Mundo de Trevas - Capitulo 7 (último)

CAPITULO 7 – A INVASÃO

Periferia da cidade-forte, cinco dias antes da experiência:

A não ser o nariz um pouco dilatado, ainda não havia diferença nenhuma na fisionomia de Mateus. Mas isso era normal, demorava um pouco para que o cristal fizesse efeito. Ele ofereceu o cachimbo para Cléber, que recusou, preferia ficar só no baseado.

– Você que sabe, cara – respondeu Mateus, passando o cachimbo para outro.

– E aí, podemos ir já? – Cleber perguntou, impaciente, algum tempo depois.

Os outros assentiram, vestiram as toucas, as mochilas nas costas e seguiram no carro de Mateus para o centro da cidade. No total era um grupo de cinco rapazes.

Let there be rock tocando no carro em volume 98. Cléber conferiu as latas de tinta uma a uma. Tomando cuidado a cada cruzamento onde câmeras captavam o que as pessoas faziam no interior dos carros, isso daria um mês de cadeia se fossem apanhados.

Apesar da onda futurista que os prédios adquiriram depois que as cidades precisaram ser quase que completamente refeitas para se tornarem cidades-fortes, o edifício da prefeitura ainda assumia uma arquitetura clássica, embora tenha sido construído há quatro anos. O carro dos rapazes estacionou do outro lado da rua, Cleber ficou de olho no relógio de pulso: 11h40min. As 11h45min o carro da policia passou na sua ronda de rotina, dobrou a esquina, agora só passaria dali a uma hora.

Cleber e Mateus foram os únicos que desceram do carro e correram na direção da prefeitura. Os outros eram uns medrosos, pensava ele, uns medrosos que só estavam ali pela droga de graça. Mateus juntou as duas mãos e fez delas uma catapulta para projetar Cléber para uma parte mais alta do prédio, de onde ele poderia escalar as grades das janelas e subir sozinho. Como Matheus era mais alto, conseguiu subir por conta própria, mas não foi tão longe quanto Cléber. O objetivo era apenas escrever "Monsters" na parede, no ponto mais alto possível e então sair dali. Mostrar para quem passasse na rua que aquele prédio havia recebido sua marca, mesmo que não dessem a mínima importância para isso.

Passou pela janela da sala do prefeito, que estava vazia mas com as luzes acesas. Subiu mais um pouco e quando estava a uns três metros de altura pediu a lata para Mateus e começou a escrever: M-O-N-S –

De súbito uma voz lá dentro o assustou e quase caiu de costas no chão. era o prefeito que voltava para o gabinete. Como Cléber estava mais alto que a janela, o político não o viu, continuou falando ao telefone. Não conseguiu entender tudo, mas ouviu claramente ele dizer que queria um carro oficial para ir embora dali imediatamente, queria estar bem longe no dia da experiência, talvez em outro país. Cléber estranhou aquela conversa.

– Vai, cara. Termina – Mateus cobrou.

Continuou escrevendo: T-E-R –

Antes da última letra, ouviu o prefeito dizer que acha que havia escutado alguma coisa, e seus passos se aproximaram da janela. A primeira reação de Cléber foi não se mover nem um centímetro. Repetia mentalmente "Estou de capuz, estou de capuz, ele não vai me reconhecer, ele não vai me reconhecer".

– Que merda é essa? Eu vou chamar a polícia, seus malditos!

Mateus foi o primeiro a se jogar dali, correndo na mesma hora para o carro. Quando Cleber tomou coragem e se deixou cair ao chão, machucando o tornozelo, correu na mesma direção, mas eles já haviam ido embora. Não ia demorar muito para que uma viatura chegasse até ali, precisava correr para o mais longe possível. Se embrenhou por becos entre os prédios, pulou muros e ignorou os mendigos que dormiam e as prostitutas que sorriam, continuou correndo até o centro da cidade começar a ficar para trás, suava, arfava, a barriga ardia e se comprimia, mas continuou sem parar até sentir que já não havia mais como a policia encontra-lo, aí sim por fim parou, camuflou-se na sombra de um muro alto e descansou protegido pelo capuz, ainda olhando nervoso para todos os lados. O medo de ir para a cadeia não era o que mais o incomodava, nem o fato de o prefeito estar guardando algum segredo sobre a experiência Céu Azul, ou mesmo por ter sido deixado para trás pelo Mateus e os outros – o que não saía da sua cabeça naquele momento era que ficara faltando uma letra na parede da prefeitura, só teve tempo de escrever "Monster".

– Droga, faltou o S – murmurou.

***

Aproximadamente quilômetro a frente do refúgio, agora:

Pode-se dizer que seu rosto parecia o de um lagarto, graças às escamas verdes rachando a pele e os olhos amarelos, mas o seu nariz gigantesco lembrava mais o de um cavalo e a grande estrutura do corpo quadrúpede parecia a de um urso. Com esse grande nariz vinha farejando o alimento desde a cidade, e sentia que estava próximo. Três horas antes havia farejado uma família humana que se escondia no andar mais alto de um apartamento abandonado. Cinco pessoas. Fora a sua última refeição e já estava com muita fome outra vez.

Quando finalmente notou o corpo estirado no meio do deserto, suas grandes patas avançaram rapidamente até ele. era um homem de meia-idade, morto havia pouco, ainda estava fresco.

Iria começar a devorá-lo quando notou atrás de si uma pequena matilha de outras criaturas se aproximando, certamente viram quando ele farejara aquela família e agora vinham seguindo-o para conseguirem alimento também. não valia a pena brigar com todos eles por esse corpo, preferiu não come-lo e esperar que eles chegassem e se saciassem. Isso porque seu olfato já havia feito com que olhasse na direção de onde o homem viera e notasse o casarão ao longe, com uma parca iluminação vinda das janelas. Humanos. Muitos humanos deviam estar lá. Deixou que os outros ficassem por ali ao redor do corpo e partiu em disparada em direção ao casarão.

A fome o deixava mais feroz.

***

O alvo fora acertado com perfeição. A bala havia se alojado no ponto exato do cajueiro onde Rubem havia dito para Cléber mirar.

– Você leva jeito – elogiou.

Cléber sorriu e voltou a aproximar o olho da mira do rifle, mesmo que não fosse atirar a fim de poupar balas, gostava da sensação de ver o mundo por trás do cano de uma arma de fogo.

Já Osmar não pegara muito bem o jeito, quando atirou o solavanco da arma fez com que ele perdesse completamente a mira e fosse atingir o muro lá atrás. Rubem continuou focado apenas em tentar ajuda-lo.

Afastando-se dali, já dentro do casarão, na cozinha as mulheres conversavam sobre a história que Ezequiel havia lhes contado de tudo o que houve na jornada deles até a cidade. De vez em quando, grandes lacunas de silêncio cortavam a conversa, e elas se pegavam pensando na morte.

Subindo as escadas, atravessando o corredor, lá estava Marcel em frente a porta fechada do quarto de Adonias. Ele não quisera aprender a atirar, dando a entender que era tão contra violência que se negaria a abrir fogo mesmo que fosse para salvar sua vida. E dentro do quarto, Adonias deitado na cama estava ouvindo de Ezequiel o quanto se arrependia por tê-lo deixado ir escondido com eles buscar água.

– Agora olha o que aconteceu. Você aí nessa cama. E conseguiu alguma pista da sua namorada? Nada. Não adiantou nada.

– Eu já estou bem, dormi um pouco e quando acordei já me sentia muito melhor. Eles é que insistem para que eu fique nessa cama, já poderia de pé lá treinando com todo mundo.

– Você já sabe atirar – respondeu, cortante, andando de um lado para o outro no quarto.

– Mas não sei mirar direito. E sobre Patrícia, eu já estou pensando numa forma de descobrir para onde a levaram.

Ezequiel voltou-se para ele, curioso.

– Quando encontrei aquele sângrio na casa dela, ele sabia quem foi que a pegou, e com certeza devia saber como encontra-la, só não quis me dizer. Talvez todos esses monstros, pelo menos os que tem consciência e não são só animais, tenham noticias uns dos outros, um tipo de radar. Eu só preciso pegar um deles e "forçá-lo" a contar – enfatizou o verbo.

– E você quer o quê? Voltar à cidade com um saquinho de pipoca e ficar jogando no chão para ver se consegue atraí-los?

Adonias não gostou da piada.

– Ela está esperando que eu vá salvá-la. Eu sei disso.

Ezequiel se comoveu por um instante. Sabia o que ele estava sentindo. Foi até a janela para que o garoto não visse seu rosto. Lá embaixo Leila caminhava até os rapazes que treinavam tiro para avisar que ela, Bruna e Juliana já estavam indo se deitar. Ezequiel ainda sentia que o seu sangue estava ralo.

Levantou um pouco os olhos e notou o indistinto vulto que se aproximava velozmente pelo deserto, erguendo poeira.

– Mas que porra é... – antes de terminar a frase saiu em disparada do quarto para avisar Rubem e os demais.

Adonias ficou sem entender por um instante, levantou-se da cama sem grande dificuldade embora o corpo ainda doesse um pouco, e olhou a mesma criatura pela janela, sendo seguida por várias outras.

Ezequiel pegou sua arma e conferiu o tambor, ainda não fora recarregada, seguiu até onde estavam os outros, pegou uma caixa de munição.

– Espero que já tenham aprendido a atirar – falou ao iniciantes.

– Por que você está fazendo isso? – perguntou Rubem.

– Alguns deles estão vindo para cá. Dos grandes. E rápido.

Rubem pegou sua arma também, Osmar olhou para o segundo, vendo seu filho olhar pela janela, com um rosto de puro espanto.

– Ezequiel, um de nós precisa ficar lá dentro, com as mulheres, para protegê-las.

Ezequiel assentiu e voltou para o interior do casarão, dizendo para Bruna, Leila e Juliana que subissem para o segundo andar e se escondessem. Depois, ele fechou as portas do casarão.

Do lado de fora, Cléber começara a ouvir o pesado som dos passos vindo em disparada, como se se tratasse de uma manada de rinocerontes. E quando o primeiro dos monstros chegou, batendo com força no grande muro, a ponto de fazer os tijolos tremerem, ele destravou a arma e pôs os fones no ouvido: Back in Black, do ACDC.

Adonias desceu as escadas junto de Marcel (com quem ele ainda não tivera uma única conversa) e falou com Ezequiel:

– Me dê uma arma.

Ezequiel apontou para o canto do recinto, onde havia mais uma doze, mas Ezequiel o alertou para que ficasse ali dentro para o caso de algum deles tentar entrar.

– Não, eu quero ficar lá com os outros.

– Você não está recuperado, não iria servir para nada lá.

Adonias ainda tentou insistir, mas era inútil, Ezequiel não queria ser outra vez responsável caso algo lhe acontecesse. Marcel, tremendo, subiu e se escondeu no seu quarto.

Bastou que uma daquelas criaturas acertasse uma forte cabeçada no portão de madeira e as rachaduras começaram a surgir e logo as dobradiças cederam, derrubando-o de vez. E a besta-fera com rosto de lagarto rugiu sua vitória e avançou com irracionalidade contra o tronco seco do cajueiro, e feito um touro, lhe acertou com tanta força que o enorme tronco saiu do chão e voou com força em direção ao muro. Cleber, Osmar e Rubem precisaram se lançar ao chão para que não fossem atingidos.

O filho de Osmar acertou o primeiro disparo bem no peito da criatura e ela se projetou um pouco para trás, mas não foi o bastante para derruba-lo, e o monstro olhou para o rapaz.

Uma das criaturas que entrou lembrava vagamente uma centopéia em escala maior, e essa seguiu com perícia pelo canto do muro como se não quisesse ser percebida e deu a volta no casarão, deparando-se com a porta dos fundos, onde ninguém estava protegendo.

Outras eram pequenas criaturinhas ágeis, pareciam bolas cinza, e quando uma dessas se aproximou de Rubem, ele pisou nela, moendo-a.

Outras vinham sendo mortas com tiros certeiros de Ezequiel e feridas por tiros de Osmar, que não conseguia acertar nos pontos vitais, mas quando caiam no chão ele se aproximava e tratava de acertar mais um tiro, dessa vez na cabeça.

Por uma fresta na janela da cozinha, Adonias viu quando a criatura de olhos amarelos acertou com sua grande garra no corpo de Cléber, que foi jogado longe. E ainda assim, não pareceu ligar para a dor que deve ter sentido, tanto que a primeira coisa que fez ao cair no chão foi mirar a arma outra vez e acertar mais três tiros, sendo que um desses atingiu a lateral do pescoço da criatura e dessa vez ela não grunhiu com a vitória, mas sim com a dor.

Se no começo Osmar tremia de medo do que estava vendo, depois de ter matado três daquelas ciosas medonhas ele já deixava a raiva tomar conta do seu corpo, e atirava incessantemente, descontando toda essa aflição que vinha crescendo nele por dentro desde que tudo começara. Tinha certeza que depois de acabar com eles, seus ataques do coração iam demorar muito para voltar.

Rubem foi pego pelas costas por um sângrio diferente daquele que vira quando encontrara a família Gritten, esse aqui era maior e um pouco mais gordo, e agarrou-se a ele tanto com os braços quanto pelas pernas, apertando com força o seu pescoço.

– Cléber! – gritou ao outro, que olhou na mesma hora, e Rubem só teve tempo de se virar de costas para o filho de Osmar, que acertou um tiro na cabeça da criatura, estourando-a e sujando toda a face esquerda de Rubem com o sangue. Depois, os músculos do sângrio afrouxaram e o corpo por fim caiu ao chão.

Rubem ficara momentamente surdo depois do grito de morte que o sângrio dera no seu ouvido, ouvia apenas um zumbido indistinto por alguns segundos e ao som desse zumbido ainda atirou numa criatura estranha, que não tinha rosto.

A centopéia forçou a porta, mas estava trancada e ela não conseguiu abri-la daquele modo, mas notou que no segundo andar havia uma janela aberta, e com suas patinhas finas e aderentes, começou a subir a parede do casarão, rastejante como um verme.

O infernal som de tiros e gritos conferia a aquele refúgio um perturbador ambiente de guerra. Era um milagre que ainda não tivesse morrido ninguém entre os refugiados, mas todos eles sabiam que a munição mais cedo ou mais tarde iria acabar e precisavam exterminar todos aqueles seres antes que isso acontecesse. Agora faltavam quatro criaturas grandes: a centopéia que até então nenhum deles vira, mais um sângrio, que espertamente estava do lado de fora escondido e esperando a hora certa de atacar, uma criatura quadrúpede com dentes gigantescos e sem olhos, que parecia a todo mover o focinho e sentir com o cheiro onde estavam as presas, e por fim aquela que parecia um lagarto e que agora se aproximava de Cléber enquanto um sangue preto esvaia-se do seu pescoço. Ademais, havia alguns daqueles pequenos seres que pareciam bolinhas cinza e que não ofereciam grande perigo.

Cleber continuava atirando e não a derrubava, e ele percebeu que provavelmente aquelas escamas eram até mais resistentes que a couraça de um crocodilo, mas saber disso naquele momento não adiantava muita coisa. ele tentou escapar caminhando para trás enquanto atirava, mas a criatura foi rápido e logo estava com sua garra forte segurando o garoto pela perna.

Adonias via aquilo com tanta aflição que estava pronto para se levantar, passar por cima do que Ezequiel dissera e ir até lá ajuda-lo, mas antes de fazer isso ouviu um barulho estranho vindo do segundo andar. Ezequiel escutou o mesmo e os dois se entreolharam.

No andar superior, a centopéia acabara de entrar pela janela e escorria por cima da cama para chegar finalmente ao chão, sem saber que embaixo daquela cama estava Marcel, vendo sem fazer nem um barulho enquanto a centopéia descia lentamente. Naquele momento ele sabia o quanto ela estava exposta, se de onde estava acertasse um chute naquela criatura, ela se feriria gravemente, se fosse com muita força talvez até se partisse ao meio. Mas ele não se movia, o corpo todo congelado de medo. Era um homem com grande inventividade intelectual, quase foi capaz de salvar o mundo com suas idéias, mas na hora de fazer uma coisa prática tão simples quanto aquela ele era incapaz e deixou que a criatura passasse completamente. Quando a centopéia alcançou por fim o chão, olhou de relance para debaixo da cama e o viu ali, certamente que o viu, mas por alguma razão o homem tremendo não a interessou e ela voltou-se para a porta do quarto, rastejando para o corredor.

Enquanto isso, Cléber sentia seu corpo todo puxado e ele ficou de cabeça para baixo diante da criatura que o agarrara pela perna e agora o encarava, interessada em analisar bem a cara do humano que fora capaz de revidar a um ataque seu e que a ferira bem no ponto onde sua cartilagem não era tão resistente – o pescoço. O garoto em nenhum momento de u um sinal de fraqueza, nem pela dor que a aquela altura já devia ser insuportável, nem para pedir piedade à criatura ou sequer para dizer as suas possíveis últimas palavras ao pai, que olhava de longe a sua situação e gritava o nome dele desesperadamente. Morreria como um soldado que lutou por uma causa justíssima, e isso nunca foi motivo de tristeza para ele. A música que tocava no fone acabou, a próxima era Let there be rock, da mesma banda. E ele lembrou da última em que ouvira essa música, no carro de Mateus, cinco dias atrás, e por um instante perguntou-se o que Mateus faria numa situação como essa? Provavelmente fugiria, e Cléber concluiu que era superior a Mateus, e isso bem na hora em que a boca da criatura se abria para engolir sua cabeça. Pena para a criatura ela não ter pensado em desarmar o garroto antes de fazer aquilo, e por esse erro pagou caro: o cano da arma entrou na sua boca antes da cabeça de Cléber, e quando ele atirou a bala fez um buraco no fundo da boca do monstro, um círculo perfeito, por onde Cleber conseguia ver do outro lado. Logo em seguida, a criatura caiu no chão e morreu.

Ele caiu deitado no chão, e uma das criaturinhas pequenas se aproximou da sua perna ferida, mas ele a pegou com a mão direita e a espremeu no chão com força, fazendo-a explodir como um ovo cru.

Rubem vinha a algum tempo tentando acertar o monstro de dentes grandes mas, apesar de não ter olhos, a criatura era ágil e desviara de todas as balas, e quando Rubem notou que finalmente a tinha na mira, apertou o gatilho mas só ouviu um creck, a munição acabara.

Pouco tempo depois, as balas de Osmar também tiveram fim, e Cleber nem conseguia se levantar com a perna naquele estado, mas provavelmente sua munição também estava próxima de acabar. O sângrio que estava escondido, notando que os disparos haviam cessado, finalmente deu as caras, correndo para o terreno que a essa altura estava com o chão repleto de cadáveres de monstros. A primeira pessoa que ele viu foi Osmar, e foi contra ele que o sângrio avançou.

Entrementes, sem ser interrompido por nenhum dos homens, a criatura cega com dentes gigantes começou a se aproximar da porta da frente do casarão, talvez guiada pelo forte cheiro de medo que emanava de algumas pessoas lá dentro. Quando ela forçou a entrada, a porta balançou, quase caindo. Adonias e Ezequiel se aproximaram com armas não mãos, pronto pra disparar assim que aquele monstro entrou. E no segundo golpe daquela criatura na porta, finalmente ela conseguiu sua passagem e, feito um tigre de dentes de sabre, saltou para cima de Ezequiel e derrubou-o sob suas grandes patas. Abriu o máximo possível a mandíbula para rugir na cara do jovem soldado, que tinha os braços pressionados pelo peso do monstro, impedindo-o de atirar.

Adonias queria atirar, estava com a mira da arma a postos, mas hesitou por um momento porque sabia que ainda não era um exímio atirador, e ali um erro causaria a morte do seu amigo.

Lá fora o sângrio que derrubara Osmar no chão não durou muito tempo, uma vez que o pai de Cléber lembrou-se do outro sângrio, aquele na casa da namorada do filho, e uma fúria faiscou por dentro dele e ele deferiu um soco tão forte no maxilar da criatura que ela projetou todo o corpo para o lado, e ficou desnorteada por alguns segundos, o suficiente para Osmar subir em cima dela e continuar a socá-la com força brutal até que as costas dos seus dedos estivessem sujas de sangue. Ainda que fraca a criatura continuava viva, e Osmar pegou sua arma que mesmo descarregada podia ser usada como barra de ferro, e acertou várias vezes com aquele cano pesado de ferro na cara da criatura, gritando de pura raiva, e dizimando assim aquele maldito monstro, o último do lado de fora do casarão.

– Atira! – gritou Ezequiel para Adonias, outra vez lá dentro do casarão.

– Você pode morrer se eu errar.

– Não interessa. Atira!

Adonias aproximou o dedo do gatilho e o olho da mira, estava com a cabeça da criatura no alvo, mas na última preferiu acerta-la com um tiro no dorso. Não foi o bastante, deu um segundo tiro, um terceiro, um quarto, um quinto, e por fim o monstro cambaleou e caiu do lado de Ezequiel, agonizando. Ezequiel pegou sua arma e preparou-se para dar o último tiro, mas Adonias o impediu.

– Deixe-o vivo.

– O quê?

– Lembra o que eu te falei mais cedo.

Ezequiel olhou para Adonias, um pouco descrente de que aquele plano daria certo. Adonias não deu atenção a isso, subiu sobre o tronco da criatura, segurou-a pelo pescoço.

– Você fala?

A criatura fazia sons guturais apenas.

Adonias acertou-lhe um forte soco na cara, que machucou sua mão.

– Você fala?!

Outro soco. Outro. Mais um.

– Logo outros de nós virão acabar com vocês – murmurou a criatura sem olhos.

– O Guarda Negro, onde está?

Ele gargalhou e o som de sua gargalhada ricocheteava nas paredes, multiplicando-se.

– Você não sabe? Ele já a levou, ele levou todas as mulheres férteis...

– Para onde?!

– Onde começa o fim? – indagou o monstro, insolente.

Adonias lhe deu outro soco, e ainda continuou tentando arrancar mais alguma informação, porém, assim como o sângrio que também cansara de ajudá-lo lá na casa de Patrícia, essa criatura voltou atrás e prosseguiu rugindo como um animal irracional.

– Me fala como encontrá-la! – Adonias pegou a arma outra vez – Me fala ou eu atiro na sua cara agora mesmo! – e como ainda assim a criatura não dizia palavras, ele atirou.

Mais ou menos como se fizesse parte de um desconcertante Opus moderno, assim que o som daquele disparou estourou, lá do andar de cima um outro som veio para acompanhá-lo: era um grito de mulher.

Ezequiel foi o primeiro a subir as escadas e o primeiro a encontra-la lá, estendida no chão do segundo quarto. Leila, com um grande ferimento aberto na barriga, fruto da mordida daquela centopéia que estava ao lado do corpo, rastejando na direção de Juliana que foi quem gritou, pois seria a próxima vitima, mas Ezequiel não permitiu, estraçalhou a criatura com uma chuva de tiros e depois prostrou-se diante da moça que já não respirava, havia morrido.

E mesmo sabendo que numa hora dessas não valia a pena pensar em certas coisas, ele pensou no fato de estar chorando porque Leila só estava viva por sua causa, o que queria dizer que ele era responsável pela sua vida, e que mesmo que sua mulher Marcela tivesse perdido a vida para que isso acontecesse, ele não podia negar o quanto Leila igualmente mexia com ele, principalmente quando ela se mostrava grata pelo seu gesto de heroísmo, e agora que ela morrera de que adianta pensar em tudo isso e no fato de que no fim poderia estar transferindo o amor que sentia por Marcela para Leila. Talvez por isso chorasse tanto aos pés da morta, enquanto os demais começavam a se amontoar na porta do quarto, inclusive Marcel, que jamais diria a ninguém que poderia ter evitado tudo aquilo. Certas coisas é melhor nem pensar para ver se um dia esquece.

Mais ou menos uma hora depois, Rubem avisou a todos que eles precisavam ir embora daquele refúgio, o portão fora arrebentado e não havia mais segurança ali. Além do mais, precisariam arranjar mais munição, caso contrário não sobreviveriam por muito mais tempo.

Naquela tarde sepultaram Leila sob a neve negra que ainda caia do céu.

Depois arrumaram suas coisas e as puseram outra vez nos carros. Seguiram olhando vez ou outra para trás.

Ezequiel seguia sozinho num jipe, tanto Adonias quanto Juliana e Cléber ofereceram-se para seguir acompanhando-o sabendo que ele não estava nada bem com a morte de Leila, mas ele realmente preferia ficar sozinho um pouco.

Bruna abraçava-se a Rubem que estava dirigindo o segundo carro, de súbito, ela percebeu que depois daquela batalha toda seu marido poderia ter morrido. Qualquer um deles podia ter morrido. Talvez até todos. E ela não sabia se seria tão forte quanto Ezequiel caso isso acontecesse. Juliana ia no banco de trás, olhando pela a janela não para a paisagem do lado de fora, mas sim seu próprio reflexo, triste.

Marcel dirigia a van que pertencia a Victor, e a todo momento perguntava-se se não seria melhor girar aquele volante, afastar-se do resto da comitiva e tentar seguir sozinho a sua vida, mas sempre que estava a um passo de fazer isso, ele voltava atrás e desistia.

Osmar, Adonias e Cléber seguiam o resto da frota e notaram a ironia quando chegaram outra vez na interestadual, agora cheia de carros abandonados. O começo dessa história toda parecia tão distante a eles até então, e de repente aquela estrada lhes fazia relembrar tudo, que aquilo fora no dia anterior, só estavam no começo.

Adonias contou ao irmão o que a criatura havia lhe dito sobre o paradeiro de Patrícia, Cléber ouviu em silêncio. A bateria do seu aparelho de música havia acabado, deixara-o para trás, lá no refugio. E depois de ouvir toda a história, ele refletiu que a única pessoa ali que talvez pudesse ajudá-los com algumas respostas era Marcel e já estava mais do que na hora de Cléber contar a todos a verdadeira identidade do cientista. Assim que encontrassem um novo lugar para ficar, ele revelaria o que descobriu. Por enquanto, para tranqüilizar o irmão, mas também por ter certeza de que o que estava dizendo era verdade, ele falou.

– Adonias, calma, eu sei que você ainda vai encontrá-la.

***

Escuro.

Estava de olhos vendados, mãos e pés amarrados, sentindo um solavanco a balançá-la, provavelmente num veículo em movimento.

Quando Patrícia sentiu que finalmente haviam freado, e que alguém abrira uma porta e a puxava para fora do veiculo, ela pensou que iria morrer, mas eles apenas a deixaram em pé e tiraram sua venda. Estava numa fila indiana de moças mais ou menos da sua idade, algumas chorando, outras, com olhos cansados de tanto derrubar lágrimas, já agüentavam sem protestar.

Agora notava que o que a trouxera até ali, assim como todas as outras, era um tipo de carruagem guiada por cavalos negros de olhos vermelhos, e que aquele homem sem olhos que a pegara em casa e a trouxera estava junto a vários outros da sua espécie, organizando melhor a fila.

Depois de alguns minutos um deles gritou para que todas ficassem caladas e as que choravam engoliram o choro. Então, uma criatura de uma espécie diferente, toda feita de ossos, como um grande esqueleto de animal bípede, aproximou da fila indiana, com uma espécie de caixa preta na mão, e essa caixa tinha um buraco na sua lateral, como se houvesse algo lá dentro que só pudesse olhar o mundo exterior por aquele buraco.

Esse esqueleto começou a caminhar por toda a extensão da fila indiana, mostrado uma a uma das jovens para a caixa, e quando chegou na vez de moça ao lado de Patrícia essa garota começou a chorar outra vez, temendo o pior, mas com ela nada aconteceu. Aconteceu com Patrícia. Quando a caixa passou pela frente dela, uma voz espectral falou lá de dentro:

– Ela. Ele vai adorar ela.

E então o esqueleto a pegou pelo braço e a ergueu, carregando-a outra vez para a mesma carruagem de antes. Por descuido, esqueceram de por a venda nos seus olhos e numa fresta da carruagem fechada, Patrícia viu as outras sendo mortas por aquelas criaturas cruéis.

O seu futuro era incerto, mas talvez corresse na mesma direção no fim das contas.

Olhou para o alto, graças à escuridão da nuvem de microorganismos, ela sabia que assim como ela, ninguém em lugar nenhum conseguia mais ver as estrelas. Pensou em Adonias.

FIM DO CAPÍTULO 7.

FIM DA PRIMEIRA TEMPORADA.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 28/04/2014
Código do texto: T4786617
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