza de que sim.

14

Nada poderia tê-lo preparado para ver o que iria ver dentro da sala 213. No momento em que ele entrou na sala, viu seu avô e o doutor. O velho, deitado na cama -e agora sem a camisa de força- tossia muito, lhe faltava ar. A pneumonia havia evoluído, e pequenos tumores tomavam conta de seus pulmões. Estava em estágio inicial, mas a luta que vinha sendo travada com a doença e a idade avançada faziam com que a recuperação fosse impossível. A cena avançou, e chegou um homem.

Pai...

Ele entrou, assinou um papel, enquanto lágrimas escorriam. Agora, o velho senhor estava vivo apenas por aparelhos. O documento assinado pelo pai autorizava que os aparelhos fossem desligados. Uma anestesia geral fora aplicada, os aparelhos desligados, e as lágrimas corajosamente foram limpas.

Sentado na beira da cama, aos pés de seu falecido pai, pediu desculpas. Desculpas por tudo. O doutor deixou a sala. Sabia, mais que tudo, que o homem sentado ali precisava de um tempo sozinho. Sua esposa tinha morrido dois meses antes, e seu filho vinha fazendo fisioterapia. O velho só havia feito piorar no tempo que ficou ali, o que se iniciou com um surto psicótico, onde ele alegava que ouvia vozes e via coisas: acordado ou dormindo, e jurava que eram reais. Logo ele passou a confundir os fatos, datas, e até mesmo pessoas. Obteve um comportamento violento, dizendo que ninguém estaria a salvo.

Seu filho, sentado em seu leito de morte, agora acreditava nisso.

A cena avançou um pouco mais, onde um grupo de médicos do hospital vinha para retirar o corpo. Colocaram-no num grande saco, fecharam o zíper e partiram dali. Na cama ficaram apenas as marcas do corpo que ali ficou deitado nos últimos dois meses. Ora, o corpo estava ali, apenas. A mente fora a muito corrompida.

Numa caixa foram guardados todos os pertences do outrora enfermo: Porta-retratos, roupas antigas, um vaso de flor que foi presente de seu neto.

No chão, debaixo da cama, jazia o que um dia fora um lírio. Apenas a sombra de um lírio. Seco. Vazio.

Morto.

15

Enquanto nosso Menino chorava de joelhos e O Homem Pálido olhava-o pelo portal que criou, vamos nos direcionar a outra parte da história, que pode-se chamar de bastidores. Em sua fuga sagaz, o menino estava inconscientemente navegando por um infinito limbo, durante a noite sem fim. O vento soprava forte, fazendo com que seu bote a remo balançasse, os relâmpagos dançavam enfeitando o céu. A chuva molhava seu íntimo, enquanto a múmia do que era o menino agitava-se, febril e ofegante, a remar. No momento em que o menino adentrou a sala o vento cessou, a chuva parou, e até mesmo o silêncio não parecia mais relevante. A noite virou dia.

A criança cresceu. A semente brotou e o tempo parou. Num paradoxo temporal e termodinâmico, cada átomo e partícula ali chegou no zero absoluto. A imagem do corpo que pertencia ao Homem Pálido (observe que agora ele está trajando não mais seu jeans e sua camiseta: agora ele veste uma capa de cor branca, tão branca quanto ele. Apenas um fantasma a mercê do nada) contemplava seu prisioneiro, em sua cela. Cela duzentos e treze. A cada remada mais perto ficava o menino de seu destino.

Mas que destino era esse? Raramente é gentil, como uma mãe. Como a mãe de todos nós.

Estrelas brilhando em alto mar, guiando peregrinos perdidos. Imensos astros, distantes de tudo. Distâncias inimagináveis.

E ali estava o menino, em seu barco que lutava pra flutuar. Mas lentamente afundava. Afundava. Afundava.

Tal como um dia as estrelas vão parar de brilhar. E as flores todas vão morrer. O Homem Pálido, no trem que seguia ao Destino, fazia com que seu prisioneiro visse as coisas mais árduas que cercavam sua vida, com intuito de fazer seu bote afundar. E estava conseguindo. Iria conseguir. A lua brilhou no céu, e o calor voltou. Do mar, golfinhos pulavam e nadavam. Eles também iriam morrer. Tudo iria morrer.

Mas não hoje.

Um relâmpago clareou o céu, ofuscando a luz das estrelas. A chuva e o vento voltaram, e a múmia do Menino voltou a remar. Estava deveras perto de seu Destino, e não iria parar ali. O que fora o inferno de muitos, a lâmina que corta ou o fogo que queima, a pólvora que explode e o fio da vida que se rompe (que sempre se rompe) foi a salvação do Menino. O menino cresceu. A visão do lírio o fez sentir o único sentimento que lhe salvaria de seu Inferno, de sua morte iminente. O barco estava furado, e a água começava a entrar. O pensamento do homem preto foi o seguinte: "É tarde demais, garoto."

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Não era.

17

Levanto-me e me encaminho lentamente para o lírio no chão. Aquele era o sétimo lírio que vi em minha vida. Aquele era o único que não vi quando deveria ter visto, o lírio de Vovô. Apanho o lírio e o esmago, com raiva pairando sobre mim. Sento na cama, e levo a caixa ao meu colo. O que vejo são lembranças mortas. Um porta retrato mostra uma cerimônia de casamento, vejo meu pai e minha mãe, ele de terno e ela de vestido (verde, não branco). As alianças douradas em seus dedos. Vejo vovô em pé ao lado de minha mãe, e minha avó, tios e tias.

(Futuramente, meu pai me diria que eu estava a sete meses exatos de nascer, no dia que o casamento ocorreu)

Segurando o porta retrato, abro-o e tiro a foto, guardo-a comigo. Não importa o que aconteça, eu iria levar essa foto comigo.

(Bravo, Menino)

De dentro da caixa tiro também um boné. "Natal de 2000. O nascimento de meu neto!". O natal de 2000 foi, sem dúvida alguma, a data mais comentada por minha família durante anos. Coloco-o na cabeça.

Tiro uma caixinha de som, não uma das convencionais, com bailarinas. Essa tinha um espelho. A música começou a tocar quando abri a caixinha. Era música clássica, a Quinta Sinfonia de Beethoven. Meu pai adorava aquela música.

(E a música acalmava o avô no meio das crises)

Olho o espelho, enquanto a música toca, esplêndida. O que vejo no espelho fez com que eu quase soltasse a caixinha no chão. Quase. Vi meu rosto mutilado, cortado e roxo. O Homem Pálido me olhava caído no chão e ria, gargalhava. Com um estilete e um maçarico nas mãos. O homem de negro ativou a chama do maçarico, e começou a se agachar. A chama nas mãos, próxima a minha face... Sinto o calor, chamuscando minha pele.

O espelho quebra, a música continua tocando, agora como trilha sonora, junto com uma risada amarga que começa a vir de longe.

(Ele não tinha como levar a caixinha junto, mas levaria a música na alma.)

A mesma voz que me salvou na sala de cirurgia me diz para correr.

Eu corro.

18

Corro pelo mesmo corredor pelo qual passei quando criança, e o sujeito (agora com capa branca, parecendo apenas um clarão branco no cenário) atrás de mim. Ele vem numa fúria e velocidade inacreditável, e vai me alcançar logo. Preciso encontrar um jeito de sair daqui, preciso encontrar um jeito. Preciso.

Desço a escada sem tropeçar, sem parar pra nada. Passo pela maternidade tão rápido que sequer paro para respirar. E então estou na pediatria. No mesmo lugar que fiquei após o pequeno acidente com minha perna. Sei que devo sair daquele hospital horrível, mas entro na sala onde minha mãe morreu. Onde aquela menininha loira morreu. Ali está escuro, o silencio domina a sala. Aquele recinto era um universo a parte, e eu estava ali. Entro e fecho os olhos. Me sento no chão frio e espero. A espera é mais difícil que a morte ou a dor. É uma tortura quase inigualável: esperar por algo ruim que vai evidentemente acontecer.

Meu perseguidor chega segundos após eu ter me sentado. Não o vejo, apenas o ouço. Sinto-o atrás de mim, ele me olha. Mas eu vejo apenas o escuro.

- Quem é você? -eu pergunto, não de fato curioso. Mas quero saber o que era aquilo, que me fez passar pelos piores momentos de minha vida.

- Eu sou o frio, Menino. Sou o medo. Sou a personificação do mal. A antítese da luz. Sou um paradoxo. Sou a expressão do sobrenatural, que nasceu do medo dos humanos. Vivo a presentear o mundo, Moleque. Vivo a matar os que estão nesse mundo de trevas, a cortar cordões e tecer panos funerários. Sou parte de você.

A resposta, não mais que inesperada, fez o Menino estremecer ali. O Homem pálido, então, era a própria humanidade. A serpente que engole sua cauda.

- Porque faz isso?

- Todos fazem. Pessoas morrem diariamente. Seja por fome, por sede, por doenças. O mundo não tem mais amor. Não tem mais piedade.

- Você está errado -digo, inseguro, em tom de poucos amigos.

(O que era verdade)

Mas eu sei que ainda existe amor no mundo, que ainda existe vida, e luz. Sei que o mal cresce todo dia, e a morte se apresenta em mais lares. Mas sei que ainda existe salvação.

- Deixe eu lhe mostrar uma coisa, senhor. - Levantei-me e mostrei a foto, com a mão que estava torcida, mas nesse ponto a dor era nada mais que insignificante. - Veja isso.

O Homem de capa branca olhou. Ele fez que sim com a cabeça.

- Matei-os quase todos. O que quer de mim, criança? - O homem sabia o que ele queria. - Chegou longe e lutou bravamente até aqui. Foi mais corajoso que muitos no mundo.

Fui? Fui mesmo? Também tive sorte...

- Quero piedade. Se o mundo está escasso disso, dê o exemplo. - Choro. - Se o mundo está ruim, mude-o.

Mas eu sei que era impossível que o Homem Pálido mudasse o mundo. Ele era, afinal, um reflexo do mundo. A parte conturbada. A parte ruim, perturbada.

A verdade é tão simples que chega a doer, que chega a queimar. Precisamos nós mesmos mudar o mundo, e assim O Homem Pálido poderia deixar de ser pálido. Ele representa a nós, e somos nossos próprios terrores.

O homem sorriu, dessa vez não de modo macabro, e disse:

-Exatamente. O mundo precisa mudar, mas eu não posso fazê-lo. Mas posso fazer algo por você. - Ele me contou seu acordo. Eu fiz que sim com a cabeça.

- Vai cumprir seu acordo, senhor?

- Se cumprir o seu, irei - Disse-me ele, estendendo o lírio. Apanho o lírio, cheiro-o, seguro-o em minha mão machucada.

O sujeito virou as costas e saiu andando, deixou a capa cair, e surgiram asas. Um anjo da morte. Um anjo macabro, mas era apenas o nosso espelho. Não mais que isso.

Piedade não é amor, eu sei. Ele me alertou antes quando me disse o acordo que tinha em mente. Mas piedade já poderia mudar muito. Eu cumpri meu acordo: fiz o possível para melhorar o meio no qual eu vivo, fiz o possível para viver melhor, ser justo, ser bom. Daquele dia em diante, meus medos foram quase todos embora. Quase. O lírio foi plantado acima do túmulo de meu avô, e floresceu. Anos mais tarde plantei um no hospital também, e em meu jardim. E na escola onde estudei quando criança.

Mesmo que singelos, os lírios estavam lá. E o Homem Pálido nunca realmente me saiu da cabeça, ele estava lá, como um aviso. Um aviso bom e preocupante. Ele me disse que somente a humanidade pode mudar o mundo, mudando a si mesma. Ele estava certo.

Nos anos que se passaram até minha morte, descobri que nos apegamos mais a vida quando estamos perto da morte. Por isso vivi intensamente após conhecer aquela espécie de anjo incrivelmente pálida. Ele disse que a morte é um presente: libertação. E isso também era verdade.

Não importa o quanto o tempo passe, ou o que façamos, sempre vai existir o bem e o mal. Mas isso não importa, não é tudo ou nada. Bom ou ruim. Preto ou branco.

Existe bem e mal dentro de cada um, tal como existem monstros dentro de cada um. Devemos fazer o melhor para que o monstro não vença, que o bom(ou pelo menos o que é justo) predomine. Aprendi que a vida é uma só, então devemos fazer o melhor ao nosso alcance.

E assim saberemos que os outros o farão também. Piedade não é amor. Mas para um mundo escuro, uma fagulha de fogo é uma estrela, que brilha infinitamente em seu esplendor. Eu nunca mais vi um lírio morto. A caixinha de música me foi enviada pelo correio alguns dias após o acordo, o espelho estava agora consertado.

No envelope que chegou junto da caixa não havia nome algum escrito. E eu entendi a mensagem:

Poderia ser destinada a qualquer um.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 06/05/2014
Código do texto: T4796849
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