O Urubu da Morte

Ela me abraçava, com tanta força que parecia quebrar-me os ossos. Dizia me amar para todo o sempre, mesmo depois de descobrir minha rara doença. Larguei o resultado do exame e tentei chorar, mas ao abrir os olhos, encarei novamente aquela figura de plumagem negra sobre o muro, me encarando com tamanha convicção que me assustara.

Depois que Ellen me deixou, comprei uma casa no interior do Pará e aceitei viver os restos dos meus dias na mais completa solidão. Tinha apenas três cômodos, mais que necessários para alguém que dispensaria qualquer luxo em busca de sossego. Boa parte do meu tempo passava deitado ouvindo música. Ao acordar, colocava a minha máscara e seguia para o quintal para tomar sol. Fazia isso bem cedo, pois não gostava de ser visto pelos vizinhos, não na condição em que estava. Sobre a mesa havia uma caixa repleta de remédios. Eram tantos que nem sabia exatamente para que serviam. Juntava aqueles comprimidos como se fossem pregos prestes a descerem pela minha garganta. Era o momento em que precisava tirar a máscara e sentir aquele cheiro indescritível. Era também o momento de encarar aquele urubu que me vigiava pela janela.

Depois da separação, imaginava que Ellen pudesse manter contato. Ligou-me três ou quatro vezes para saber como eu estava, se precisava de alguma coisa. Liguei não sei quantas, porém um belo dia ela parou de me atender. Descobri que havia se mudado para outro estado com o atual marido. Não me importei. Não queria ser um peso morto em sua vida para sempre. Juras de amor eterno são apenas palavras soltas ao vento, e com Ellen não seria diferente. Nos dois primeiros anos de minha doença sempre esteve ao meu lado, mas podia notar em sua face um cansaço extremo e um crescente desanimo. Mesmo com a higiene intensa, conviver no mesmo cômodo era praticamente insuportável. O cheiro fazia arder as narinas, além de ser terrivelmente nauseante. Evidentemente não fazia muito esforço para continuar comigo. Às vezes me olhava com tanta pena que seria capaz atravessar a cidade correndo só para não me ver mais. Foi aquele olhar que me fez libertá-la dessa prisão fúnebre.

Por Deus, o modo como aquele urubu me olhava era algo realmente espantoso. Ele me caçava pelos cômodos da casa. Fechava as cortinas, mas pelas frestas via aqueles olhos miúdos e penetrantes me encarando. Ouvia seus passos pelo terreiro, rodeando a casa, sentindo o meu cheiro. Era paciente. Sabia que eu iria morrer sozinho e seria o seu banquete, por isso me esperava, vigiando-me, cada passo, cada gesto. Urubus gostam de dividir sua comida, são reconhecidos pela solidariedade, mas este era diferente. Separou-se de seu bando para proteger sua própria comida. Era uma ave horrenda, uma rapinante careca de pele ruidosa, de plumagem negra e branca. Possui bico forte, o suficiente para abrir meu peito e se alimentar dos meus órgãos. Dia após dia lá estava ele, zombeteiro e vigilante esperando o último suspiro de um moribundo.

Minha doença era realmente rara. Minhas células se auto-destruíam provocando uma decomposição espontânea do meu corpo. No estágio avançado, as bactérias presentes no meu organismo aceleravam a decomposição provocando um mau cheiro insuportável. Tomava remédios para retardar o processo, porém perdiam o efeito no estágio final. Minha pele era escura e repleta de úlceras e escaras. Meu corpo era bastante inchado, coberto de manchas arroxeadas. Era um verdadeiro zumbi, uma espécie rara de morto-vivo dotado de inteligência. Por dentro havia apenas órgãos deteriorados e pútridos que milagrosamente funcionavam. Em breve meu sofrimento iria acabar, porém a idéia de servir de alimento para um urubu não me agradava. Precisava fazer alguma coisa.

Decidi que iria matá-lo. Naquela situação me sentia submisso e inferiorizado. O resto de dignidade que ainda me restava estava sendo entregue a uma ave que se alimentava de restos, que dividia sua comida com vermes necrófagos. De forma alguma poderia aceitar calado tal condição. Eu o mataria, com as minhas próprias mãos. Poderia arrancar seu pescoço, seus olhos, queimar seu corpo para nunca mais vê-lo. Ele sabia disso. Olhava para mim sabendo que o odiava com todas as minhas forças. Porém não temia, muito pelo contrário, era irônico. Ria de mim com seu jeito peculiar. Contava as batidas do meu coração como se fossem as últimas. Suspirava com a ânsia de me devorar ainda vivo. Gostava de me seguir, embriagava-se com o meu cheiro. “Você não vai escapar”, me dizia todos os dias.

Sob o sol do meio dia estava eu parado diante do meu inimigo. Com um machado na mão, seria capaz de cortá-lo ao meio antes que piscasse. Ele encarava-me sem piscar. Cheirava-me com um fervor indescritível. Foi a primeira e única vez que vi um urubu salivar. Nossos odores se misturavam. Ele estava terrivelmente magro. Deixava de se alimentar para poder me vigiar. Dava para ver seus ossos rasgando a pele e as penas caindo por causa da idade. Não recuava. Permanecia imóvel devorando-me com seus olhos desprovidos de medo. Se Ellen me visse naquele momento, me tomaria como louco. Estava mesmo enlouquecendo, perdendo o pouco juízo que me restava. Deveria ser algum sintoma da morte. Poderia morrer a qualquer momento, mas não antes dele. Perderia uma aposta e o orgulho. Levantei o machado, olhando fixamente para o carniceiro. Ele ergueu o pescoço e girou a cabeça seguindo o movimento da lâmina. Ouvi a voz de Ellen me dizendo que iríamos ficar juntos para sempre, em seguida o vento da solidão varrendo as penas do único ser que ainda me aturava. Apesar de seus propósitos, o urubu seria minha única companhia até minha morte. Seria capaz de deixar o orgulho de lado e aceitar esse acordo informal? Não foi por isso que larguei o machado. Foram as fortes dores que senti no peito. Ajoelhado, vi meu companheiro levantar vôo sem ao menos olhar para trás.

Fiquei o resto da tarde na cama. Meu corpo estava bem mais inchado. Percebi que a ponta dos meus dedos estavam arroxeados e o meu joelho estava mais rígido que o normal. Estava-me faltando fôlego e sentia frio apesar do calor terrível que se fazia naquela época do ano. Li a última carta que Ellen avia-me escrito. Ela pedia desculpas, e até perdão, por não ter cumprido com sua promessa. Dizia não ter mais forças para suportar a dor que sentia por perder o único homem que já amou. Talvez tivesse mesmo me amado. É o tipo de coisa que não se pode ter certeza absoluta. A minha única certeza era de uma morte solitária e dolorosa. Coloquei a carta sobre o peito e fechei os olhos.

Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas já era noite. Acordei com fortes dores no peito e bastante sangue saindo pelo nariz. A janela estava aberta e uma rajada de vento derrubou os livros que estavam na estante. Estava ofegante, com muita sede. Não conseguia mais me mexer. Apenas conseguia ouvir um som vindo do terreiro. Os passos secos e lentos de uma ave de cinco quilos. A visão tornou-se confusa, turva e sem detalhes. A dor cessou repentinamente e senti um alivio reconfortante. Quando as luzes se apagaram e dei o ultimo suspiro, senti as bicadas do urubu tentando rasgar a minha carne.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 01/05/2014
Código do texto: T4789928
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