Meus Sete Encostos

 
            Rondava-me, nos dias e nas noites, uma falange composta por 7 espíritos macabros. Aqueles vultos, alguns cadavéricos, todos pálidos, sombrios e tenazes, não davam trégua e arrebatavam-me a paz.
            Perturbavam-me os pensamentos, alteravam meu equilíbrio, sugavam minhas energias durante a noite e o cansaço, a irritabilidade e o desalento eram os frutos que colhia daquela famigerada e inoportuna família.
            Tentava combatê-los, ao sair do corpo à noite, procurando enxotá-los e vociferava. Era tudo inútil. Zombavam de mim e sua sanha aumentava. Riam-se e revezavam-se em seus múltiplos modos de torturar-me. Nascia, assim, a ideia de aniquilar minha própria vida em prol daquele grupo que não se cansava de me apunhalar dentro do meu círculo mais íntimo. Os amigos se afastaram e os parente já me tomavam por demente.
            Triste e desencantado, ao caminhar em certa tarde nebulosa e fria, pelas calçadas nuas da minha cidade portuária, procurando uma ponte alta o suficiente para dela dar cabo àquela inútil existência, vi, em uma fachada tímida, o anúncio de uma determinada ¨vidente¨ que prometia trabalhos espirituais. Como se me fosse um último recurso, visto terem falhado a Igreja, as sessões de descarrego evangélicas e os centros espíritas, atrevi-me ao desespero de uma consulta.
            O ambiente sombrio, em uma sala adornada por apetrechos místicos, intimidava-me. Quis fugir, mas a consulta fora paga e a ¨vidente¨ já adentrara o recinto, após vencer uma cortina colorida de contas fazendo um barulho típico.
            Nem acabara de sentar-se e já foi adiantando o meu problema:
            - Vejo o grupo que te acompanha.
            Estremeci. Não havia dito nada a ninguém e o seu acerto ganhou-me a atenção. Prosseguiu:
            - Não será fácil livrar-se deles, mas antes de prosseguir, precisamos afugentá-los para que te passe instruções precisas. – Nisso, após sentar-se diante de mim em uma pequena mesa circular, coberta por uma toalha de cetim azul anil, apertou-me ambas as mãos e começou a dizer uma prece inteligível.
            Em pouco senti um torpor, quase um desligar da consciência e, por um relance, ouvi gritos de revolta que foram sumindo. A seguir, a estranha mulher, trajando um vestido simples, florido, aparentando cerca de 50 anos, muito longe de ser bonita, mas de aparência sincera e agradável, tendo cabelos grisalhos presos na nuca, começou a falar:
            - Temos pouco tempo. Eles conseguirão voltar. O que posso dizer é que, as 3 entidades mais jovens, que se apresentam como crianças, você poderá afastar facilmente através de um jogo. O que terá que fazer é, no próximos sonos, procurar afastar uma por uma do grupo e propor-lhes uma brincadeira de perguntas e respostas. Faça-as prometer, antes, que se não souberem responder à qualquer uma das suas perguntas, que partam para sempre. Entendeu?
            Pedi-lhe que explicasse novamente, para que não tivesse dúvida, e, assim que pude, fui isolando uma a uma durante os horários de sono e fazendo perguntas que não saberiam responder.
            As 3 entidades, em forma de criança, eram bizarras. A primeira, que chamei Lucy, vestia-se toda de negro, tendo compridos cabelos a cobrir-lhe o rosto deixando-se ver apenas um dos olhos, negro, enorme, a encarar-me com terrível força. Livrei-me dela fazendo um questionamento que ouvi em um desenho animado:
            - Qual o propósito do significado? – Vi que ficou confusa. Tentou argumentar que aquilo não era pergunta, que não valia, mas fiz com que cumprisse o juramento e ela partiu.
            A segunda, com uma fisionomia parruda, vestia uns trapos coloridos, era loira e parecia bonachona, soltando terríveis gazes dos quais ria muito. Usei um expediente semelhante ampliando a pergunta:
            - Qual o propósito do significado da existência humana desnudar-se diante do Criador Universal?
            Ficou irritada, confusa e terminou partindo. Levei vários dias até armar um artifício que me libertasse da terceira criança. Essa parecia mais normal. Vestia uma roupa acinzentada, suja e gasta, tendo uma boneca maltrapilha sempre à mão e gostava de segurar-me pelas pernas embaraçando-me os passos na vida.
            Fiz-lhe uma pergunta um tanto diferente:
            - Qual o propósito da existência? – Ergueu seus olhos profundos, castanhos e petrificados. Quase acreditei que fosse responder, mas partiu para nunca mais voltar. Parecendo a mais inteligente, foi, em verdade, a que deu menos trabalho.
            Somente por me livrar delas já me senti melhor, mais senhor de mim. Costumavam ser as piores durante a noite, gritando ao redor e espetando-me com gravetos esquisitos provocando grande irritabilidade. As entidades adultas, dois casais, procuravam sugar-me de modo diferente, perturbando-me o sono, confundindo-me as ideias, seduzindo-me e produzindo armadilhas em formas de terríveis pesadelos.
            Livre de parte dos encostos, retornei à mulher. Sorriu e percebeu que encontrava-me mais leve, bem disposto e até sorridente. Rezou novamente e, assim que a sala ficou ¨limpa¨,  segurando-me as mãos, teceu a forma de libertar-me dos demais:
            - Você deverá se tornar ¨pai¨ de cada um deles.
            - Como assim?
            - Isso mesmo. Todos eles são credores de outras vidas. Pessoas que você muito prejudicou, perseguiu e arruinou. Para começar a encerrar esse círculo de ódio, ao abrigá-los como filhos, poderá começar a amá-los e deles receber gratidão e afeição amenizando o malefício que provocou-lhes a persegui-lo agora.
            Demorei a compreender. No entanto, a mulher calmamente explicou-me sobre a Lei de Ação e Reação, dos Resgates e Retornos. Passou-me o nome de livros que poderiam auxiliar-me e disse que somente assim poderia voltar a viver alguma paz nesta terra. Fiquei desalentado. Refleti muito. Li os livros e ainda busquei outros. Com o passar do tempo a ideia foi ganhando força. Em uma noite, conversei isoladamente com as duas mulheres, uma oriental e outra que parecia de origem caribenha. Disseram que, se me tornassem suas filhas, sentir-se-iam mais justificadas.
            Os homens, no entanto, riam da minha decisão e ameaçaram:
            - Seja na carne, ou fora dela, não te daremos paz!
            Tendo, no entanto, as mulheres do meu lado, percebi que a influência deles se partiu. Pude voltar a trabalhar e a estudar, conheci uma mulher interessante, nos envolvemos e, quase já esquecido daquelas criaturas, nos casamos.
            Após os três primeiros filhos, duas meninas e um garoto, antes que o terceiro fosse gerado, encontrei-me em sono com o último dos meus algozes. Era um sujeito baixo, de óculos, loiro, muito perspicaz que me disse:
            - Resolvi voltar como seu filho, mas ficarei de olho...
            Tivemos um último garoto, o mais rebelde, teimoso, birrento e provocador de todos. Testava-me a paciência de todos os modos. Quando atingiu 6 anos, tendo se tornado um menino magro, loiro, com profundos olhos azuis, encarou-me de modo estranho em uma manhã enquanto sorvia seu mingau com aveia, dizendo:
            - Ainda estou de olho...
            Aquilo fez com que transpassasse um terrível arrepio na coluna deixando-me na boca o amargo de uma dívida que ansiava por quitar...