194 - A ADEGA DA CASA MISTERIOSA

Apenas o filho Joaquim, de catorze anos, teve a petulância de contestar o pai, quando este anunciou a viagem.

— Mas por que vai voltar pra lá? O senhor mesmo dizia que Cubatão é um lugar terrível.

— Vou trabalhar. Estão construindo novas fábricas e até uma refinaria de petróleo. Tenho certeza de que vou achar serviço.

— Vai é piorar da saúde. — A mulher entrou na conversa, já sabedora da inutilidade dos argumentos. — Voltar pra onde já ficou doente uma vez é recaída na certa.

— Se o senhor quisesse, aqui mesmo conseguiria trabalho. Lá no ginásio estão precisando de um pedreiro.É só conversar com o diretor. — Joaquim fala do estabelecimento onde estuda sem pagar, graças a uma bolsa que ganhou quando fez o teste para entrar no curso ginasial.

— Pagam uma miséria. Não dá pra nada.

Alfredo Malaspina era um bom profissional. Um dos melhores, senão o melhor pedreiro da cidade. Mas a inconstância e a vontade de conhecer o mundo em nada ajudava na sua realização profissional. Aos quarenta e dois anos, havia passado a maior parte de sua vida trabalhando fora da cidade onde nascera e na qual mantinha a família.

— Ai, Alfredo, que mania essa sua de procurar serviço longe de casa. — Maria nunca fora de reclamar, mas já estava cansada de cuidar, sozinha, da casa e dos filhos. Embora o marido ficasse ausente por longos períodos, a família crescera, e os quatro filhos do casal eram criados pela mãe. O pai nem tomava conhecimento das duas meninas e dos dois garotos.

— Já tomei a decisão. Falei, tá falado. Amanhã mesmo vou embora.

Sempre foi assim. Avisava na última hora, deixava uns poucos trocados com a mulher, para as despesas de uma quinzena, às vezes nem isso, e partia. Depois, mandava algum dinheirinho, pouca coisa. Dona Maria tinha de se virar, lavando roupa ou fazendo trabalhos de faxineira, a fim de ter o suficiente para não passarem fome.

Moravam de favor numa das casas do sogro. Com a morte do seu Belchior, pai de Alfredo, e a abertura do inventário, a moradia de graça estava com os dias contados, pois os herdeiros queriam o imóvel para alugá-lo. Saindo para trabalhar fora, Alfredo evitava tratar desse problema, pois sabiam que seus irmãos não iriam botar Maria e as crianças no olho da rua.

Rosa, a irmã mais velha, sugerira que eles mudassem para a “casa velha”, também parte do espólio deixado pelo pai.

— Deus que me livre! Aquele mausoléu mal assombrado? Nem morta! — A recusa era de Maria, que tremia de medo só de passar defronte à velha construção. Nem caminhando pelo outro lado da rua se sentia livre dos arrepios, que atribuía à existência de assombração.

A casa velha havia sido adquirida por Belchior Arruda num negócio enrolado, em recebimento de uma dívida. Ninguém, na família, sabia explicar direito como aquela casa mal afamada, palco de uma tragédia, conhecida na cidade como “o mausoléu das professoras”, entrara para o rol das inúmeras casas de aluguel do pai. Já era velha, mal conservada, quando Arruda a recebera: telhados caindo, portas apodrecidas nos batentes, os vidros das janelas todos quebrados, e as paredes negras de fuligem e de limo. A casa não sofrera reforma, pois não havia quem se atrevesse a enfrentar a fama de casa mal assombrada, para proceder a uma reforma.

— Alfredo, toma conta da casa velha. Reforma e fica com ela, é bem maior que aquela casinha que você ocupa. Ajudo na compra dos materiais, das telhas, o que for preciso. — Inutilmente, Belchior tentara o filho.

Não sendo supersticioso e não acreditando em nada além do que via, Alfredo verificou as condições do “mausoléu” da Rua do Espanhol. Vou levar mais de seis meses na reforma dessa ruína. Não vale a pena. Além de não ganhar nada nesse meio-tempo da reforma, não tenho garantia de que a casa fica sendo mesmo minha. Não, não embarco nesta canoa furada. Não mesmo.

Há quase um século, fora construída por um marceneiro espanhol. Depois da morte do espanhol, tinha sido usada como escola e abandonada após uma tragédia até hoje lembrada pelos habitantes da cidade. A alma da moça assassinada naquela casa permanecia vagando pelos cômodos e a casa entrou em franca decadência. O que mais impressionara Alfredo, quando de suas inspeções ao imóvel, fora a adega: no alto porão, com entrada pelos fundos da casa, uma adega permanecia tal qual o marceneiro havia planejado: as prateleiras com os escaninhos próprios para manter as garrafas deitadas. Algumas garrafas empoeiradas permaneciam com seus lacres intactos. As teias de aranha e o pó dos incontáveis anos cobriam tudo como uma sombra alvacenta, um detalhe a mais de assombro e mistério. (1)

Maria entendia bem seu marido, apesar das longas ausências. Fazia três meses que estava em casa, período longo demais para ele. Mas não é por essa razão que ele anda macambúzio, não. Tá desanimado e triste. Tenho medo, ele nunca foi assim.

Ela estava certa e fundado era seu temor. Alfredo sempre fora introspectivo, não conversava muito e, principalmente, jamais falava em casa das dificuldades pelas quais passara. De suas viagens e estadas chegava sempre alegre, trazia dezenas de pequenos presentes e lembrancinhas para esposa e os filhos. Mas nada falava das dificuldades pelas quais certamente passava. Ao voltar recentemente de um período de mais de dois anos, quando trabalhou numa fábrica de cimento, estava diferente. A respiração curta, o cansaço constante, crises de falta de ar, tremor nas mãos e na voz.

Sem avisar Maria, fez uma consulta com o Dr. Gaudêncio, seu colega de grupo escolar e amigo de farras juvenis. O exame foi demorado, e, ao final, o médico parecia ter dificuldade em explicar a gravidade do assunto.

— Alfredo, você ficou tempo demais naquela fábrica. Seus pulmões foram afetados. Ainda bem que você não fuma. Vamos providenciar uma chapa de raios-X dos pulmões.

Na segunda consulta, quando Alfredo levou a chapa radiológica, o médico pigarreou três vezes antes de falar com Alfredo.

— Você tem um problema adquirido por respirar aquele ar ruim da fábrica. Seus pulmões estão funcionando apenas com a metade de sua capacidade.

— E tem cura, Gaudêncio?

— Vou lhe receitar um remédio. Pra você tomar todos os dias. E uma bombinha com um vaso-expectorante, pra você usar quando tiver as crises de falta de ar. — O médico ensinou Alfredo a usar o inalante com medicamento.

— Mas... vou sarar? Me diga com franqueza.

O doutor não responde diretamente à questão angustiada do cliente.

— Vai ter de tomar sempre esse remédio. E a bombinha deve estar sempre com você, para as emergências.

Alfredo saiu do consultório muito pior. A certeza de que seu mal era incurável, mais o uso de um aparelhinho revelador de seu precário estado de saúde deixaram-no abatido e desanimado. Em vez de revelar tudo à mulher, fechou-se num silêncio profundo e sinistro. A esposa, percebendo a mudança, insistia para que não viajasse.

— Fica, Alfredo. Descansa um pouco dessa vida. As crianças sentem muito a sua falta.

Obstinado e não desejoso de revelar seu estado de saúde, foi categórico.

— Já tomei a decisão. Falei, tá falado. Amanhã mesmo vou-me embora pra Cubatão.

Arrumou a mala de papelão, pequena por fora mas grande o suficiente para suas poucas roupas. Numa sacola de mão levava os apetrechos miúdos: navalha, sabão de barba, sabonete, pincel, escova de dentes, um par de chinelos. No fundo da sacola, embrulhada numa toalha de rosto, colocou, com cuidado, a garrucha que há muitos anos mantinha escondida no fundo do guarda-roupa. Única lembrança de seus tempos de pescador e caçador. E por cima de toda a tralha, limpa e polida, a antiga colher de pedreiro, seu primeiro instrumento de trabalho, que funcionava como seu talismã. Tinha certeza de encontrar trabalho sempre que se apresentasse com a colher, legítima Sollingen de aço sueco.

No dia seguinte, antes do albor do dia, saiu de casa com destino à estação da estrada de ferro. Ia tomar o trem das cinco horas, com destino a S. Paulo, donde faria baldeação para Cubatão. A manhã fria se escondia numa névoa gelada, tão densa que se fechou sobre o vulto encapuzado e encurvado do pedreiro, tão logo ele se afastou alguns metros da casa.

Pela última vez a mulher viu o marido desaparecendo nas brumas, caminhando rua acima. Fechou lentamente a porta da frente, voltou à cozinha, onde Joaquim permanecera sentado defronte ao fogão de lenha, caneca de café na mão direita, um toco de pão na outra. As outras crianças não foram acordadas para se despedir do pai.

Engolido pela névoa, Alfredo não se dera sequer o trabalho de olhar para trás, a ver se era observado. Ao passar defronte à casa velha, entrou direto pelo estreito caminho que ia da rua até o quintal. Tem razão quem acredita que este mausoléu é mal assombrado. Pensa, enquanto procura a entrada do porão, tal qual boca escura de uma caverna misteriosa. A névoa penetrava por ela, e voltava, com miasmas de material decomposto. As paredes desapareciam a metro, metro e meio do solo, envoltas pelo lençol branco da neblina.

Risca um fósforo e acende uma vela (fora cuidadoso no preparo do material) para melhor se situar dentro do porão ameaçador. A umidade sobrenatural penetra-lhe até os ossos. Ele coloca no piso a mala e a sacola. Desta, tira a colher de pedreiro e, apalpando até o fundo, retira a garrucha envolta na toalha. Determinado, limpa com a colher uma porção do solo, riscando o chão, marcando para uma finalidade que só ele sabe. Ao lado, um monte de massa de areia e cal, de outro uma pilha de tijolos. O preparo desse material tomara de Alfredo todos os três dias que decorreram da consulta ao médico e o dia que anunciara a sua viagem. Furtivamente, conseguira levar tudo de que precisaria.

Destramente, colocou-se de costas para um dos cantos do porão, justamente aquele em que estavam as garrafas velhas nas prateleiras. Abriu uma delas, quebrando o gargalo e tomando um longo gole.

— Arre! Que vinho forte! Mais parece conhaque.

Engoliu mais dois tragos da bebida antes de começar a levantar uma mureta. Quando estava com a mureta a uma altura de um metro do chão, passou para dentro do cubículo que se formava, a vela, a mala, a sacola e a garrucha. Trabalhando com afinco, animado por mais goles da garrafa, que esvaziou, foi colocando mais tijolos e massa, até deixar uma pequena fresta, onde se tornara impossível pôr mais tijolos ou massa.

Emparedado, chegava a parte mais difícil de seu projeto. Para animar-se ainda mais, quebrou outra garrafa pelo gargalo, e tomou mais goles da bebida. Embora não contasse com essa ajuda etílica, foi crucial e importante estar embriagado para tomar da garrucha, colocar o cano na boca, apontando para cima, e disparar um único tiro absolutamente fatal.

Muitos anos decorreram sem que Maria tivesse qualquer notícia do marido. No principio, achara normal passar dois, três meses sem cartas ou remessa de dinheiro do marido. Fora sempre assim. Quando completou um ano sem notícias, enviou o filho de quinze anos à procura do pai.

O espólio do velho Belchior Arruda foi repartido entre os herdeiros. Para Alfredo, embora ausente, tocou a casa em que morava. A casa velha, que tocara à Rosa e ao marido, foi vendida a preço de banana, para um casal recém-chegado à cidade e que não se incomodara com o precário estado da casa nem com a fama (agora um tanto diluída pelo tempo) de “mausoléu mal assombrado”.

Uma reforma do imóvel teve início. Nos primeiros dias de trabalho, quando montes de caliça, pedras, telhas quebradas e cacos de vidro eram retirados, um dos trabalhadores notou que havia no porão uma parede que não era tão velha quanto a construção.

— Aqui tem coisa! — Bastião cochichou para o companheiro. — Talvez alguma coisa escondida... Quem sabe, um tesouro!

Espertos, resolveram manter silêncio sobre o achado. Voltaram de noite com ferramentas e em pouco mais de uma hora, deitaram abaixo a insólita parede. À luz de velas, depararam com o esqueleto tombado sobre a maleta, com garrafas quebradas por todos os lados, a colher de pedreiro num dos cantos. A arma permanecia presa entre os dentes da caveira.

— Credo em cruz! A caveira tá vomitando uma garrucha! — Zé Cabeção pulou fora do cubículo, e num átimo estava fora do porão. Bastião saiu em seguida, trêmulo e mais branco do que o alvo crânio do esqueleto fantasmagórico.

A investigação policial levou logo à identificação da ossada. As roupas, a mala e, principalmente, a colher de pedreiro, deram como sendo de Alfredo Arruda.

Ninguém que conhecera Alfredo encontrou explicação para o suicídio, além de tudo, tão bizarro. Exceto o Dr. Gaudêncio. Inteirado dos detalhes do processo, lembrou-se bem da visita que o pedreiro lhe fizera, a última demanda do amigo e cliente, à qual não pudera dar uma resposta:

— Mas, doutor... vou sarar? Me diga com toda a franqueza.

(1) – Ver “A Casa Que virou Mausoléu”, conto da série Milistórias, publicado em “A Loucura do Cristal” e editado no Recanto das Letras .

Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 26 de dezembro de 2002 —

CONTO # 194 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
Código do texto: T4793172
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