QUEDA NA COVA
A velhota gostava dos mortos. Gostava mais dos mortos que dos vivos. Já tendo atingido a provecta idade de setenta e oito anos, Dona Vicentina contava com mais amigos e conhecidos no além, “do outro lado”, como ela gostava de dizer. Tanto é assim que, sendo uma mulher ainda esperta, mantinha em funcionamento sua pequena flora instalada justamente na Praça da Saudade, bem defronte ao Cemitério Municipal.
— Não posso ficar parada. Não tenho aposentadoria, meu marido (que Deus o tenha!) não me deixou nada, nem mesmo uma casa pra morar. Ainda bem que consegui montar essa bitaca, que me dá algum rendimento. — Gostava de conversar e não escondia de ninguém os percalços de sua vida.
Por “bitaca” — que ela usava por bitácula — referia-se não só à pequena loja de flores como aos cômodos na parte anterior: sala, cozinha, banheiro e quarto de dormir. Todas as dependências minúsculas, apropriadas para sua vida solitária. Ali Dona Vicentina vivia e comerciava flores, fazia delicados arranjos e vistosas coroas para os velórios e enterros que aconteciam diariamente.
— Não me queixo. Ainda tenho disposição para manter este comercinho. Se não tenho distração? Claro. Todas as tardes vou conversar com minhas amigas, meus conhecidos que estão no campo santo. São tantos...
Além da ronda vespertina, ela gostava de acompanhar os defuntos até a morada final. Não seguia todos os enterros, só ia àqueles que aconteciam ao entardecer, quando o movimento da loja de flores diminuía. Então, a velha senhora acompanhava a procissão do defunto e aproveitava para dar uma volta entre campas, túmulos e mausoléus.
De olho nos detalhes, através de sua potente luneta, o rapaz examinava, nas tardes ociosas, as redondezas de sua morada. A casa de Altamiro se localizava estrategicamente no topo da Avenida Pasteur. Dali, ele observava tudo o que se passava na parte mais baixa do bairro. Não tinha muito que ver, pois a população pacata nada de extraordinário apresentava em seu dia-a-dia.
Comprara a luneta mais por curiosidade. Percebeu logo que era um instrumento notável para observar os pássaros, abundantes nos arvoredos das ruas da cidade e sobretudo na Praça da Saudade, com árvores centenárias. Descobriu inúmeros ninhos, acompanhou o processo de nidificação, acasalamento e criação dos filhotes de bem-te-vis, pombinhas, sabiás, almas-de-gato e de inúmeras espécies que habitavam as cercanias.
O movimento no cemitério também era alvo de sua observação. Acompanhava, pela luneta, o trabalho dos coveiros, dos pedreiros e de diversos trabalhadores que eram empregados pelas famílias dos falecidos, para limpeza e conservação dos túmulos. Gostava de ver os enterros. Podia captar, através da movimentação das lentes, os rostos dos acompanhantes. Ficava impressionado com as inúmeras manifestações de histerismo exibidas à beira da cova. Pudera ver mulheres desesperadas sendo praticamente arrastadas por pessoas amigas para longe da cena do enterro, quando as primeiras pás de terra eram jogadas sobre o esquife.
Acabou por descobrir a velha amante do cemitério, nas suas andanças de fim-de-tarde por entre os túmulos. A princípio deu-lhe pouca importância, mas devido à rotina da simpática mulher, passou a acompanhá-la na sua peregrinação. Nas longas tardes de verão, ela usava invariavelmente uma sombrinha de tecido escuro, discreta proteção para sua pele clara. Nos meses de inverno, abrigava-se bem, a velhota sabe cuidar de si mesma, Altamiro pensava enquanto a acompanhava através das lentes.
As tardes de inverno eram curtas e a caminhada de Dona Vicentina era abreviada pela escuridão da noite, que se instalava bem antes das cinco horas. No seu passo curto mas ainda bem esperto, ela passa pelos túmulos dos conhecidos e desconhecidos, lembrando ora uma amiga, ora um incidente ou encontro com outra pessoa, quando viva. Sente curiosidade em ver onde foi enterrada Etelvina, cujo enterro ocorrera naquela manhã e a que não pudera acompanhar.
Deve estar lá no fundo, pela esquerda.Onde estão os túmulos mais recentes Segue até o local e encontra a cova recém-coberta, onde flores murchas e duas coroas indicam a última morada da jovem Etelvina, neta de uma amiga de infância. Mais por hábito que por devoção, se detém ante a terra fresca e faz uma pequena oração. Tenho de me apressar, já tá ficando escuro, pensa, preocupada com o rápido anoitecer.
Persigna-se e se afasta em passos lépidos para sua idade. Mas a vista a atraiçoa. Tropeçando sobre um monte de terra, cai e rola para dentro de uma cova recém-aberta.
Altamiro vê a tarde cair, sempre através das lentes de sua luneta. É quase que uma segunda natureza passar horas e horas olhando a redondeza: as casas (quem sabe vejo de novo a Neuzinha trocando de roupa?), as árvores (cadê o casal de sabiá que tava fazendo um ninho no pé de ipê?), o cemitério (ih! lá tá a velhinha passeando pelos túmulos).
Acompanha a mulher nas idas e vindas. Vê quando ela se detém aqui e ali, de modo aleatório. Já está escurecendo. Será que ela não tem medo de ficar no cemitério depois do anoitecer?
Sem perceber, Altamiro preocupa-se com a velhinha, que não conhece. Já tá ficando difícil de ver por onde ela tá indo. — Vê quando ela tropeça e cai, desaparecendo de sua visão. — Epa! Ela caiu! Caiu dentro da cova!
Ela rola pela terra macia, recém-cavada, até o fundo da cova. Por alguns instantes, sente-se tonta. Assustada com o tombo, ainda deitada, de costas, passa as mãos sujas de terra pelo rosto, testa, cabelos. Graças a Deus não estou machucada, constata. Levanta-se com dificuldade. Está escuro dentro da cova e ela pouco vê. Levanta as mãos e alcança a borda do buraco. Tenta segurar-se, mas a terra do barranco se desmancha em suas mãos. Procura por todos os cantos um local mais alto, a fim de se alçar do buraco. Inutilmente.
Põe-se a gritar.
— Socorro! Socorro! Me tirem daqui! Me tirem da cova! Socorro!
O coveiro, preparando-se para fechar o portão do cemitério, ouve os gritos, fracos, vindos de longe, lá do fundo.
— Cruzes! Tem alma penada gritando aí dentro! Deve ser a moça que foi enterrada hoje, tá estranhando a morada! — Passa a corrente pelas grades do portão e tranca o cadeado.
O voyeur se dá conta da gravidade do que viu. A velha desabando pra dentro da cova por certo não terá condições de se safar sem ajuda. Tenho de correr antes do cemitério fechar. Deixa o quarto de observação num átimo, desce as escadas, corre pelo jardim da casa. Até o cemitério são duas quadras. Passa correndo pelas ruas cujos postes de iluminação já estão com as luzes acesas.
Dentro da cova, dona Vicentina grita cada vez mais alto. A escuridão e a sujeira causam-lhe desespero. Sabe que Joaquim, o encarregado de fechar o portão do cemitério, já está de saída. Grita com a voz cada vez mais esganiçada e fraca. As mãos estão feridas pelas tentativas de alcançar a beirada do buraco. Já caiu por duas vezes, e suas roupas pesam devido à terra úmida e aderente.
Altamiro alcança, cansado, suado, a Praça da Saudade. Vê o encarregado de fechar o cemitério afastando-se, dobrando a esquina. Não sabe se nome. Grita-lhe:
— Hei, coveiro! Pára aí!
O homem estaca por uns momentos. Olha para trás. Nas sombras, vê um vulto correndo em sua direção. Não entende os gritos da aparição. Já amedrontado com os murmúrios que ouvira ao fechar o portão, apavora-se e dispara a correr.
— Espera aí! Espera! — Altamiro está bufando, cansado. Tenho de alcançar esse desgraçado. Falar que a velhinha tá na cova.
Com muito esforço, Altamiro alcança e segura Joaquim pelo braço.
— Hei, homem! Espera um momento!
— Cruz, credo! — Ao se virar, o coveiro vê que não se trata de alma penada, mas de uma pessoa, um homem, esbaforido, é verdade, mas um homem, como ele. — Pensei que fosse alma d’outro mundo.
=Temos de voltar ao cemitério!
=Cê tá besta, sô! Pra quê?
=Tirar a velhinha da cova.
=Que velhinha?
=Aquela que fica zanzando no cemitério todas as tardes.
=Dona Vicentina?
=Sei lá o nome dela? Só sei que ela caiu dentro duma cova.
=Quando?
=Faz uns dez minutos.
=Cumo é que o sr. sabe?
=Vi da janela da minha casa. Lá do alto da avenida.
Acalmado Joaquim e descansado Altamiro, lá vão os dois de volta ao cemitério.
=Essa mulher... Eu sabia que um dia ia acontece qualquer coisa! Ela num sai de lá de dentro. Que mania. Eu bem que ouvi uns gritos, deve ser ela. Pensei que fosse assombração. — Falando mais para si mesmo do que para Altamiro, ao seu lado, abre o cadeado, retira a corrente e entreabre o pesado portão de ferro.
=Cê tem uma lanterna? — Altamiro pergunta.
=Tem, sim, aqui na casinha de ferramentas tem. Vou pegar.
Saindo com uma lanterna acesa, fraca, Joaquim toma a dianteira.
=Vamos ver. Deve ser lá nos fundos, onde tem três covas abertas.
Altamiro o acompanha, silente. À medida que se aproximam do local, ouvem murmúrios, soluços, choro de desespero.
=Rápido! A velhinha ainda tá viva!
Aceleram o passo. Ao chegarem à borda da primeira cova, Joaquim dirige o fraco facho de luz para o interior, de onde vêm alguns sons desconexos. Ficam estarrecidos com o que vêem.
Sentada no chão da cova, uma figura terrífica os mira. Os olhos brilhando, refletindo a luz da lanterna, a boca aberta num grito sem som. Os cabelos desgrenhados. Mãos, braços, roupas, o rosto, tudo coberto de terra úmida.
=Puxa vida! Parece mesmo alma penada! — Altamiro cochicha ao coveiro.
A mulher geme ao sentir a luz.
=Vamos tirar a senhora da cova. Fica firme, vovó! — Antes de terminar a frase, Joaquim salta para o fundo do buraco. Com destreza, pega a senhora pelos ombros e levanta seus braços.
=Pega as mãos dela e puxa devagar. — Comanda o coveiro.
Altamiro faz como manda o homem no fundo do buraco.
=Tá escorregando.
=Segura firme, sô. Devagar. Vai sugando enquanto vou levantando a vovó.
Não sem certa dificuldade, os homens conseguem erguer a velhota. Quando conseguem deitá-la na superfície, Altamiro esfrega seus pulsos, limpa a terra do seu rosto. O ânimo volta à mulher, que, de repente, senta-se e em seguida, se põe de pé.
=Não foi nada, não estou nem machucada. Obrigada, meus filhos, que Deus os abençoe.
Os dois salvadores ficam surpresos com a rapidez com que tudo acontece. Boquiabertos, não têm tempo nem para responder à velhinha,. que se afasta , em passos lépidos, sumindo na escuridão do cemitério.
Antonio Roque Gobbo
Belo Horizonte, 28 de agosto de 2002
Conto # 176 da Série Milistórias