Sereia
 
            Sabia eu daquela dama desnuda.
            Guardada a prudente distância, adormecida em forma de pedras sobre rochas, despertava em noites incertas, sob a claridade cúmplice do luar.
            Foi de surpresa que descobri que existia. Guardava em mim uma tristeza, vertendo pela boca o aguçar laminado do etílico corrosivo, quando vi que o banho de prata descendo dos céus envolveu o rochedo sob as mantas do encanto.
            Prudente, fiz minhas mãos sofrerem sobre os olhos, tendo, à primeira vista, atribuído a visão ao primor da batida do teor da garrafa diante do meu juízo combalido. Não contive em mim a admiração.
            Timidamente, como se fosse o sol se abrindo, foi-se o negrume acinzentado das pedras vertendo-se de curvas, cores e formas brandas e o seu corpo surgiu diante de mim como a fábula reveladora de mil ansiedades pueris.
            Vi-te inteira, descoberta, pura e longeva como os monumentos diante das catedrais celestes. Enfim, ergueu-se naquele espreguiçar felino, sedutor, ao passo que, sentindo que o mar era seu, entregou-se às ondas em mergulho manso.
            Aquela primeira visão foi o fim da minha paz. Não havia mais noite em que não te procurasse e, das outras vezes, com a certeza de encontrar-me sóbrio, embora as mágoas de um coração ferido ainda não houvessem cicatrizado.
            Na terceira vez, vi que me notara. Olhaste diretamente para meus olhos e fizeste um gesto com as mãos, um convite? Mergulhou, depois, como sempre fazia indo unir-se ao vigor das ondas e ao escuro do mar.
            Disposto a não te deixar passar, na vez seguinte, mergulhei atrás de ti. Nadei, mas por mais que nadasse não te alcançava até que, já sem forças, senti teu beijo quente a me adentrar o ser e me vi completamente livre da dor, do peso de uma vida e de tudo o que nesta terra sofri.
            No dia seguinte eu era luz, mas meu corpo, abandonado boiando sobre as frágeis ondas da praia, seria tratado como mais uma história triste de um pescador desencantado...