Mundo de Trevas - Capítulo 6 (penúltimo)

CAPÍTULO 6 - ÁGUA

Cidade-forte de São Paulo, cinco anos, três meses e dezessete dias antes da experiência:

Quando sentiu o delicioso cheiro de estrogonofe sabia que ela já estava esperando a sua visita. Quase todos os sábados Rubem ia visitá-la, às vezes levando Bruna, às vezes sozinho, como hoje.

– Mãe – chamou-a.

– Aqui na cozinha.

Foi até lá, sentou-se na cadeira, disse que lá na rua já podia sentir o cheiro bom. Começou a balançar por entre os dedos um copo vazio que estava sobre a mesa.

– Mãe, eu preciso te dizer uma coisa.

Ela continuava de costas para ele, mexendo o estrogonofe.

– Pode falar, filho.

– No quartel, eu fui designado para o Tocantins, pra cuidar do laboratório que eles têm por lá. A senhora já viu no jornal?

Parou de mexer na panela e as bolhas de fervura tiveram tempo de subir e estourar na superfície. Ela se virou e fitou Rubem.

– Você se ofereceu para esse trabalho?

Não respondeu.

– E tem dia marcado para ir?

– Daqui a duas semanas.

Ela não se virou para a panela, logo o estrogonofe criaria bolotas.

– Quer vir junto, mãe? Eu consigo uma casa para a senhora lá. Eles estão pagando bem pelo trabalho.

– Claro que estão pagando bem – ela retrucou.

– A senhora quer?

Agora sim, virou-se outra vez para o fogão e continuou mexendo, ora em sentido horário, ora anti-horário.

– Melhor não. Sabe como eu sou, não ia me acostumar em morar em outra cidade.

– Mas mãe, hoje em dia todas as cidades são iguais. Cidade-forte padrão.

Foi a vez dela não responder. Mudou de assunto:

– Você fica pro almoço?

– Fico.

Restou silêncio por algum tempo, até que João entrou, abraçou Rubem.

– Como você está crescendo! – Rubem falou e o menino sorriu.

João era filho de Caio, irmão de Rubem, que falecera no ano interior junto com a esposa, num acidente de trânsito na estrada para a cidade-forte do Rio de Janeiro. Desde então o menino morava com a avó.

A pedido dela, João se sentou à mesa também.

– Eu venho visitar vocês sempre que der, a senhora sabe.

Ela pôs o prato do neto e ele começou a comer, depois serviu a Rubem uma porção com apenas pedaços pequenos de frango, do jeito que ele gostava.

Um mínimo sorriso:

– Eu sei, filho. Agora coma, coma, antes que esfrie.

***

A pouco mais de três quilômetros a dentro da cidade-forte, agora:

– Patrícia... não... Você, largue-a... não... NÃO!

Com o solavanco do grito, Adonias acordou. Demorou para entender aonde estava, seu corpo todo ardia e podia sentir o suor escorrendo, os arranhões no peito formigavam como cupins devorando madeira. Tremia de frio.

– Agüenta aí, moleque. Falta pouco, já dá para ver o reservatório.

– Ele morreu? – perguntou com dificuldade, referindo-se a Victor.

Ezequiel olhou para o banco do carona.

– Não, só desmaiado.

Adonias tombou a cabeça para o lado e da janela viu o jipe de Rubem logo ao lado do deles, estimava que corriam a mais de cem quilômetros por hora pelo vento que vinha da janela da frente e batia no seu rosto. E mesmo assim suava.

– Quanto tempo estive apagado?

– Quinze minutos, vinte talvez.

A neve negra continuava caindo, mas nem sinal de o céu clarear. "Talvez já seja noite, por isso", pensou, mas aquilo não o convenceu muito, saíram do acampamento logo depois do meio-dia, não deviam ter se passado nem quatro horas.

O carro de Rubem buzinou.

– Mas que merda é essa agora?! – Ezequiel bradou, diminuindo a velocidade. Adonias via que a frente estava a cerca de ferro que os separava das grandes construções em forma cilíndrica, como gigantescos galões de cimento.

Desceu do carro e nem precisou falar para Adonias ficar, o garoto mal conseguia se mover, tinha medo de fechar os olhos e voltar a ter aquelas alucinações, então fixou sua atenção na frente do carro, de onde via Ezequiel e Rubem se aproximando da grade, onde no chão, varias massas disformes estavam sobrepostas umas nas outras, algumas com os dedos ainda agarrados aos buracos das grades como se tivessem sido fuzilados pelas costas enquanto tentavam subir.

Os arranhões latejaram, o coração bombeou mais forte. Estava piorando. Os ferimentos pareciam roer seu corpo de fora para dentro. Não conseguiu resistir e desmaiou outra vez.

– O que você acha que aconteceu? – perguntou Ezequiel, tocando nos cadáveres com a porta do rifle.

– Alguma coisa os encurralou enquanto estavam tentando entrar no reservatório.

– E essas marcas? – observou, referindo-se aos furos perfeitamente circulares bem na articulação entre o braço e o antebraço, como uma marca de injeção (mas com dois centímetros de diâmetro, quase do tamanho de uma bala de arma de grande porte).

Rubem preferiu não dizer nada para não preocupar a si mesmo. Acertou um tiro no cadeado que protegia a entrada, arrebentando-o. Os dois caminharam com cuidado por entre as edificações de cimento, onde havia vários pontos cegos que podiam esconder criaturas prontas para encurralá-los. Por um momento, Rubem sentiu uma pessoa caminhando atrás dele e quando olhou viu rapidamente as costas de Ezequiel, que verificava uma outra parte do reservatório. O que era estranho, porque Ezequiel saíra na outra direção, não deveria estar ali, mas não iria se deixar enrolar pela paranóia e continuou andando.

Quando por fim se certificaram de que o lugar estava deserto, os dois se reagruparam e seguiram até um pequeno galpão onde havia dezenas de garrafões vazios de plástico, pegaram alguns e acertaram que tirariam água dos tonéis 1 e 2, que eram os mais próximos da saída. Como a torneira inferior não podia ser aberta sem energia elétrica, eles precisaram subir uma escada de ferro de quinze metros presa à construção para chegarem ao topo, onde uma manivela circular de ferro tampava a preciosa água. Foi com muito esforço que conseguiram girar a manivela e abrir o compartimento, mergulhando os garrafões lá dentro até que estivessem cheios. Rubem olhou para baixo enquanto descia a escada para pegar mais um garrafão vazio e viu um menininho caminhando por entre os tonéis. De cima, só podia ver o cabelo loiro escuro liso que caia de forma uniforme tanto sobre as orelhas quanto a testa.

– João? – falou, chamando a atenção de Ezequiel, que curioso olhou para baixo também, mas não viu ninguém.

– Algum problema, cara? – perguntou para o amigo.

Depois de um pequeno segundo de distração, quando Rubem voltou a olhar para o chão, não o viu mais.

– Nenhum.

Sentado em semi-lótus no chão, olhava para o muro alto e acima dele a escuridão do céu, como se estivesse esperando que a qualquer momento uma das tais criaturas surgisse ali por cima e invadisse o refúgio, devorando a ele e a todos, pondo fim à tragédia.

Há mais de uma hora estava no mesmo lugar, já com o cabelo totalmente encoberto pela neve escura, mas sem se incomodar com isso. Os outros haviam entrado na casa para esperar, mas ele preferiu ficar ali, sozinho, contemplando seu opus magnum frustrado.

Provavelmente não sobrevivera sequer um membro da comissão do Nobel para vir a condecorá-lo um dia. Ele, Marcel, quase o criador da dinamite.

Abriu um pequeno sorriso com o seu humor carcomido.

Ainda não entendia o que dera errado, refizera todos os cálculos de que se lembrava, alguns rabiscados na areia a sua frente, mas nada apontava um fim como esse. Não entendia e não fazia diferença. O leite derramado já secara e se misturara a estrutura da calçada, átomo a átomo. Irreversivelmente.

Cleber sentou-se ao seu lado, sem fones no ouvido dessa vez.

– Fico feliz que você tenha... acordado? É essa a melhor palavra?

Marcel não respondeu, não dissera mais uma palavra desde que comemorara a queda da neve negra. Mas dessa vez não porque não conseguia dizer, mas sim por medo de que escapasse da sua boca algo que revelasse sua identidade.

Cleber virou-se para a parede também.

– A alegria de agora a pouco já foi embora, não é? Ninguém está mais ligando para esses flocos caindo. Parece que não resolveu em nada o problema. – Fez uma longa pausa, pegando algumas das pequenas bolinhas pretas nas mãos e as moendo. – E pensar que todo o planeta está nessa mesma situação, que começou ali, a menos de cem quilômetros de onde estamos agora.

Marcel virou-se para ele, perturbado.

– O que você quer?

Cleber sorriu.

– Nada, companheiro. Por enquanto estou totalmente satisfeito.

Ácido silêncio.

– Bom, acho que você quer privacidade, não vou mais incomodá-lo. – o filho mais velho de Osmar levantou-se e caminhou alguns passos, para depois parar, sorrindo. – Ah, quase me esqueci – aproximou-se outra vez, revirando os bolsos. – Tome, é seu – e entregou na mão de Marcel o crachá que ele encontrara.

Ezequiel havia acabado de descer a escada tendo em mãos o quarto garrafão cheio e estava pronto para subir junto com o quinto, quando ouviu uma pequena crise de risos vinda de algum lugar próximo. Difícil dizer de onde, já que o som parecia se propagar pelas curvas dos tonéis. Uma risada feminina, sem duvida.

Assobiou para chamar a atenção de Rubem e depois fez um sinal de que iria dar mais uma fiscalizada no perímetro. Colocou a arma a postos e seguiu sorrateiramente em busca da bisbilhoteira. Novamente a risada, dessa vez pode notar de onde, o pequeno galpão. Para imitar um daqueles filmes de terror com um orçamento terrivelmente baixo, a porta do lugar balançava e pela fresta ele viu alguém se mover do lado de dentro. Seguiu até lá com muita vontade encontrar algum bicho bem medonho, para poder estourar-lhe a cabeça e ver os seus miolos estourando na parede. Talvez assim relaxasse um pouco do estresse de estar naquela cidade que parecia deserta, mas tinha cheiro de ameaça.

Ao entrar, um objeto de vidro caiu num dos cantos do recinto, espatifando-se em centenas de cacos, dando a impressão de que fora deliberadamente derrubado. Ezequiel destravou a arma.

Por entre as prateleiras e os amontoados de galões vazios, viu algumas torneiras de cobre sobressalentes, caixinhas de primeiros-socorros, medidores de ph da água e uma silhueta particularmente familiar. Até que um sussurro se ouviu: "Aqui...".

Ezequiel deu a volta ao redor da grande prateleira o no corredor se deparou com a dona da voz, pelo menos com suas costas e cabelos compridos que desciam em irregulares ondulações. O cano da arma vibrou quando seus dedos começaram a tremer. "Você me achou, Ezequiel..."

– Ma-Marcela? – sua garganta requeria mais veemência e ele gaguejou. Não podia ser ela. Ela estava morta. Mas... Ali estava, à sua frente. – Você.. você pode se virar?

Com um risinho infantil que não era típico dela, Marcela virou-se e ele, espantado deu um passo para trás. Era ela, toda a fisionomia da sua esposa, a voz era a mesma, até o cheiro era o dela. Mas o que o espantou foram os olhos, brancos como gesso.

"O que foi, Qui? Você parece tão assustado..."

Como explicar o que aconteceu em seguida? Com que palavras dizer que ele sabia que não era ela, que estava sendo enganado, e não estava fora de si ou hipnotizado, Ezequiel estava lúcido e lucidamente deixou a arma de lado numa das prateleiras e se aproximou quase em lágrimas de Marcela, para abraça-la. Ela sorria de braços abertos e o abraçou apertado também. "Calma, tudo bem. Eu estou aqui agora..."

– Eu achei... que nunca mais fosse te ver...

Por estarem abraçados, Ezequiel não via no rosto dela aquele sorriso de dentes de prata, nem percebia que as pontas dos dedos dela começavam a se distorcer, e pequenos buracos começaram a nascer neles, como bocas.

Sem movimentos bruscos, ela aproximou aqueles dedos do antebraço de Ezequiel e ele afastou um pouco o rosto para olhar mais uma vez para a sua esposa, e quando os dedos ágeis por fim encontraram o ponto exato entre o braço e o antebraço, onde as veias pulsavam, aquelas boquinhas abertas adentraram a pele sem causar nenhuma dor, e feito sanguessugas alimentavam-se lentamente do homem.

– Você está tão linda – ele falou, ainda sem entender que aquela sensação de corpo leve não vinha da alegria de estar reencontrando Marcela, mas sim da pressão sanguínea que diminuía.

Assim frente a frente, enquanto se entreolhavam não era difícil de notar que a medida que Marcela ficava com a pele mais corada e um sorriso mais brilhante, Ezequiel empalidecia e perdia suas forças. Mas ele não percebia, tão feliz que estava. e só não morreu ali, olhando nos olhos daquela parasita com a forma da sua mulher, porque Rubem entrou no recinto e notou o que estava acontecendo, não pensando duas vezes antes de disparar o tiro certeiro, que passou por uma fresta da prateleira e se alojou na lateral da cabeça de Marcela, que com o impacto teve seu corpo lançado com força para o lado, contra a parede, cortando assim o contato visual com Ezequiel.

Ezequiel gritou e correu para ajudá-la, mas sabia que era tarde. Duas vezes a mesma perda. Levantou-se enfurecido e correu até Rubem, empurrando-o sucessivamente para trás.

– O que você fez, desgraçado!

Rubem engatilhou outra vez a trava de segurança da arma, para não correr o risco de disparar contra o amigo acidentalmente. Quando Ezequiel ia lhe deferir o sexto empurrão, segurou as suas mãos.

– Não era ela!

– Cala a boca!

Um soco no rosto, que não deixou marca porque Ezequiel estava fraco.

– A tua mulher morreu! Ezequiel me escuta, Marcela morreu. Lá atrás. Aquela ali não-era-ela!

Ainda precisou conter muitos golpes do amigo até que ele se acalmasse. A razão só veio quando os braços já não agüentavam mais. Rubem disse que sentia muito.

Já com a adrenalina mais baixa, Ezequiel percebeu que estava meio zonzo e que aqueles buracos no seu braço estavam abertos, tratou de apertá-los para que o sangue não continuasse esvaindo. Pegou três caixinhas de primeiros-socorros que havia visto antes enquanto Rubem fora até o corpo daquela criatura para se certificar de que estava morta. Ele não diria nada ao amigo, até porque não via necessidade para isso, não diria a ninguém que matar aquela coisa não foi tão fácil quanto podia parecer, porque aquela criatura que os olhos de Ezequiel viam como Marcela, os de Rubem viam como sendo seu pequeno sobrinho João. Pegou uma manta numa das prateleiras e cobriu o cadáver.

Do lado de fora, enquanto colocavam os galões nos carros, vez ou outra olhavam para todos aqueles mortos na cerca, com os buracos nos braços. Cada um deles tinha suas perdas e por isso foram enganados até a morte por aquela mesma criatura, todos eles deviam saber que aqueles abraços não passavam de uma grande mentira, mas mesmo assim abraçavam. Cada um se ilude como pode, entorpecendo a vida do seu modo.

No carro, depois de receber um pouco de água, Adonias acordou mais uma vez, sentindo que os ferimentos estavam se agravando e a febre já deixava a visão turva nos cantos dos olhos. Estava deitado no banco traseiro, olhando para o teto do veiculo e ouvindo um murmúrio distante, que talvez fosse Ezequiel tentando conversar com ele.

Victor acordou também, fraco, porém sem sentir dor. Só uma queimação no estômago e a tranqüila sensação de que estava morrendo.

Os carros a cento e vinte por hora, com os pára-lamas ativados para limpar toda aquela neve negra que atrapalhava a visão da estrada. Ezequiel (já mais recuperado) tinha uma questão de honra naquela história. Ele permitira que Adonias viesse e por isso era responsável pelo garoto. Caso o pior acontecesse, como explicar a Osmar?

– Vamos, vocês vão agüentar. Estamos chegando. Estamos chegando.

***

Assim que os faróis foram vistos ao longe por Leila que esperava na janela do segundo andar, todos correram para o portão e o abriram para que os carros pudessem entrar no terreno do refúgio sem precisar diminuir a velocidade.

A primeira coisa que Ezequiel fez, antes de conversar com qualquer um deles, foi descer do carro, dar a volta por ele e pedir para que o ajudassem a tirar Adonias ali de trás. Ele estava desmaiado outra vez. Osmar e Cleber foram os que tiveram essa missão e, cada um num ombro do garoto, o levaram para dentro. Enquanto isso, Rubem e Ezequiel ajudavam Victor, que caminhava com dificuldade mas dizia que estava tudo bem, só queria descansar um pouco.

Rubem pediu para que Bruna pegasse os artigos de primeiros-socorros no carro e perguntou o que ela podia fazer pelos dois. A enfermeira Bruna iria ajudar Victor que estava na varanda (mais próximo), mas ele pediu para que fosse cuidar de Adonias primeiro.

Osmar e Cleber o levaram até o quarto sem dizer uma palavra, nem para criticar os homens que pareciam ser responsáveis nem para se lamentar pelo infortúnio. Era um drama cansativo e desnecessário. Nem lágrimas rolaram, porque por enquanto ele estava apenas ferido, mas eles sentiam a febre no seu corpo, sinal de vida pulsando na sua forma mais prática: calor. Adonias não se deixaria ir.

Bruna pediu para ficar a sós com ele.

Na varanda, Marcel olhava para Victor sem dizer nada, mas o outro sabia que alguma coisa havia mudado, era fácil perceber que Marcel já não estava mais em estado de choque. Aqueles olhos aguçados pareciam sempre planejar alguma coisa.

Enquanto os outros estavam retirando os galões de água do carro e os levando para dentro do casarão, Juliana se aproximou dele e perguntou o que havia acontecido por lá e como estava a cidade agora.

– Tudo está irreconhecível. É como se o mundo tivesse se tornado um lugar completamente diferente de uma hora para outra. O que antes era impossível, inimaginável, agora pode acontecer a cada esquina.

Marcel se afastou.

Meia hora depois, Bruna saiu do quarto e Osmar estava a postos no corredor.

– E então, como ele está?

– Ele vai ficar bem, eu já cuidei dos ferimentos e felizmente eles trouxeram antibióticos, não vai haver complicações. Daqui a mais ou menos uma hora alguém precisa alimentá-lo, e acho que amanhã já estará bem melhor. Ele está acordado, se você quiser entrar.

– Não, melhor não. Pelo menos agora.

Já o diagnóstico de Victor não foi assim tão otimista. Depois que explicaram Rubem explicou os sintomas dele, Bruna fez as averiguações que ela podia ali sem nenhum equipamento e percebeu o que estava acontecendo.

– Você tomou muitos remédios, não é mesmo?

Ele não precisou responder, no seu rosto já estava a resposta.

Leila perguntou:

– E então, como ele está?

Bruna se levantou, tomando uma posição mais profissional para responder.

– Ele está sofrendo com as reações do remédio no estômago. Os batimentos estão acelerados e instáveis, o que não é bom. Mas parece que o seu corpo não está sucumbindo a química sem resistir. É possível que o organismo continue expelindo os medicamentos e isso sim é uma coisa boa. Eu recomendaria uma lavagem, mas é claro que não temos como fazer isso aqui, então precisamos esperar, não há muito mais o que fazer...

– Não – Victor disse. –, está chegando a minha hora. Eu posso sentir, sabe? Não tenho como explicar, é algo que vocês não entenderiam. Está acabando já...

– O que é isso, Victor? Você precisa pensar pos...

– Shiu... por favor. Não precisa se preocupar, eu mesmo estou aceitando bem isso. Vocês, poderiam chamar o pessoal até aqui, eu gostaria de pedir algo.

Quando todos já estavam reunidos na varanda:

– Está na minha hora. Não vou fazer discursos, que nunca dei pra isso, não é agora que vou começar. Só gostaria de pedir que vocês abrissem os portões para que eu pudesse sair...

– O que? Está ficando...

– Osmar, calma. Não vamos ficar discutindo isso. Eu só quero morrer do lado de fora, livra-los do estorvo do meu corpo. Isso é bom para vocês também, para não atrair nenhuma daquelas coisas com o cheiro. Mas não pensem nisso como um ato cruel, e sim um favor que fazem a um amigo, como um último pedido.

– Não, isso, de jeito nenhum – Osmar respondeu, contrariado.

Mas Rubem refletia sobre o assunto e disse:

– Você tem certeza de que quer isso?

– Absoluta.

– Então nós vamos fazer. Na hora em que você quiser...

– O quê?! – Osmar insistiu. – Você não pode decidir isso assim, sem consultar ninguém.

– Consultar? O que você quer, uma votação? Ele está fazendo algo da sua própria vontade, sem prejudicar ninguém. Não temos o direito de impedi-lo.

Os demais não disseram nada, sinal de que estavam do lado de Rubem.

Naquela tarde os portões se abriram apenas o suficiente para que uma pessoa saísse, e Victor ainda recebeu as despedidas emocionadas de todos eles e um apertado abraço de Osmar, que criara um laço de amizade muito forte com ele. Em seguida, deu as costas para o refugio e começou a caminhar pelo deserto, seguindo o rastro deixado na areia pelos automóveis horas antes, e ouvindo atrás de si o som do portão se fechando.

Indeterminado tempo depois, ainda sem conseguir ver ao longe a cidade, sentiu uma pontada no peito que o fez cair ao chão. Deitado na areia, olhando para o céu escuro, agradeceu por não ter morrido no dia anterior, quando engolira os comprimidos. Pensou: Essas vinte e quatro horas a mais valeram muito a pena, afinal.

Satisfeito, fechou os olhos e morreu.

FIM DO CAPÍTULO 6.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 24/04/2014
Reeditado em 24/04/2014
Código do texto: T4781341
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.